Uma década depois, o sonho do Alqueva ainda está por cumprir

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O envelhecimento da população não foi alterado com a construção da barragemA marina da Amieira é o projecto turístico mais bem sucedidoLegenda Miguel Manso

Turismo tarda em arrancar. As populações ribeirinhas continuam pobres. E o regadio beneficiou sobretudo as grandes explorações

Encostado ao balcão de um café da Amieira, concelho de Portel, Elídio Zorro beberica um chá, enquanto dá dois dedos de conversa com quem ainda almoça. "Estávamos todos à espera de melhor vida!" E o lago ali tão perto.

Há dez anos atrás, quando as águas do Alqueva começaram a apoderar-se dos montes acostumados ao braseiro do Verão e aos rigores da invernia, já Elídio não tinha idade para grandes aventuras. Limitou-se a crer no que estava para vir. Os mais novos já não iam ter que penar de sol a sol, como ele, que, para escapar à sina, se foi encafuar numa fábrica de conservas em França. Agasalhado com o pelico, o colete de pele de carneiro com as mangas pequeninas dos pastores, o septuagenário desfere, implacável: "Era para dar algodão, tomate... Mas agora não há emprego numa terra que sempre foi de trabalho. A barragem não está aqui a fazer nada. O Alentejo está morto!"

Pelas aldeias de ruas vazias e casas brancas tanto os velhos como os poucos novos que ainda não abalaram falam do logro. Várias décadas depois do desígnio salazarista dos anos 30 de tranformar no celeiro da nação as terras do Alentejo, chegaram as novas promessas do Eldorado: afinal não era o trigo, mas sim a água em abundância que ia salvar a região, por via das culturas de regadio e do turismo politicamente correcto, ecológico e não massificado. Para uns, o sonho está a cumprir-se. Outros, porém, ficaram irremediavelmente de fora, quais danos colaterais de um progresso que teima em ficar só nas mãos de alguns.

Antes de fazer 18 anos Vanessa Freitas mudou-se para águas menos paradas. Nascida na aldeia da Estrela, um verdadeiro fim de linha na estrada, rumou com os pais a Portimão já depois de a albufeira encher. Era isso ou desistir de seguir os estudos, ela e e irmã. E o grande lago ali tão perto, a rodear a aldeia quase por todos os lados. "No início vinha muita gente de fora comprar produtos da terra", recorda a aluna de Gestão. "Quando passou a novidade, voltámos a ser mais uma aldeia no Alentejo. Com a desvantagem de que as pessoas que tinham os seus terrenos ficaram sem eles", porque em muitos dos sítios onde dantes se semeava agora existe água. O dinheiro que as populações receberam à laia de indemnização gastou-se. E as promessas de desenvolvimento, essas, ficaram bastas vezes pelo caminho.

Não era para ser assim. Tanto para a aldeia da Estrela como para dezena e meia de outras povoações suas irmãs situadas em redor da barragem, o céu era o limite, quando a barragem começou a encher. Os projectos turísticos iam travar o despovoamento e revitalizar as localidades ribeirinhas, reconvertidas em "aldeias brancas e floridas". Na realidade, pouco mudou em muitas delas. "Os turistas chegam aqui, olham para a água e dão meia volta, abalam outra vez", descreve um reformado. "A Câmara de Moura não deixa fazer nada. Isto aqui acabou." Nem crianças há. A única que existe na aldeia é emprestada: mora metade do tempo aqui, porque o avô tem de ajudar os pais, que já cá não moram, a criá-la.

Na célebre Aldeia da Luz, transferida há dez anos de um sítio para o outro como num simples jogo de Lego, as tardes na sociedade recreativa passam à custa da Sagres na mão. "As excursões chegam, vêem o museu [evocativo das tradições da região] e vão-se embora", diz Belchior Almeida, um distribuidor de jornais de 45 anos. Desde que se deu a trasfega, paga a peso de ouro - "O dinheiro aqui gasto dava para construir duas aldeias", calcula um habitante - , a Aldeia da Luz já perdeu cerca de uma centena dos seus 400 habitantes, mau grado as casas novas que todos receberam, a escola a estrear, que entretanto já esteve para fechar as portas por falta de clientela, e outras mordomias pouco comuns por estas bandas. O presidente da junta, Francisco Oliveira, não se conforma. "A população sente-se enganada mais do que nunca", vocifera. "À Aldeia da Luz o Alqueva não trouxe benefício nenhum. Estão a matar a pouco e pouco o Alentejo." O autarca social-democrata responsabiliza os sucessivos governos por o desenvolvimento das aldeias ribeirinhas nunca ter passado de uma miragem. "Gastou-se o dinheiro dos portugueses e não se serviu as populações. Isto foi feito à medida dos interesses de quatro ou cinco potências imobiliárias." Depois, acrescenta, "os agricultores não têm qualificações para gerir as infra-estruturas de regadio que foram criadas".

