TTIP depende de “acordo sólido” e não de calendário político
Ignacio Garcia Bercero, negociador-chefe da Comissão Europeia para a Parceria Transatlântica de Comércio e de Investimento (TTIP), garante que "em nenhum tema" será aceite "seja o que for que implique uma redução do nível de protecção europeu".
Representar os interesses de 28 países não é coisa fácil. Mas é uma inevitabilidade, dado que a política de comércio externo é uma só e da competência exclusiva da União Europeia. A responsabilidade pertence à Comissária do Comércio, a sueca Cecilia Malmstrom. As negociações decorrem desde 2013, quando o Conselho aprovou o mandato negocial europeu, definindo os limites e os objectivos da negociação. Desde essa altura que há consciência por parte da maioria dos governos de que esta parceria tem um interesse estratégico fundamental, para além do interesse económico. Recentemente, a divulgação de um documento obtido pela Greenpeace holandesa criou uma enorme polémica sobre o secretismo com que a Comissão está a negociar o acordo. Ignacio Garcia Bercero, espanhol, director da Direcção Geral do Comércio com uma grande experiência na negociação de acordos com os mais variados países, contraria esta ideia e lembra que, desde o início, alguns dos aspectos mais polémicos como os transgénicos ou as carnes com hormonas não integram sequer o pacote negocial. Nesta entrevista, tenta desfazer os mal-entendidos e as ideias feitas. Com o cuidado que qualquer negociador deve ter: não abrir totalmente o jogo.
A Comissão foi acusada de negociar o TTIP em segredo, de não conseguir resistir à pressão dos Estados Unidos e de abrir as portas à diminuição dos níveis de segurança alimentar e de protecção dos consumidores. Vamos por partes. Como responde à primeira crítica de falta de transparência?
O documento da Greenpeace demonstra precisamente o contrário, que a negociação está a ser feita de forma transparente, mostrando que a Comissão está a defender com muita força os interesses europeus e os níveis de protecção europeus. Não havia nesse documento nada de novo em relação à forma como a Comissão está a negociar, que é pública. Temos uma política de transparência e, ao mesmo tempo, uma abordagem muito clara perante os EUA, explicando que, em momento algum, estamos dispostos a transigir nos nossos princípios, incluindo o “princípio da precaução” [caso os dados científicos não permitirem uma avaliação completa do risco, o recurso a este princípio permite impedir a distribuição de um produto ou retirá-lo do mercado].
Então como explica as críticas da imprensa europeia e a reacção da opinião pública em alguns países?
É verdade que este tema tem provocado muito debate. Curiosamente, é a primeira vez que a Europa debate publicamente com tanto pormenor um acordo de comércio livre, e uma das razões pelas quais creio ser necessário um nível contínuo de esclarecimentos para provar que os princípios de base da negociação estão expressos no mandato que a Comissão recebeu do Conselho, e que não temos a mínima intenção de transigir.
A segunda crítica é que esta parceria só interessa aos EUA e às multinacionais. Como lhe responde?
Em primeiro lugar, a decisão de abrir as negociações foi tomada por unanimidade de todos os Estados-membros. A Comissão não estaria a negociar sem esse apoio e sem o apoio do Parlamento Europeu. O que fica claro é que há interesse de ambas as partes nesta negociação. Quanto a quem beneficia deste acordo, há que lembrar que hoje a regulamentação do mercado americano cria dificuldades à entrada das pequenas e médias empresas europeias. Alguns dos sectores com tarifas mais elevadas são o têxtil, o calçado, a cerâmica, para dar apenas alguns exemplos. São sectores importantes para as PME europeias. E outros sectores em que estamos a avançar, como a farmacêutica ou a metalo-mecânica, são igualmente sectores que interessam às PME europeias, porque as grandes empresas encontram sempre uma forma de lá estar. Temos uma clara consciência de que, em todos os domínios da negociação, precisamos de levar em conta as PME, criando um ambiente mais propício para as exportações dessas empresas.
A outra crítica é o risco da parceria baixar os níveis de protecção da saúde pública, do ambiente, etc. Nada disto está em causa?
