A Ilíada pelas mãos de Frederico Lourenço
A edição da Livros Cotovia da Ilíada com a nova tradução de Frederico Lourenço, a primeira tradução contemporânea integral do original grego, é um acontecimento que ficará para além da nossa habitual e furiosa produção de espuma cultural subsidiada. O poema homérico brilha agora no português de hoje com o mesmo esplendor das origens, feito de primeiras palavras, de metáforas ainda completamente vivas, de nomes que milhares de anos tornaram familiares, arrastando-nos a este mundo antigo, tão nosso, tão por debaixo do nosso chão. Se estivéssemos na Grécia, ou mesmo em Roma, podíamos bater com os pés na terra para saudar o livro, como o poeta Horácio aconselhava depois da batalha do Acio. A Ilíada é o poema épico menos popular do par Odisseia-Ilíada porque a figura de Ulisses parece mais conforme com a nossa sensibilidade contemporânea. Nem sempre foi assim, mas hoje é difícil escapar ao encanto das aventuras míticas de uma viagem de regresso em que um homem, joguete das iras e amores dos deuses, neste caso das deusas, consegue voltar para a sua terra, regressar a Ítaca, à fiel Penélope e matar os seus pretendentes no preciso momento em que estes estavam prestes a eliminar a sua memória do leito conjugal.
O homem frágil, mas forte na sua astúcia, "cheio de truques", polymekanos, retrata um mito fundador da nossa cultura, um certo individualismo que afronta os deuses, que joga o espírito humano contra as maquinações divinas. Ulisses é corajoso, mas não é a coragem que o tornou nosso próximo, mas sim a curiosidade, a persistência, a imaginação, e a manha. Estas qualidades fizeram com que a Odisseia acompanhasse a história da nossa sensibilidade melhor do que a Ilíada, à medida que em quase três mil anos a viagem de Ulisses, que era "exterior", foi-se tornando "interior", paradigma de todas as nossas viagens, desde a de Gama para a Índia, até àquela que fez um tal Leopold Bloom em Dublin, em 16 de Junho de 1904.
Mas a proximidade que pensamos ter com a Odisseia é tão enganosa como a distância que imaginamos ter com a Ilíada. A Ilíada, tanto como a Odisseia, é o nosso terreno fundador, o de um mundo que a guerra moldou muito mais do que hoje queremos, ou podemos admitir. É verdade que, como dizia Shakespeare no Troilus e Cressida, que se tratava, em última razão, ou irrazão, de uma "boa zanga em que facções rivais se sangravam até à morte", por "um cornudo e por uma puta", não propriamente o melhor dos argumentos para fundar uma civilização. Mas as coisas são como são e, mesmo sem a ironia shakespeareana, se calhar foi mesmo assim - uma zanga com consequências pesadas, uma brincadeira dos deuses, do ciúme das deusas.
A Ilíada não engana ninguém - começa pela palavra "cólera", e, da primeira à última linha, está cheia de sangue e de guerra, de violência e pathos desmedido, páginas e páginas de mortes e ferimentos cruéis, decapitações, desmembramentos, mutilações, coisas da guerra vista de muito perto, no chão, entre homens com lanças e espadas que combatem a pé, corpo a corpo. É uma guerra de corrida e choque frontal, onde a palavra "veloz", uma das classificações de Aquiles, traduz essa qualidade fundamental do combate na perseguição ou na fuga.
A banda grega que relutantemente - e Ulisses era dos menos entusiastas, ele que fingiu a loucura para não ter que ir para Tróia - seguiu para as costas da Anatólia fazia-o por uma pulsão a que o nome de "glória" dava sentido, e que em poucos textos deixou tão forte marca, visível mesmo agora quando as guerras não geram "heróis épicos", como na Ilíada. Desse ponto de vista, o poema homérico é pura arqueologia, mas sem esses fundamentos por baixo de nós, seríamos certamente muito diferentes porque ainda hoje combatemos como os gregos e não, por exemplo, como os zulus ou os persas.
