Com uma licenciatura em Enfermagem, Marine Carrilho, de 23 anos, levou dois meses e meio até encontrar emprego. Não é muito tempo para os padrões dos jovens portugueses, mas a espera estava a deixá-la apreensiva e emigrar — como aconteceu com alguns colegas seus de curso — foi uma hipótese que colocou em cima da mesa. Uma coincidência feliz fez com que soubesse da abertura de uma unidade de cuidados continuados privada na região de Lisboa. Enviou o currículo e dias antes do Natal recebeu um presente antecipado: um emprego como enfermeira, em Portugal.

Um mês depois de terminar a licenciatura na Escola Superior de Saúde de Castelo Branco, Marine começou a enviar candidaturas espontâneas para as instituições de saúde da região. Depressa chegou à conclusão de que na Beira Interior dificilmente conseguiria encontrar um lugar de enfermeira. Alargou a procura a outras zonas do país, mas as respostas tardavam a chegar e a hipótese de sair do país começou a tomar forma na cabeça desta jovem (que nasceu em França e fala francês fluentemente).

“Dois meses, para quem está à procura de trabalho, é muito tempo. E a enfermagem tem uma componente muito prática, implica que continuemos a exercer. Não podemos estar parados muito tempo”, conta ao PÚBLICO. “Comecei a sentir-me um bocadinho em baixo e estabeleci uma meta: se até Março de 2016 não conseguisse nada, passava o meu aniversário em Portugal e depois iria para fora”.

Afinal, não precisou de sair do país. Marine é uma das 70 mil pessoas que conseguiram trabalho no último ano (entre o quarto trimestre de 2014 e o de 2015) e são casos como o dela que contribuíram para um aumento significativo do peso dos trabalhadores com ensino superior no total do emprego.

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No último trimestre de 2015, Portugal registou um número histórico: 25,3% da população empregada tinha terminado um curso numa universidade ou no ensino politécnico. Trata-se da percentagem mais elevada de que há registo, uma viragem para a qual os números do Instituto Nacional de Estatística (INE) vinham apontando e que agora se afirma com maior expressão.

A título de exemplo, em 2005, apenas 16,1% da população empregada tinha o ensino superior; em 2010, a percentagem subiu para 19,4% e, em 2012, passou a barreira dos 20%.

A par da subida do emprego nas pessoas com ensino superior ou secundário completo, os números mostram que nos níveis de escolaridade inferior há quebras que são tanto mais acentuadas quanto menor é o nível de ensino. No final do ano passado, apenas a população empregada que terminou o ensino secundário ou pós-secundário (5,7%), o superior (2,5%) e, em menor dimensão, o 9.º ano (0,9%) registou um crescimento. Nos outros níveis de ensino, houve perda de postos de trabalho.

Para João Cerejeira, economista e professor na Universidade do Minho, este é o “dado mais relevante” da evolução do mercado de trabalho em Portugal nos últimos anos. “Há sinais evidentes de uma mudança estrutural da economia com reflexos no emprego criado”, nota. “Desde há duas décadas vários autores têm chamado a atenção para uma mudança da tecnologia de produção que favorece os trabalhadores mais qualificados relativamente aos menos qualificados, com ganhos de produtividade mais acentuados dos primeiros, o que faz aumentar a sua procura. Esse fenómeno poderá estar a acontecer com mais expressão em economias como a portuguesa e ter sido acentuado com a quebra do emprego na construção e em indústrias intensivas em trabalho não-qualificado que foram afectadas pela concorrência internacional”, explica ao PÚBLICO.

O secretário de Estado do Emprego, Miguel Cabrita, diz que ainda é cedo para dizer se estaremos perante uma alteração do perfil do emprego criado. “O ano de 2015 não foi ainda um ano de plena normalização do nosso mercado de emprego e será necessário perceber se algumas tendências observadas se mantêm”, refere.

Também Pedro Martins, economista que ocupou a pasta do Emprego na primeira metade da anterior legislatura, é cauteloso: “Parte das mudanças pode relacionar-se também com alterações ao nível do perfil dos trabalhadores”, que são mais qualificados, é certo, mas podem estar a exercer profissões menos qualificadas.

