GES terá usado veículo financeiro para pagar despesas extras sem registo dos destinatários

Os pagamentos eram feitos através de um veículo chamado Espírito Santo Enterprise que movimentou centenas de milhões de euros e que estará já na mira das autoridades judiciais.

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Paulo Pimenta

Ao longo da última década, a Espírito Santo Enterprise, com sede num paraíso fiscal, pode ter recebido centenas de milhões de euros destinados a gastos não documentados e a distribuições a terceiros, apurou o PÚBLICO. A confirmar-se, a suspeita possibilitará a clarificação das relações entre elementos do núcleo duro do GES e entidades fora da esfera familiar. A Espírito Santo Enterprise recebia fundos via sociedades suíças (veículos Eurofin) e as verbas movimentadas poderão estar perto dos 300 milhões de euros.

A pista do “mealheiro” criado para eventuais despesas excepcionais sem registo contabilístico e que são susceptíveis de ter sido usadas para fazer pagamentos sem ter de se revelar o destinatário estará já no radar do Ministério Público, que tem em mãos vários inquéritos ao GES/BES e a alguns gestores. O PÚBLICO sabe que, depois de um retiro silencioso no Brasil, o ex-contabilista do GES, Machado da Cruz, tem estado em Lisboa e já prestou esclarecimentos às autoridades, admitindo-se que este tema possa ter sido abordad, dadas as relações fortes entre a Espírito Santo Enterprise e os veículos Eurofin. Alexandre Cadosch, à frente do Eurofin Securities, terá detectado, a dada a altura, movimentos estranhos com origem no grupo e destino à Espírito Santo Enterprise. 

De acordo com o que Ricardo Salgado afirmou, numa reunião do conselho superior do GES, e cujas transcrições foram já tornadas públicas, a Eurofin Securities dava “um jeitão ao grupo em várias áreas”. Os veículos Eurofin foram criados em 1999, mas deixaram de pertencer ao GES em 2009, ainda que permanecessem a operar no seu universo como um “pólo oculto”.

O ex-contabilista do GES e gestor de empresas do grupo em Miami e América Latina nunca teve uma relação directa com a Espírito Santo Enterprise, mas foi até Março de 2014 administrador não executivo da Eurofin Group sem mandato em relação ao BES e ao GES. Machado da Cruz assumiu ter manipulado as contas da Espírito Santo Internacional-ESI, a seguir à crise financeira de 2008, para ocultar perdas no valor de 1300 milhões de euros, decisão que afirma ter tomado com conhecimento de Salgado, de Manuel Fernando Moniz Galvão Espírito Santo Silva (Rioforte e ES Resources), de José Manuel Pinheiro Espírito Santo Silva (gestor do BES) e ainda de José Castella, controller financeiro do GES.

O Banco de Portugal (BdP) concluiu que, nos meses que antecederam o resgate ao BES, estes veículos sustentaram de forma ilícita as holdings da família Espírito Santo já falidas: a Eurofin Securities serviu para retirar verbas do BES para pagar dívidas do grupo. O governador do BdP, Carlos Costa, reconheceu que parte dos prejuízos do BES, de 3570 milhões de euros, os maiores de sempre da história empresarial portuguesa, estava “relacionada com a realização de operações de colocação de títulos, envolvendo o BES (Londres, Panamá e Luxemburgo), o GES e a Eurofin Securities”, o que determinou um registo de perdas nas contas de 1249 milhões de euros. O supervisor considerou ter havido crime e pediu ao Ministério Público que investigasse.

A 28 de Agosto, já depois do colapso do segundo maior banco, o presidente executivo da Eurofin, Alexandre Cadosch, deu uma entrevista à revista Les Temps em que esclarece que não é amigo de Salgado. "Eu acho que não tenho uma relação além de profissional com qualquer um dos líderes do GES.” E rejeitou responsabilidade no colapso do grupo português por existir uma "grande assimetria" com a Eurofin, alvo de “uma análise interna para estabelecer a ligação com os serviços [desta empresa]. “Nenhuma das subsidiárias do grupo Eurofin, que sempre actuou dentro da lei, colocou ou promoveu produtos de investimento para o GES ou clientes do BES.” 

Salgado recusa prestar declarações
A polémica à volta do ex-presidente do BES, Ricardo Salgado, tornou-se incontornável depois de, a 25 de Julho (uma semana antes de o BES ser intervencionado), ter sido detido para ser ouvido pelo Tribunal Central de Instrução Criminal, de Lisboa, de onde saiu indiciado por crimes graves: burla, abuso de confiança, falsificação e branqueamento de capitais. Através dos seus porta-vozes, Ricardo Salgado tem recusado prestar declarações sobre as informações que vão surgindo sobre a sua intervenção no grupo, por estar sujeito ao segredo de justiça.