Nascido num dos concelhos mais beneficiados pelo Alqueva, Ferreira do Alentejo, e apologista dos benefícios trazidos pela barragem, o ex-ministro da Agricultura Sevinate Pinto põe também o dedo na mesma ferida: "É inconcebível como a Empresa de Desenvolvimento e Infra-estruturas do Alqueva gastou centenas de milhões de euros em cimento e nunca investiu um tostão em conhecimento."

A água do Alqueva "já está a regar áreas muito significativas do Alentejo", frisa o ex-governante. "Graças em grande parte a ela o país atingiu a auto-suficiência na produção de azeite", por via do muito olival novo entretanto plantado. Sevinate Pinto fala ainda do surgimento de centenas de hectares de pomar, frutos secos e vinha para defender os proveitos daquele que considera ser "o maior e mais promissor projecto agrícola português das últimas décadas".

"Claro que é muito difícil converter um agricultor de sequeiro num de regadio, especialmente uma pessoa de 50 ou 60 anos e sem capacidade de investimento", reconhece. "Mas 46% da população do Alentejo vive da Segurança Social. É uma precipitação dizer que o bebé Alqueva está morto." De facto, nem todos se queixam.

A caminho da Amieira, no concelho de Portel, por estradas de terra batida sem placas de orientação, a monótona paisagem acastanhada do montado de azinho e de margaças, pequenos malmequeres que floresceram este ano antes do tempo, começa a mudar. Depois de muito se palmilhar surge um cenário deslumbrante, a planura da terra a unir-se com o azul dos braços do grande lago. Os montes mais altos que escaparam à subida das águas transformaram-se em ilhas e a passarada anima as margens tranquilas do grande lago. Para se chegar à marina da Amieira tem de se voltar ao alcatrão. É aqui que moram as casas-barco, o projecto turístico mais bem sucedido do Alqueva. Mesmo sem carta de marinheiro ou sequer de condução, pega-se numa embarcação munida de kitchnetee beliches e explora-se as maravilhas do mar interior sem necessidade de voltar à base durante 15 dias. Se na época baixa 30 euros por dia e por pessoa chegam para a aventura, na época alta a brincadeira fica bem mais cara. Ainda assim, a empresa está bem de saúde e recomenda-se. "Se o nosso modelo de negócio tivesse sido criado na dependência de outros projectos turísticos já não existíamos", considera o administrador Eduardo Lucas. "Todos os projectos com grande carga de construção ressentiram-se com o fim da bolha imobiliária".

Um deles fica ali mesmo ao lado. Debruçada sobre as águas, a pacífica propriedade onde ainda existe uma residência de caça d"el-rei D. Carlos vive agora dias de algum bulício. Homens e máquinas estão a transformar a herdade de Roncão d"El Rei num complexo turístico com golfe. O terreno de jogo há-abrir lá para o Outono, seguindo-se-lhe um hotel. Quando funcionar em pleno, a herdade empregará mil pessoas. "Dos vários projectos turísticos de grande dimensão para o Alqueva, foi o único que avançou", salienta o seu proprietário, José Roquette. "E foi declarado o seu interesse estratégico nacional". Quando recebeu o cognome de Parque Alqueva, o projecto era bem mais ambicioso: espalhado mais duas herdades e com um prazo de execução de 15 anos, incluía dois portos de recreio, 17 mil camas, equipamentos recreativos, desportivos e culturais e ainda plataformas de aterragem de helicópteros, num investimento da ordem dos 974 milhões de euros. José Roquette não sabe dizer neste momento o que disto tudo irá por diante. As obras nas outras duas herdades "estão adiadas sine die", admite.

"Fez-se muito pouco" até agora para aproveitar o Alqueva, nomeadamente no que à agricultura de regadio diz respeito, observa José Roquette. Daqui em diante, antevê, poderá ser ainda pior: "O Estado não tem um tostão para fazer seja o que for. Vamos comer o pão que o diabo amassou". com Carlos Dias

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