JULHO DE 1956 O PAÍS ADORMECIDO EM QUE A GULBENKIAN NASCEU

Em Julho de 1956, os jornais portugueses publicavam os estatutos da recém-criada Fundação Calouste Gulbenkian. A secura das notícias não deixava perceber que nascia ali, por decisão de um milionário arménio que morrera em Portugal, a instituição que mudaria a paisagem cultural,
e não só, de um país onde 40 por cento da população
ainda era analfabeta. Por Alexandra Prado Coelho

A televisão só chegaria no final da década (em 1957), o cinema era o divertimento mais popular, o teatro de revista arriscava uma muito tímida sátira política, Laura Alves e Villaret faziam sucesso no Monumental, Tony de Matos era o fadista da nova geração, na rádio ouvia-se o "folhetim do Tide", também conhecido como "o romance da coxinha", e a Festa das Costureiras figurava ainda entre os grandes acontecimentos de uma Lisboa na qual a Feira Popular, no Parque da Palhavã, era, diziam os jornais, o "recanto mais atraente".Foi no país do fado, Fátima e futebol que Calouste Gulbenkian, zangado com a Inglaterra que lhe confiscara os bens durante a guerra, viveu os últimos anos da sua vida, e foi numa Lisboa semiadormecida que decidiu instalar a sede da sua fundação. A 18 de Julho de 1956, no primeiro aniversário da sua morte, os principais jornais portugueses anunciavam a criação da Fundação Calouste Gulbenkian.
A notícia vinha na primeira página de O Século, séria, institucional. Um longo título, "Terá fins caritativos, educativos e científicos, a Fundação Gulbenkian, que foi instituída por decreto-lei, com a aprovação dos seus estatutos", seguido da publicação integral dos estatutos - exactamente o mesmo que fizeram o Diário de Notícias e o Diário de Lisboa.
Ao lado, no Século, noticiava-se que "em Paris [começa] a realizar-se o sonho que irão viver na Disneylândia" os vencedores do concurso da Fábrica de Chocolates Regina, "que tem no nosso país o exclusivo da reprodução dos desenhos de Walt Disney nas suas embalagens". No Diário de Notícias, a notícia sobre a Gulbenkian tinha a concorrência, com grande destaque, das "memórias da Duquesa de Windsor, em exclusivo para Portugal".
Mas nos dias seguintes, nas páginas culturais, os jornais voltavam ao tema, com textos elogiosos sobre Calouste Gulbenkian - e, sobretudo, sobre o país que o acolheu. "Ansiava por paz, sossego, repouso, segurança e tranquilidade! A Europa recusava-lhe o que Portugal lhe ofereceu. Por isso amou o nosso país", lia-se no Século, num texto intitulado "Gratidão a Portugal".
O mesmo tom marcava um artigo na página Artes e Letras do Diário de Notícias: "Gulbenkian viveu os derradeiros anos da sua vida em Portugal, respirando o nosso ar calmo, confiado ao cuidado dos nossos médicos, tratando com a nossa gente, que ficou a amar para além da morte."

Deserto culturalEra um Portugal ainda à espera da mudança, o desses anos 50, em que a Gulbenkian nasceu. "É difícil imaginar o que "a Fundação" - era assim que significativamente era designada - representava no deserto cultural português dos anos 1950", escreve Maria Filomena Mónica no seu livro de memórias Bilhete de Identidade. "À época não havia, em Lisboa, uma orquestra de câmara decente, um anfiteatro que albergasse um conjunto sinfónico, um corpo de bailado que soubesse dançar. Pelas aldeias nunca tinha passado um livro."
Só na década seguinte, a de 60, é que as coisas começariam verdadeiramente a transformar-se. O sociólogo António Barreto, autor de um estudo - e de uma série documental em preparação para a RTP - sobre as mudanças sociais em Portugal entre 1960 e 1995, considera que os anos 50 são uma espécie de "alto cume do regime".
Com o fim da II Guerra Mundial e o início da Guerra Fria, o Portugal de Salazar "conseguiu ser reconhecido e aceite pelos aliados democráticos", diz Barreto, e integrou-se em organizações como a NATO, as Nações Unidas (1954), sendo um dos membros fundadores da EFTA (Associação Europeia de Comércio Livre, em 1959). Ao mesmo tempo, internamente, havia da parte da população "uma espécie de reconhecimento [a Salazar] pela nossa neutralidade durante a guerra".