Na mesa do Ministério Público está actualmente um pacote vasto de dossiers interligados pelo nome Espírito Santo e que remontam a 2004, quando, em Dezembro, uma agência do BES comunicou às autoridades ter detectado 140 depósitos movimentados pelo tesoureiro do CDS/PP, Abel Pinheiro. A iniciativa deu origem, no ano seguinte, ao caso Portucale (permissão polémica de abate de sobreiros pelo Governo PSD-PP), cujo julgamento terminou com absolvições. E resultou ainda numa nova ramificação: o consórcio alemão que vendeu dois submarinos ao Estado português (900 milhões de euros), quando Durão Barroso era primeiro-ministro e Paulo Portas ministro da Defesa, foi assessoreado pela Escom (a empresa instrumental do GES para negócios não públicos), que recebeu uma comissão de cerca de 20 milhões de euros considerada excessiva para o trabalho prestado.

Nesse ano, de 2005, rebentou a operação Furacão que envolveu vários bancos, entre eles o BES. E em 2009 o Ministério Público tropeçou num esquema de fuga ao fisco e de branqueamento de capitais, conhecido por Monte Branco (2010). Para além dos administradores da Akoya (Michel Canals, Nicolas Figueiredo e José Pinto), a operação Monte Branco “apanhou”, entre outros clientes da gestora suíça de fortunas, três administradores da Escom (Hélder Bataglia, Luís Horta e Costa e Pedro Neto), o seu consultor (Miguel Horta e Costa), dois gestores do BES, Ricardo Salgado e Amílcar Morais Pires, assim como o presidente do BES Angola (BESA), Álvaro Sobrinho (que tal como Bataglia era sócio da Akoya). O BdP solicitou recentemente ao Ministério Público que averiguasse o destino de 3000 milhões de euros desaparecidos do BESA.

A Escom voltou a estar em foco quando, em Janeiro de 2011, foi assinado o contrato de venda de 100% da empresa (negócio que não se completou) ao banqueiro luso-angolano Álvaro Sobrinho, que entregou um sinal de 67 milhões que saiu do BESA. Deste montante, parte destinou-se à aquisição da Opway Angola e 52 milhões foram depositados na ES Resources, mas podem ter desaparecido entretanto. A ser verdade que os 52 milhões não estão na ES Resources (agora Rioforte), as autoridades podem estar à procura de confirmar para que “conta” transitou a quantia. 

O tema Escom regressou recentemente ao espaço público com a leitura das transcrições das gravações das conversas nas reuniões do conselho superior do grupo familiar, em particular. A 7 de Novembro, Salgado explicou que, para além dos cinco membros do núcleo duro do GES (António Ricciardi, Salgado, Manuel Fernando Moniz Galvão Espírito Santo, José Manuel Espírito Santo Silva, Mário Mosqueira do Amaral), havia uma sexta pessoa que recebeu uma fatia da comissão da venda dos submarinos alemães a Portugal: “E vocês têm todo o direito de perguntar: mas como é que aqueles três tipos [Bataglia, Neto e Horta e Costa] receberam 15 milhões? A informação que temos é que há uma parte que não é para eles. Não sei se é ou não é. Como hoje em dia só vejo aldrabões à nossa volta… Os tipos garantem que há uma parte que teve de ser entregue a alguém em determinado dia.”

Os gestores da Escom, Bataglia, Horta e Costa e Ferreira Neto, já comunicaram ter recebido 15 milhões de euros da comissão que lhes foi paga pelo consórcio alemão GSC, da Man/Ferrostaal, enquanto os cinco membros do conselho superior do GES afirmam que a Escom lhes entregou a título de bónus cinco milhões. Há quem admita que a sexta pessoa possa ser (ou não) Miguel Horta e Costa, de 64 anos, ex-MRPP. Mas o ex-consultor da Escom veio colocar achas na fogueira, ao admitir, a 3 de Agosto, na comissão de inquérito parlamentar ao caso submarinos, que conhecia “Durão Barroso há séculos”, quando ambos militavam no MRPP: “Ele [Barroso] era um miúdo.” E, sendo ele, Horta e Costa, “um homem das máquinas”, “tipo do material”, não se dá com “muita gente na política”. “O meu trabalho é simplório. Eu ando na estrada.” Declarações ruidosas.

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