Não. Há aqui um princípio muito claro, que afirmamos desde o início das negociações: em nenhum tema vamos aceitar seja o que for que implique uma redução do nível de protecção europeu. Isso acontece sobretudo na protecção alimentar, do ambiente e no domínio da privacidade. A negociação parte logo destes princípios. O que estamos a tentar ver são os temas em relação aos quais é possível uma maior convergência regulamentar, sem pôr em causa os níveis de protecção. Por exemplo, no sector automóvel é possível conseguir um maior reconhecimento mútuo das normas em matéria de segurança. No sector farmacêutico, estamos a ver se é possível aproximar as regras de conformidade. São temas em relação aos quais se pode tornar a vida muito mais fácil às empresas no comércio transatlântico. Sempre, insisto, sem ceder no nível de protecção. Mencionou os organismos geneticamente modificados. Não tencionamos modificar em nada a nossa legislação, e o mesmo se aplica a outros sectores, como o químico ou o cosmético.
Na Europa há já permissão para importar e produzir transgénicos na agricultura, mas nunca se fala disso. Porquê?
Na Europa, para autorizar qualquer transgénico, há que cumprir um procedimento muito estrito, que envolve a consulta dos peritos [a Autoridade Europeia para a Segurança Alimentar, que presta aconselhamento cientifico] e essas regras vão manter-se. Os EUA percebem isto perfeitamente.
Criou-se na opinião pública a ideia de que Europa tem critérios ambientais mais exigentes, quando, por exemplo, assistimos ao escândalo da VW, que enganou os clientes durante muito tempo. Há aqui alguns mitos?
Tem toda a razão. Creio que é preciso não simplificar as coisas, dizendo que a Europa tem sempre níveis de protecção mais altos, porque isso não é assim e depende de cada sector. Mencionei há pouco o caso dos cosméticos que, em certos casos, estão sujeitos nos EUA a uma regulação mais estrita do que a europeia. No caso dos automóveis, as normas para os limites das emissões nos Estados Unidos são muito estritas e a sua imposição muito dura. Há casos em que a Europa tem níveis mais elevados e não vai abdicar deles, e há casos em que são os Estados Unidos que também não querem abdicar. Mas também há muitos casos em que é possível convergir nesses critérios, facilitando muito o comércio.
Quando falamos das hormonas das vacas ou dos transgénicos, não há também o interesse escondido de alguns sectores como a agricultura ou a pecuária, que não querem enfrentar uma agricultura altamente competitiva como é a americana?
Francamente, acho que as políticas estritas em matéria de importação de transgénicos, ou do “princípio de precaução” em matéria das hormonas no tratamento das carnes, parecem-me legítimas. Mas também há agricultores europeus que acham que que as normas em matéria de autorização de hormonas, de bem-estar animal, ou de transgénicos implicam custos que colocam as empresas europeias numa posição competitiva difícil. Pode ser verdade para alguns sectores, como a pecuária, e temos de levar em conta essas diferentes sensibilidades.
Mesmo assim, há uma ideia errada que faz do mercado americano uma espécie de Faroeste, que sabemos que não é. Mas não se vê ninguém a explicar isto aos europeus.
Temos de debater essas questões para clarificar que os EUA não são, de facto, o Faroeste. Há diferenças de regulação mas há muita coisa em comum e temos de perceber que o que nos une é muito mais forte do que o que nos diferencia. Devemos levar isso em conta no debate público. Estamos a negociar acordos com muitos outros países com níveis de protecção muito inferiores aos dos EUA…
E ninguém protesta.
É verdade, o debate concentra-se nas negociações entre EUA e Europa, quando há questões mais controversas quando negociamos, por exemplo, com os países asiáticos. É um paradoxo. É preciso olhar para os EUA de uma forma realista, e perceber que há entre os dois lados muito mais regras em comum do que as que nos separam.
Quais as maiores dificuldades dos americanos?
