O folclore é a cultura popular de um povo mas folclores há muitos. O termo também “serve para muitas pessoas dizerem as maiores barbaridades”, como sublinhava Alberto Rego, presidente do Grupo Etnográfico da Areosa, na conferência internacional sobre o folclore como identidade de um povo que decorreu no Museu de Angra do Heroísmo, na Terceira, por ocasião do 32.º festival Folk Azores. Durante uma semana, 12 países apresentaram na ilha a sua história através de danças e cantares tradicionais, mostraram que o folclore não é apenas uma dança lenta ou rápida, não é apenas saltos ou pulos nem tampouco é só para velhos – é, antes, um museu vivo.
À porta da Escola Secundária Emiliano de Andrade, em Angra do Heroísmo – o quartel-general do festival internacional Folk Azores – cerca de duas dezenas de rapazes e raparigas dançam, saltam à vista corpos morenos e tatuados. Muitas palmas, alguns rodopios e muitos olhares curiosos, em parte devido às sonoridades semelhantes à famosa dança haka, dos jogadores de râguebi neozelandeses. O grupo da Nova Zelândia partiu do país num tour de um mês que passou pelo Porto, Cinfães e agora Açores, onde os vemos e onde actuaram em vários pontos, tendo partilhado palco com ranchos de Portugal, Colômbia, Equador, Eslováquia, Espanha, França, Itália, México, Polónia, Roménia e Sérvia. “Nunca tinha visto nenhuma destas danças. É isto que eu gosto em festivais internacionais. Podemos conhecer outros países e outros grupos de dança e perceber o que está por trás das suas actuações”, comenta Nuhaka Numanga, de 20 anos, entre elogios aos retalhos verdes da Terceira.
Nuhaka começou a dançar aos 13 anos e, na altura de escolher uma universidade, escolheu a escola Whitirea, na Nova Zelândia, para estudar artes performativas. As suas danças favoritas são as das ilhas Cook e a dança contemporânea neozelandesa mas está sempre a aprender e a estudar danças de outras das ilhas da Nova Zelândia. “Sempre nos ensinaram a contar a nossa história. Temos de a contar e representar através de movimentos e expressões faciais para que o público sinta o que estamos a sentir e perceba”, afirma o dançarino, explicando que quando aprende uma nova música, estuda o seu significado para, depois, encontrar a sua própria ligação à canção.
“Na minha família, nós falamos a linguagem que actuamos. Não tive escolha”, diz Krystal Clarke, de 22 anos, uma das professoras do grupo, sobre a sua família de bailarinos. “Conforme fui crescendo, comecei a aprender a história por detrás [das danças] na escola, através da minha família e de amigos e comecei a gostar”, continua, explicando que as próprias danças Maori, em que os elementos do grupo cantam e dançam ao mesmo tempo, é uma forma de manter a linguagem. “A língua maori não é escrita, nunca foi. Costumávamos memorizar tudo através da voz, das músicas e dança. Não havia nenhuma maneira de escrever antes de sermos colonizados.”
Mas o que é, afinal, o folclore? "Quando falamos de folclore, falamos de um grupo", diz Francisco Maduro Dias, técnico superior do Museu de Angra do Heroísmo e especializado nas áreas de cultura e identidade, na conferência internacional sobre as danças tradicionais, admitindo que não é fácil definir identidade, povo e muito menos folclore. “O folclore é, essencialmente, um conjunto de modos de pensar e de ser que se materializam momentaneamente em atitudes e oralidades”, define, frisando que não há “momento mais interessante do que um festival internacional de folclore para se perceber até que ponto, seja de forma mais etnográfica, seja de forma mais artística, é possível ser-se Humanidade e ao mesmo tempo variedade”.
No Folk Azores, os grupos folclóricos internacionais, seleccionados pelo Comité Organizador de Festivais Internacionais da ilha Terceira (COFIT), consoante a sua qualidade artística e outras presenças em festivais de renome, convivem nas camaratas improvisadas na escola secundária, nos ensaios, nas festas nocturnas – e o evento termina com um espectáculo onde todos os países seleccionam o seu melhor número e dançam e cantam durante 10 minutos com uma coreografia final que junta membros de todas as nacionalidades.
Esta mistura de culturas é, também, profícua para os artistas – “quando estou a criar o meu próprio espectáculo, posso pegar em pedaços de danças que aprendi de outros artistas e outras culturas e adaptá-los à minha”, diz Nuhaka Numanga –, é uma forma de consolidação da identidade cultural de um país e é, também, uma forma de inclusão. “Estamos numa civilização tremendamente individualista e muito pouco inclusiva, por muito que se fale nisso. E se há lugar em que a palavra inclusão é fundamental é num grupo folclórico, seja ele mais próximo da dança ou da recolha documental”, defende Maduro Dias.
Gonçalo Vieira, de 19 anos, é um dos guias voluntários junto dos neozelandeses, responsável por fazer a ponte entre organização e grupo e por encaminhá-los para locais de ensaios e actuações. Durante a semana em que acompanhou o grupo, destaca que o mais curioso foi ver a integração dos neozelandeses e a forma como contactaram e tentaram unir os outros grupos. “Tanto a fisionomia deles como o próprio comportamento é diferente e é interessante porque há uma ligação entre as pessoas deste grupo e de outros. Poderia haver, até, um choque de culturas”, comenta.
“Dançar a moda de um país não é a mesmo que dançar a moda de outro país”, assevera Maduro Dias na conferência. Durante a mesma discussão, Alberto Rego, do Grupo Etnográfico da Areosa, falou das danças tradicionais e as suas apresentações no continente bem como da sua evolução no pós-25 de Abril e a importância da renovação dentro dos grupos.
