O SILÊNCIO DA GAIVOTA

1.Eu, que nunca fui muito de ir ao teatro, agora, à cadência de duas quartas-feiras sucessivas, passei lá as minhas noites. A primeira, na Cornucópia, para ver A Gaivota, de Tchekov, "e os peixes silenciosos que habitam nas águas", na encenação de Luís Miguel Cintra. A segunda, no Teatro Nacional, onde não punha os pés há 28 anos (excepto para colóquios ou coisas assim) para ver a inadjectivável interpretação de Manuela de Freitas na Medeia, de Eurípides, agora dada a ouvir no português imaculado de Sophia de Mello Breyner Andresen. Tradução, salvo erro ainda inédita e que, mais do que nenhuma outra que conheço, captou a essência do que suponho ser a beleza do grego clássico do século V a.C.E dei por mim a repensar nas razões que, tão novo ainda, me afastaram do teatro e só de longe em longe a ele me fazem voltar.
Quando eu nasci, já tinha desaparecido a geração dos monstros sagrados do teatro português (Brazão, Ângela Pinto e tutti quanti) que ainda justificavam as loas saudosistas dos meus avós. Amélia Rey-Colaço reinava sobre o Teatro Nacional, com Palmira Bastos como deusa-mãe, e ainda cresci a ouvir acesas discussões sobre as peças do Nacional, mantendo, nessas eras remotas, a aura de templo que, acima dele - muito acima dele - só S. Carlos possuía. Os ânimos azedavam-se mais com o naturalismo de Alfredo Cortês, género Bâton e outras peças, entre o boulevard e a crítica social, nos limites do que o Estado Novo, e a burguesia que ele representava, tolerava.
Aí pelos meus 15-16 anos, transpus as portas da chamada "casa de Garrett", onde me lembro de ter visto A Senhora das Brancas Mãos ou As Árvores Morrem de Pé, de Alejandro Casona, A Visita da Velha Senhora, de Dürrenmatt, como momentos mais memoráveis. De A Senhora das Brancas Mãos lembro-me de Helena Félix (que tão cedo morreu) a dizer que andava de mão em mão como uma moeda suja; de as Árvores lembro-me de Palmira a bater com a bengala (quem não se lembra?); de a Visita lembro-me de Amélia Rey-Colaço. Ficaram-me actores, não me ficaram peças, como foi o caso, pelos mesmos anos, ali ao Avenida, (onde hoje já não há teatro nem avenida) de João Villaret, no monólogo Esta Noite Choveu Prata.
Mas, a pouco e pouco, deixou de se ir ao teatro e quando eu o retomei (já no fim dos anos 50 ou, no início dos anos 60) o Nacional dessacralizara-se. Esperou-se por Godot no Trindade, a boa alma de Set-Suan foi corrida pela polícia do Capitólio. Entretanto, nas minhas primeiras viagens ao estrangeiro, estreei-me com Vilar e Pitoëff, deste último precisamente com uma versão da Gaivota de 1961, com Delphine Seyríg no Nina (ainda me soa aos ouvidos o "je suis une mouette" do quarto acto, na voz incomparável da mulher de Marienbad).
Farrapos? Exactamente. Enquanto o cinema era o que era e a poesia e a ópera e as outras manas, o teatro ficava a um canto. No estrangeiro, ritual de uma noite, em Paris ou em Londres; em Portugal, nem isso, a não ser muito instado ou quando (O Passado e o Presente) comecei a seguir todos os passos de Manuela de Freitas, desde O Fim, de António Patrício, encenado por Listopad na Casa da Comédia, em 1971, ainda não tinham nascido nem a Cornucópia, nem a Comuna, nem os mil teatros independentes que tiveram hora áurea antes da Revolução (72 a 74) e depois seguraram os lugares dominantes.
Mas, mesmo quando o vi de muito perto, segui o teatro de longe e ainda hoje me são misteriosas as razões desse devir.

2 - Gente mais radical dirá, ou diz: em Portugal não há teatro, como não há dramaturgos, encenadores ou actores. Tais tiradas lembram-me sempre uma fabulosa saída de Mário Viegas, a quem um médico confidenciava com ar de muito bom amigo: "Tenho pena de não o ver nos palcos. Mas sabe, ao teatro, só vou em Londres." Com idêntica cordialidade, Mário Viegas respondeu-lhe: "Como eu o percebo! Eu, quando me cheira a doença grave, só descanso quando me entrego nas mãos de um médico inglês."Teriam os dois razão? Teriam os dois a mesma razão? Deixo a outros essa discussão e digo que, assim, impressionisticamente, não me parece que isto do teatro português ou do teatro em Portugal corra pior - ou melhor - do que outras coisas portuguesas ou em Portugal. Tão raro navegante sou, mas é verdade que recordo tanto alguns momentos de Pitoëff ou de Vilar, anos 60, como um Ricardo III da Cornucópia (com Luís Miguel Cintra e Manuela de Freitas), certos Strindberg (também da Cornucópia, particularmente O Sonho representado no CCB), L"Annonce Faite à Marie, de Claudel, no oculto interior do Palácio da Independência, encenada por Listopad ou uma Gaivota de 82, que teve como espaço a Cornucópia, mas cedida a Rogério de Carvalho e ao Teatro do Mundo.