Difícil acesso ao liceuCom uma situação económica relativamente confortável, foram lançadas as bases do desenvolvimento económico (primeiro Plano de Fomento, o plano nacional de electrificação, as primeiras grandes barragens, o plano de estradas), mas, sublinha Barreto, "dos planos do Governo está estranhamente ausente tudo o que é social, seja educação, saúde pública ou segurança social".
E a situação social era de enorme atraso: num país muito rural, 40 por cento da população era analfabeta, só 18 por cento das mulheres eram assistidas por médicos nos partos (anos 60), a Segurança Social abrangia no máximo 100 mil pessoas, deixando um milhão de inválidos e idosos sem qualquer tipo de assistência.
Apenas entre 15 e 20 por cento das mulheres eram empregadas, e a esmagadora maioria destas eram criadas. Havia no país quatro universidades, e cerca de 22 mil estudantes universitários.
Barreto, que passou a infância e adolescência em Vila Real, lembra-se que no seu liceu, único do distrito, havia duas turmas, num total de 40 alunos. "A barreira não era o acesso à universidade, era à parte final do liceu." Para frequentar o liceu, um aluno tinha que mudar-se para a cidade onde existisse um, pagar um quarto e viver sozinho aos 15 anos.

Bailes dos bombeiros e cineclubes
O panorama cultural era "paupérrimo", sobretudo na província, confirma o sociólogo. "Era uma vida em surdina, a vida cultural portuguesa." Em Vila Real, alguns (poucos) esperavam avidamente os jornais vindos da capital, O Século e o Diário de Notícias, que chegavam um dia depois. E os grandes acontecimentos - além do tradicional Baile dos bombeiros, oportunidade para os "magalas" conquistarem as criadas - eram os muito esporádicos espectáculos de música clássica. "No ginásio do liceu, com uma senhora a tocar piano, outra violino, vinham 30 ou 40 pessoas, o notário e o médico com os seus casacos brancos, se estávamos no Verão."
O divertimento comum a todas as classes sociais, nas grandes cidades e na província era, sem dúvida, o cinema, apesar de a censura cortar implacavelmente todas as referências vagamente políticas, assim como todos os beijos. "Os cineclubes [havia 24 nos anos 50] e os grupos de teatro universitários eram praticamente os únicos refúgios" para os jovens que se interessavam por cultura, diz Barreto. E os cineclubes beneficiavam de uma "pequeníssima tolerância da parte da censura": aí podia-se ver na íntegra o filme Casablanca, que nos cinemas aparecia sem a célebre cena em que todos se levantam ao ouvir a Marselhesa.
Portugal mantinha-se quase incólume às influências vindas do exterior. Mas algumas chegavam. Os jornais, onde a política interna não podia ser discutida, noticiavam a revolta da Hungria contra a União Soviética, e as preocupações crescentes com o indomável Presidente Nasser do Egipto, que em 1956 anuncia a nacionalização do Canal do Suez.

Aparece a televisãoCulturalmente, eram os tempos da juventude inquieta. Elvis Presley já abanava as ancas e encantava os adolescentes, Elia Kazan e Nicholas Ray filmavam James Dean - A Leste do Paraíso estava em exibição em Lisboa, no cinema Lys, na Avenida Almirante Reis, em Julho de 56. Mas "Portugal era um país diferente", resume Filomena Mónica em Crónicas da Vida Portuguesa, referindo-se ao início dos anos 60: "Quando, em King"s Road, as saias subiam, no Estoril as adolescentes eram obrigadas a usar fato de banho com longo saiote. [...] Quando, em Liverpool, os Beatles faziam andar à roda a cabeça das adolescentes, e Lisboa vibrava-se com António Calvário."
Portugal ainda seria "diferente" durante muito tempo. Mas no final da década de 50 os sinais de mudança já começavam a surgir. Em 1957, aparecia a televisão (Barreto lembra-se como a praça central de Vila Real se encheu logo às seis e meia da tarde para assistir a essa primeira emissão, que só começava às oito, e que era transmitida nos televisores de uma loja de electrodomésticos; em Lisboa as emissões experimentais tinham já provocado uma invasão da Feira Popular, onde podiam ser vistas). Em 1958 o general Umberto Delgado desafiava o regime de forma inédita com a sua candidatura à presidência da República, e no início da década seguinte começava a guerra em Angola, e a seguir na Guiné e em Moçambique.
Por essa altura já as bibliotecas itinerantes da Gulbenkian percorriam o país levando livros onde eles não existiam; já os primeiros bolseiros da fundação tinham partido para o estrangeiro; já os artistas plásticos recebiam prémios e oportunidades para expor; e já pequenos grupos de teatro por todo o país tinham o apoio financeiro para fazer os espectáculos com que há muito sonhavam.
O país ainda sufocava - mas um bocadinho menos.

Muitos dados são do livro
"Portugal Século XX. Crónica
em Imagens 1950-1960",
de Joaquim Vieira, de onde
foram retiradas as fotografias

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