Os maiores aumentos

Olhando para os principais sectores de actividade, o maior aumento percentual do emprego entre o quarto trimestre de 2014 e o de 2015 ocorreu na indústria (3,6%). Nos serviços, que concentram quase 68,5% da população empregada, a subida foi de 1,8%. A agricultura continua a perder emprego (-7,1%), acentuando-se uma tendência desde o início de 2013.

Numa análise mais fina, e tendo por base o número absoluto de postos de trabalho criados, foi nas profissões relacionadas com os serviços pessoais de protecção e vendedores que o emprego mais aumentou. O INE dá conta de mais 57.700 postos de trabalho nestas áreas no final de 2015.

Ana Vieira, secretária-geral da Confederação do Comércio e Serviços de Portugal, lembra que, “globalmente, o sector dos serviços demonstrou maior capacidade de resistência em termos de emprego, durante todo o período de crise, tendo-se registado, na maioria dos anos, criação líquida de postos de trabalho”. E no último ano destaca “melhorias em serviços às empresas, decorrentes, por exemplo, da instalação ou expansão de centros de serviços (quer serviços tradicionais, quer serviços de valor acrescentado)”.

As profissões relacionadas com as actividades intelectuais e científicas (onde se enquadram os profissionais de saúde, professores, especialistas em tecnologias de informação e comunicação, além de outras profissões, como engenheiros) foram o segundo grupo que mais emprego criou. Marine é, de resto, uma das 27.200 pessoas que conseguiram emprego nesta área.

Mas se, por um lado, há mais emprego (os tais 70 mil postos de trabalho criados), este aumento tem sido feito, em grande parte, à custa de contratos não permanentes. A contratação sem termo continua a ter o peso mais significativo no total da população empregada por conta de outrem e registou um aumento homólogo (1,3%), mas foi nos contratos a prazo que a subida foi mais significativa (7,1%). A boa notícia é que os outros tipos de contrato (onde se incluem os "recibos verdes") recuaram 5,9%.

O economista João Cerejeira considera “relevante” o facto de estes dados evidenciarem uma passagem da contratação "por recibo verde" para a contratação a prazo. Isso, refere, pode ter a ver com a reforma da legislação laboral de 2012, “que diminuiu as indemnizações por despedimento em ambos os regimes contratuais, tornando a contratação com ou sem termo mais atractiva relativamente ao recurso a trabalho independente”.

Miguel Cabrita tem dúvidas de que as mudanças na lei laboral tenham tido os efeitos desejados na redução da segmentação do mercado de trabalho. E destaca que o “desfasamento entre o ritmo de crescimento dos contratos sem termo e a termo é um aspecto sintomático de uma recuperação débil do mercado de trabalho”. O secretário de Estado lembra que o rimo de crescimento da contratação a termo em 2015 “foi francamente superior” ao dos contratos sem termo e alerta para o facto de 67% dos jovens a trabalhar por conta de outrem terem vínculos a prazo.

Neste campo, a história de Marine não é muito diferente da dos jovens da sua idade: o seu primeiro emprego é a prazo e o salário, que não chega aos 900 euros, não lhe permite poupar o que gostaria, obrigando-a a partilhar casa com amigos. “Vi este trabalho como uma oportunidade de entrar no mercado de trabalho”, diz, com entusiasmo. "Um primeiro passo que me abrirá a porta a outras oportunidades que hão-de surgir”.

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Oportunidade de regresso

Uma oportunidade era o que Eduarda Prata, de 48 anos, procurava para voltar a entrar no mercado de trabalho depois de três anos de desemprego. Foi funcionária comercial em várias empresas da área da comunicação social, até ser atingida por um despedimento colectivo.

Do tempo de desempregada não tem boas recordações: do centro de emprego nunca recebeu qualquer oferta de trabalho, apenas fez formações que de pouco lhe serviram. Acabou por regressar ao activo aproveitando o boom do mercado de arrendamento em Portugal. Deixou para trás uma carreira na área do marketing e publicidade e agora trabalha no departamento de arrendamento de uma imobiliária em Cascais.