O prefácio de Frederico Lourenço valoriza o sentido quase erótico do combate, ao mesmo tempo que faz uma cuidada prevenção sobre o modo como habitualmente se vê a relação homoerótica entre Aquiles e Pátroclo. O erotismo na Ilíada é com a Morte, personificada na violência e na luta corporal. Todo o prefácio nos fala daquilo que Frederico Lourenço tantas vezes nomeia como um "sopro", um vento de paixão e fúria, ocasionalmente de dor, desespero, com sentimentos como o amor paternal e o amor conjugal, que atravessa, as palavras homéricas e que ele consegue dar-nos em português.
Não tendo competência para julgar a qualidade da tradução em função da fidelidade ao original grego, fico-me pela beleza ímpar dos seus versos, que se pode perceber nos episódios mais marcantes como a célebre descrição do escudo de Aquiles, a despedida de Andrómaca, a morte de Heitor, o lamento de Aquiles pela morte de Pátroclo, as zangas épicas entre os Aqueus.
No poema, o nosso olhar pode ganhar alguma distância e ver nesses Aqueus indisciplinados e cruéis, mais um bando, ou uma colecção de bandos do que um exército, onde medram invejas e rivalidades, desconsiderações e ingratidões, perfídias e má-língua, uma tão humana presença que podemos esquecer a manigância divina que os atirou para a guerra. Os deuses estão lá, mas podemos ficar-nos pelos humanos, até porque na presença divina são paixões que reconhecemos como humanas que nos marcam.
Na cena da despedida de Heitor de sua mulher Andrómaca, os momentos de grande simplicidade humana são dados com uma voz tão pura e original que o poder cénico do encontro permanece intocável até aos nossos dias. Vemos Astianax, a criança filho de Heitor, a que este chamava "Escamândrio", do nome do rio que passava junto a Tróia, como se hoje se chamasse a um menino "Tejo" ou "Douro", assustado no colo da ama com a figura do pai vestido para a guerra:
"Assim falando o glorioso Heitor foi para abraçar o seu filho,mas o menino voltou para o regaço da ama de bela cintura
gritando em voz alta, assarapantado pelo aspecto do seu pai amado
e assustado por causa do bronze e da crista de crinas de cavalo,
que se agitava de modo medonho da parte de cima do elmo."
(Canto VI, 466-470)
Homero diz-nos que Heitor e Andrómaca se riram do medo da criança, numa reacção natural mesmo no meio da tragédia que ambos, mas principalmente Andrómaca, viviam. Heitor sabe que tem que ir para a batalha desafiar o poderoso Aquiles, e Andrómaca receia que ele não volte. Nenhum tem a certeza do que se irá passar, nem sabe que nunca mais se vão ver, mas, mesmo naquele ambiente de violência, nenhum podia imaginar toda a dureza do seu destino. Heitor morre às mãos de Aquiles, Andrómaca é distribuída como as outras mulheres como parte do saque, mas o menino vai ser morto cruelmente pelos gregos, by the way pelo "nosso" Ulisses, que o atira do alto das muralhas. O poder desta história nunca se perdeu e muito tempo depois Eurípedes nas Troianas e Racine voltaram a Andrómaca e a Astianax e ao seu destino trágico. Este poder poético original de um banal episódio militar antigo, não entre povos distintos, não entre gregos e persas como nas Termópilas, ou entre cristãos e muçulmanos como em Lepanto, mas entre guerreiros da Idade do Bronze que partilhavam uma cultura comum, e que roubavam as mulheres uns dos outros por instigação dos mesmos deuses, fê-lo passar de Homero para Virgílio, para Ovídio, para Dante, para Shakespeare, para Camões, para Cervantes, para Racine, para Joyce, para um infindo texto que nos fez e faz, vindo da mesma fonte, o velho cego, talvez inexistente, talvez feito de muitos, em cuja cadeia de palavras Frederico Lourenço agora entrou, reconstruindo-o na "última flor do Lácio, inculta e bela", o português. Historiador