As coutadas profissionais
Não param os protestos dos estudantes de medicina e de medicina dentária contra as novas escolas nessas áreas, a saber as duas faculdades de medicina públicas anunciadas para a Covilhã e Braga e a escola de medicina dentária recém-criada numa universidade privada do Porto.Embora possam invocar nobres propósitos (como a qualidade do ensino, a poupança de recursos públicos, etc.), o que move estes desenvoltos protestos é uma coisa bem mais terrestre e interessada, ou seja, o desejo de manter a actividade reservada para os que actualmente já frequentam as escolas disponíveis.Não existe nada de surpreendente nesta luta dos candidatos a médicos e a dentistas. É próprio da cultura corporativa de todas as profissões um malthusianismo mais ou menos confessado. As restrições ao acesso podem revestir as mais variadas expressões, desde limitação da entrada na carreira académica, até ao estabelecimento directo de "numerus clausus" profissional, passando pelas exigências vestibulares de entrada na profissão (estágios, exames de aptidão, etc.).Entre nós, as faculdades de medicina e de medicina dentária são das mais exigentes em termos de "numerus clausus", que pouco ou nada tem a ver com a sua capacidade. Esses cursos requerem sistematicamente as mais elevadas classificações nos concursos de acesso ao ensino superior. A competição pelas escassas vagas favorece os expedientes mais imaginativos, desde a frequência de escolas secundárias privadas mais generosas nas classificações até à engenhosa exploração do contingente de que usufruem (aliás inconstitucionalmente) os Açores e a Madeira, e também Macau e os emigrantes. Recentemente vieram mesmo a público notícias sobre a compra de vagas nas faculdades de medicina, por milhares de contos, a título de troca de cursos.Sou dos que duvidam da necessidade de novas faculdade de medicina. Mas não por contestar a necessidade de mais médicos, e sim apenas por entender que as actuais escolas podem sem grande investimento suplementar "produzir" consideravelmente mais licenciados do que actualmente. Também me parece assaz duvidoso o processo de criação da escola dentária privada no Porto, mas também aí somente porque o curso foi anunciado e aceitou inscrições sem reconhecimento oficial prévio, como a lei exige.Todavia, face à incontinente reacção dos estudantes de medicina e de medicina dentária, é de concluir que provavelmente o único meio aumentar o número de licenciados nestas duas áreas é justamente a criação de novas escolas públicas ou privadas.Creio ser dificilmente contestável a necessidade de aumentar o número destes profissionais em Portugal. Grande parte do País está gravemente carenciado deles e é evidente que, pelo menos na medicina privada, essas carências só serão colmatadas se se verificar uma saturação dos grandes centros. É o que se esta á verificar, por exemplo, com a cobertura do território por advogados.Por outro lado, Portugal é indubitavelmente o país da União Europeia com mais elevados honorários na medicina privada (números oficiais da OCDE), o que, tendo em conta o poder de compra relativo, é um verdadeiro escândalo. Ora, que se saiba, num regime de profissão liberal o único meio de fazer baixar os custos dos serviços profissionais, excluído o tabelamento, é o aumento da oferta e o acréscimo da concorrência.Ora é isso justamente que assusta os jovens candidatos às profissões em causa. Com o aumento do número de profissionais, eles temem ter de ir montar consultório ou prestar serviço no SNS em lugares geograficamente periféricos ou ver reduzidos os confortáveis níveis dos honorários de que esperam vir a beneficiar. Entre nós dificilmente se pode falar de concorrência na prestação dos serviços profissionais, especialmente no âmbito das profissões liberais. Boa parte delas mantêm, à margem da lei, tabelas de honorários estabelecidas pelas respectivas corporações profissionais públicas. Em quase todas vigoram restrições quase absolutas à publicidade profissional, com as limitações que isso implica para a entrada de novos profissionais no "mercado" dos respectivos serviços. Vão aumentando de modo desproporcionado as exigências de formação académica superior para o exercício de um número crescente de profissões. Reforçam-se as exigências de acesso à profissão, em alguns casos de forma manifestamente excessiva, somente destinadas a dificultar o acesso.Não compete ao Estado assegurar a nenhuma profissão um "status quo" injustificadamente privilegiado. Sobretudo quando se trata de serviços profissionais que são essenciais numa sociedade moderna, como sucede com os ligados à saúde. E se no que respeita às escolas públicas é dever do Estado apenas garantir a cobertura das necessidades públicas, já em relação ao ensino privado só lhe pode interessar a garantia da sua qualidade.