“A actividade era-me muito distante e em termos profissionais tive de aprender tudo de novo”, conta.

Eduarda é a excepção que confirma a regra, uma vez que está precisamente na faixa etária que mais dificuldades tem em reentrar no mercado de trabalho. Entre 2014 e 2015, a faixa entre os 45 e os 54 anos foi uma das que perderam emprego. O emprego que se criou foi sobretudo entre a população de 55 a 64 anos ou com 65 ou mais anos, além dos jovens dos 15 aos 24.

Também a profissão que agora desempenha (que se encaixa naquilo que o INE designa como técnicos e profissões de nível intermédio) está entre as que mais emprego perderam.

Receios de abrandamento

Depois de 21 trimestres em terreno negativo, o emprego começou a recuperar na segunda metade de 2013 e a tendência tem-se mantido. Mas tanto o Fundo Monetário Internacional como a Comissão Europeia alertam que o ritmo de criação de emprego verificado até agora (e muito influenciado pela emigração) vai abrandar e ficará alinhado com o crescimento da economia.

Para João Cerejeira, estes receios têm por base o que aconteceu em períodos anteriores. De 1999 a 2008, lembra, para que o emprego crescesse 1% era necessário uma variação do PIB de 3%. No período de 2012 a 2014 esta relação foi praticamente de um para um: a variação do PIB foi -1,4%, enquanto a do emprego foi de -1,7%. “Ora, em condições de funcionamento da economia normais, ou seja, com o PIB a crescer de acordo com o seu potencial, é de esperar que o emprego cresça a um ritmo inferior ao do PIB devido aos ganhos de produtividade. Se o crescimento anual do PIB estabilizar em torno dos 2%, o emprego deverá apresentar um crescimento no intervalo de 0,4% a 0,6%, aproximando-se esta relação dos valores observados antes de 2011”, explica em declarações ao PÚBLICO.

Já o antigo secretário de Estado do Emprego Pedro Martins atribui estes receios das instituições internacionais a outros factores que acabarão por influenciar também o crescimento da economia. “Os aumentos do salário mínimo de Outubro de 2014 [decidido pelo Governo anterior] e Janeiro de 2016 [já com o executivo de António Costa], o regresso das portarias de extensão, a redução do financiamento disponível para medidas activas de emprego são factores que contribuem para a desaceleração do crescimento do emprego. Nessa medida, também tornam mais difícil o próprio crescimento da economia”, justifica.

Para o agora professor da Universidade de Londres, são dois os principais desafios que se colocam ao mercado de trabalho em Portugal. O principal é a perspectiva de “quase estagnação do investimento privado”. O outro tem a ver com “a aparente consolidação do desemprego estrutural em níveis muito elevados, perto dos 10% da população activa”.

Desafio da qualificação

João Cerejeira não tem dúvidas de que o principal problema do mercado de trabalho em Portugal é a qualificação dos trabalhadores, “seja por via da educação formal, seja por formação no posto de trabalho”. “No futuro, é de esperar que as tendências mais recentes se reforcem: uma cada vez maior dificuldade de integração no mercado de trabalho dos jovens ou dos mais velhos desempregados que têm uma formação inferior ao ensino secundário”, alerta.

O outro desafio tem a ver com a necessidade de diminuir a segmentação existente entre contratos a prazo e sem termo. “A legislação laboral deverá dar alguma protecção aos trabalhadores relativamente ao risco de negócio das empresas, mas não deverá inibir estas de contratarem sem termo, de forma a evitar uma excessiva rotação do emprego que prejudique a formação profissional e a aprendizagem no posto de trabalho”, sugere.

Neste ponto, Cerejeira e Miguel Cabrita estão de acordo. “Além do desemprego e das suas manifestações mais graves e do desafio estrutural das qualificações, temos também desafios do ponto de vista da redução da segmentação do mercado de trabalho”, alerta o responsável pela pasta do Emprego.