São, sobretudo, nos sectores em que têm interesses defensivos, incluindo no sector da agricultura. Por exemplo, a exportação de fruta e de verduras é um dos sectores mais difíceis para os EUA, mas muito importante para a Europa. Outros exemplos são o sector das compras públicas, onde se mantêm muitas medidas restritivas nos EUA, ou o transporte marítimo, que está submetido a restrições muito fortes do lado americano. Finalmente, creio que, para conseguirmos um bom acordo, precisamos de encontrar um equilíbrio que responda também aos interesses ofensivos da nossa parte, mas que tem de ter em conta as várias sensibilidades do mercado americano.
Esta parceria é muito diferente de todos os outros acordos de livre comércio, porque é sobretudo sobre standards e não sobre tarifas, que já são muito baixas. Os EUA defendem que, unindo os dois maiores mercados do mundo em torno de critérios comuns, passa a ser mais fácil regular a globalização. A Europa pensa da mesma maneira?
Sim, claramente. Creio que o máximo valor desta negociação é que, para além dos temas clássicos de acesso aos mercados, há dois sistemas regulamentares de dois mercados altamente desenvolvidos que podem funcionar de forma mais cooperativa, beneficiando ambas as partes, mas também conseguindo uma influência exterior muito mais forte. Por exemplo, no sector dos automóveis, os EUA e a Europa desenvolveram, infelizmente, regras absolutamente incompatíveis, que nada têm a ver com diferenças de critérios, mas por razões acidentais e históricas. Na medida em que consigamos cooperar de uma forma muito mais eficaz, teremos uma influência global muito mais forte. Creio que este elemento estratégico da negociação é muito importante, e é também a razão pela qual esta negociação é fundamental para melhorar a competitividade das respectivas economias.
A propósito de competitividade, o sector energético é fundamental para a competitividade europeia, que paga um custo muito superior ao americano. A possibilidade de importar energia dos EUA ajudaria a baixar este custo na economia?
Uma parceria de comércio livre desta dimensão não é compatível com as restrições que os EUA têm em relação às exportações de produtos energéticos para a Europa, em particular o gás natural, que estão sujeitos a licenças. Abolir estas licenças parece-nos uma questão-chave, uma vez que exista um acordo de livre comércio entre as duas partes. Os EUA e a União deveriam ter um interesse comum em matéria de transparência e de não-discriminação no sector energético e é esta a razão pela qual propusemos um capítulo específico neste acordo que determine estes princípios comuns.
O sector financeiro como fica?
É um sector onde, como sabe, existe uma diferença grande entre as duas partes. Mas é um sector muito importante que deve levar a uma cooperação entre os reguladores dos dois mercados e que pode trazer ganhos de eficácia grandes. O que não implica a debilitação das regras. Pelo contrário, quanto mais se coopere mais eficaz será a regulação.
O Presidente Obama disse em Hanôver que era útil terminar as negociações até ao final do seu mandato, aludindo a uma vaga proteccionista que se verifica nos EUA, mas também na Europa. É possível?
Seria bom, seria o objectivo mais desejável e é esse o objectivo com o qual trabalhamos. Mas o fundamental é garantir que temos um acordo sólido, equilibrado e ambicioso. E que não vamos sacrificar os nossos princípios por causa de um calendário político. Tentaremos ir o mais longe possível na negociação com a Administração actual. Se virmos que, no final, não é possível, continuaremos a trabalhar com a nova Administração.
Mas reconhece que há um ambiente desfavorável dos dois lados do Atlântico?
O que penso é que há, dos dois lados, um grande debate sobre o impacte da globalização na economia, o que leva a encarar estes acordos de um ponto de vista que considero errado. Os acordos de livre comércio, se forem bem concebidos, são instrumentos que permitem a melhor gestão da globalização a partir de regras acordadas. E esta é a razão pela qual consideramos ser muito importante o debate político, de forma a mostrar que os europeus não podem marginalizar-se do comércio internacional. Pelo contrário, têm de desempenhar um papel activo na definição das suas regras.
A parceria transatlântica tem também uma clara dimensão geopolítica. Os europeus compreendem essa dimensão?
Creio que sim. Quando lançámos a negociação, estávamos perfeitamente conscientes de que, para além dos resultados económicos, esta parceria podia ter também um impacte importante no reforço da relação transatlântica. Os argumentos políticos e os argumentos económicos vão na mesma direcção: um acordo sólido e equilibrado e que seja importante para todos.