Já Paulo Ricardo Caldeira, professor de Artes Visuais em Machico, contou a história do folclore madeirense. No último dia do Folk Azores, estas diferenças culturais foram celebradas numa missa ecuménica na Sé Catedral dos Açores, com os vários grupos trajados conforme os seus costumes e tradições a participar nos salmos, leituras e cânticos.
“Cada cultura tem a sua escrita, seja de letras ou de gestos, de música ou de dança, e essas coisas interagem e constroem uma espécie de solidez líquida que, como a água, mantêm a identidade, embora mudem de estado e de forma”, atesta Francisco Maduro Dias, entre recordações dos tempos de faculdade, longe de casa, em que ouvir a sapateia terceirense na rádio foi um “consolo” e uma maneira de “pôr água nas raízes da identidade”.
O folclore dos 8 aos 80
Durante os dias do festival, vêem-se homens e mulheres a lavar e pendurar roupa, a engomar os seus trajes, ouvem-se muitos cantares distintos e brincadeiras entre miúdos e graúdos. Começa-se cedo, como no caso de Danilo Rizzi, que integra o grupo vindo de Minturno, na Itália: tem 9 anos e é o mais jovem dos participantes nesta edição do Folk Azores. Toca pandeireta (tamburello, em italiano, ensina-nos) mas também dá um pezinho de dança e está a meio de um ensaio – começou há dois anos e vai fazendo “tudo o que calha”, seguindo atentamente as indicações dos mais velhos. O avô, Antonio, e a mãe, Daniella, foram os impulsionadores da sua entrada nas danças tradicionais italianas. “Fazemos tudo isto por paixão. São tudo coisas muito antigas, que vêm da tradição”, conta Antonio Rizzi. Já o elemento mais velho é Michel Souchet, de 62, e canta no grupo Les Joyeux Vendéens.
“O folclore não tem idade. Há mulheres com bebés que os vestem logo com roupas tradicionais e os levam para os ensaios. O folclore começa a criar-se daí. Vão crescendo no grupo com os mais velhos e acabam por gostar”, confirma Rui Silva, do Grupo de Baile da Canção Regional Terceirense, apesar de actualmente este grupo ter apenas jovens a partir dos 18 anos e a média de idades ser bem mais alta do que grupos como o da Sérvia, em que a maioria dos membros têm 15, 16 anos. Algo que se pode resolver com mais escolas de dança e ensinamentos de folclore, sugere Cesário Pereira, presidente do COFIT.
O folclore não é só para velhos e é muito mais do que o “bailarico da aldeia”, nas palavras de Cesário Pereira – e isso é uma das coisas que este festival pretende transmitir. “Há a ideia de que qualquer coisa é folclore. Que basta pôr meia dúzia de pessoas a saltar e está resolvido o problema. Temos de ter cuidado e qualidade naquilo que apresentamos”, defende o presidente do COFIT há 12 anos, que acredita que é possível aumentar a qualidade e trazer os mais novos para os grupos com escolas de dança e o reforço dos ensinamentos de folclore.
“O nosso folclore [da Terceira] é mais lento, não tem tanta agilidade nem tantas manobras e acrobacias”, continua Rui Silva. “As pessoas gostam de ver espectáculo e aderem bem aos grupos internacionais mas não esquecem o nosso folclore, que são as nossas raízes.”
Também Stanley Rocha, colaborador do festival há quatro anos, admite que dantes “não gostava muito de folclore nem do festival porque pensava que eram só aquelas músicas chatinhas e as danças dos nossos velhinhos”, relembra. Por um acaso, há uns anos, recebeu um convite para assistir ao espectáculo final do festival, com actuações de todos os grupos, e percebeu o verdadeiro significado do folclore e a sua importância na história de um povo. “Quando se tem uns 16 anos, estamos na flor da idade e temos muitas oportunidades de ver a vida de outra forma, não é o folclore que nos prende”, concede também Cesário Pereira. “Temos de trazer os nossos amigos para que muitos entendam o que significa o folclore”.
O importante, quando se aprofunda o folclore de um país, é “conhecê-lo de dentro para fora”. “O problema do folclore português é precisamente não saber adaptar-se aos tempos de hoje. Eu tenho tido uma luta junto das entidades nacionais. Os ranchos são sempre os tapa-buracos dos programas”, critica.
Apesar de existir há 32 anos, este é o primeiro em que o Festival Internacional de Folclore da Ilha Terceira se apresenta como Folk Azores, um nome com “duas palavras de fácil associação para os habitantes locais” e para promover no estrangeiro. É também a primeira vez que tem uma equipa de comunicação a trabalhar o evento – o objectivo último é dinamizar o turismo e o comércio local (a apresentação de novo nome e imagem foi na Bolsa de Turismo de Lisboa, em Março, com o lançamento de pacotes de viagem especiais), e colocar a ilha Terceira no roteiro anual de muitos turistas.
Ao longo de oito dias, os grupos actuam em diversas freguesias em espectáculos gratuitos, fazem passeios turísticos, conhecem a população. As quatro mil pessoas que encheram a Praça de Toiros da Ilha Terceira para assistir ao espectáculo final confirmam: mexeram o pé, cantarolaram, aplaudiram fervorosamente as danças mais diferentes das portugueses. E conheceram um pedaço da história de 12 países diferentes. Como atesta Rui Silva, “vamos vendo o mundo a dançar”.
A Fugas viajou a convite do COFIT/Turismo dos Açores