3 - Tenho razões especiais para me lembrar bem dessa Gaivota de 1982. Para me darem um abrigo e um cantinho quente, em ano em que o vento soprou fortíssimo (e estou a recordar Turgueniev, recordado por Nina, nessa mesma Gaivota) convidaram-me para tapar um buraco no elenco, à última hora. Foi assim que me achei a fazer de Shamraev, feitor de Sorin, marido de Polina Andreevna e pai de Masha. Personagem secundário, dir-se-á. Mas será que em Tchekov algum personagem foi alguma vez secundário? Personagem odioso, afirma-se. Mas será que em Tchekov algum personagem é alguma vez odioso? Não foi ele - foi Strindberg - quem disse que os homens não são maus, mas também não são bons. Tchekov não seria capaz de o dizer assim, com tanta rudeza. É uma surdina, surdina de maldade que acompanha todas as bondades, surdina de bondade que acompanha todas as maldades. É preciso olhar para o fundo das águas. E, ou a pescar carpas como Trigorin, o escritor, ou a buscar no lago o reflexo da lua, como Treplev, o jovem poeta, procurar o silêncio dos nossos primórdios, na surpreendente modificação que, do mesmo texto, faz Nina, entre o primeiro e o quarto acto. E não foi certamente a memória que lhe faltou.Falei de bondade, falei de maldade. Mas é preciso falar delas quando se fala de Tchekov? "Ajude-me", pede Masha ao médico Dorn, no final do primeiro acto. Este limita-se a observar-lhe, duas vezes, que toda a gente anda muita nervosa e, depois, aparentemente a despropósito, invoca-lhe o "lago encantado" que tem lugar central na peça. Até se virar para Masha e lhe dizer: "Minha filha, que posso eu fazer por si? Que posso eu fazer por si?"
Todos - à excepção do médico, se é que este é uma excepção - querem fazer imenso pelas coisas e pelos outros. Mas não sabem nem podem. Na Gaivota, como nas outras peças ou contos de Tchekov, a visão que mete mais medo, até porque se lhe opõe uma esperança absurda, é a da impotência nossa para mudar seja o que for. Todos somos tema para uma pequena história que um dia será contada, mas ainda não é tempo, ainda não é tempo. Olhos que brilham tanto e tão efemeramente (os "curtos momentos" de que tanto se fala) e depois tudo se apaga e ensombrece. E quem mais amou a "gaivota" foi talvez esse Sorin moribundo, que, no fim, confessa que, apesar da grande diferença de idades, esteve outrora apaixonado por ela, algum tempo. "Velho gaiteiro" é a horrível réplica do médico, pouco mais novo do que ele. E já se passa a novo turbilhão.

4 - Diz-se que A Gaivota é a mais autobiográfica das peças de Tchekov. Não sei, nem me interessa muito saber. Nem sei sequer se é a peça de Tchekov que amo mais, quando penso nas Três Irmãs, no Cerejal (Luís Miguel Cintra ensinou-me que se deve traduzir por O Ginjal) ou no Tio Vânia. Mas se eu fosse muito impudico (descansem que não o vou ser) podia descrever 40 e muitos anos da minha vida através da única peça que em toda ela eu vi três vezes. A voz de Delphine Seyrig na peça no 1.º acto ou na sua visita ao reino dos mortos (ou do reino dos mortos) no 4.º, a magoadíssima vulnerabilidade de Fernanda Neves, em 82, fremente primeiro, premente por fim, com aquela inflexão única quando dizia: "A vida é grosseira", comparando o lago de outrora aos passageiros de terceira classe do hoje; finalmente, o nervosismo tenríssimo de Rita Durão, na versão que agora vi, sempre nova de mais na terra, seja quando vem representar ao Jardim dos Grandes, seja quando não dá à gaivota outra carga que não a do pequeno conto de que ela pode ser tema. Sobre a identificação poética, fácil de pegar pelo lado romântico (ou simbólico), fica sobretudo o "não é isso, não é isso". E nunca vi tão perfeitamente iluminada a razão pela qual Nina entra e sai de cena com o mesmo texto cabalístico, onde a lua e a luz são de Gaspar David Friedrich, uma das fontes da inteligente e atemorizada encenação de Luís Miguel Cintra.
E como é belo - meu Deus! - aquele último plano, depois do tiro, em off, quando todos se levantam da mesa do jogo. Masha, a quem Teresa Sobral dá uma dor ilimitada e tão insustentável como a desajustação de Nina, apanha no chão os dados e as pedras daquela espécie de loto. E, toda de negro vestida, o seu vulto cresce desmedidamente na horizontal, em busca dessas marcas como uma delas ela o foi, representando nesse luto a morte do jovem poeta que tão desesperadamente sempre amara. E não há nada que possamos fazer por ela, como não há nada que possamos fazer por Nina, quando esta saiu de novo para o vento ("Deus ajude os viandantes sem abrigo"), nem nada que possamos fazer pelo menino de sua mãe, que, no momento final, ainda pensa mais na Mãe do que em Nina.
No texto da Cornucópia, Luís Miguel Cintra diz que sempre teve medo do teatro de Tchekov, teatro sem discurso, teatro de sensações, teatro como "um pequeno conto". Como eu o percebo! Sempre, há mais de 40 anos, este foi o teatro que me fez mais medo. Medo das Ninas, das gaivotas e das actrizes, medo dessa montanha propriamente russa que o teatro de Tchekov é e que a todos nos leva. O resto é silêncio? Não. O silêncio é que é o resto.

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