Governo quer acabar com barreiras ao eucalipto
O eucalipto vai ser considerado uma "espécie normal" na legislação, mas o projecto de Governo levanta receios quanto ao equilíbrio da floresta
Trinta anos, dezenas de leis e um sem-número de polémicas depois, o eucalipto vai passar a ser considerado uma espécie em igualdade de direitos com o pinheiro-bravo na legislação nacional. Nos anos 80, o fotógrafo Fernando Veludo captou para o Expresso uma imagem que influenciou até hoje a política florestal e a ideia que os portugueses têm dos eucaliptos, com soldados da GNR a investirem sobre camponeses em Valpaços em protesto contra uma nova árvore que lhes iria roubar a água e matar as culturas tradicionais. Hoje o Governo acredita que o medo dos eucaliptos faz parte da história, por força da experiência e da investigação. E propôs para discussão pública um projecto de decreto-lei que considera esta espécie tão normal como um pinheiro ou um carvalho.
Se a lei for aprovada, no futuro todos os produtores que queiram arborizar um terreno até cinco hectares (o equivalente a cinco campos de futebol) não terão nem de apresentar projecto nem de esperar a sua aprovação. Basta-lhes fazerem uma comunicação ao Instituto da Conservação da Natureza e Floresta (ICNF). Mais polémica ainda é a intenção do Estado de prescindir de licenciar projectos para rearborização de áreas até 10 hectares. A legislação de 1988, por exemplo, obriga a que uma área ardida tivesse de ser replantada com a mesma espécie; agora, o proprietário de um pinhal destruído por um incêndio pode reocupar esse terreno florestal com a espécie que mais lhe aprouver.
Em tese, a mudança parece simples. No entanto, os seus impactes relançaram o debate sobre os eucaliptos. Os ambientalistas e os empresários ligados à importante fileira industrial do pinheiro-bravo receiam uma vaga desordenada de eucaliptização. Mas a fileira da pasta e do papel, algumas das mais influentes personagens da agricultura e da silvicultura, como Francisco Avillez ou o ex-ministro Sevinate Pinto, e uma lista de 257 pessoas, empresas e instituições uniram-se num manifesto de apoio ao projecto do Governo.
Por detrás da cortina do debate, o que subsiste são razões de natureza económica. Quer a fileira do eucalipto, quer a do pinho têm de importar todos os anos quase 20% das suas necessidades de matéria-prima (ver texto nestas páginas). Mas enquanto que a área de eucalipto não pára de aumentar, a de pinho está em recuo sucessivo. A explicação é simples: num ecossistema propício, com níveis de precipitação superiores a 800 milímetros por ano, um hectare de eucalipto produz 120 metros cúbicos de madeira, o que, ao final do primeiro corte, dez anos depois, permite um rendimento de quatro mil euros; no pinhal, ainda que ao fim de uma década se possam cortar postes para vedações ou para os sistemas de condução da vinha, são precisos 35 anos até que se possa aproveitar madeira de qualidade para mobiliário, por exemplo. A economia a funcionar, portanto.
Se até agora os proprietários podiam, mediante licenciamento, plantar o que quisessem (o que muda é a dispensa de autorização), nas áreas sujeitas a rearborização há o receio (ou a expectativa, de acordo com os interesses) de que o poder de atracção económica do eucalipto acelere a sua expansão imparável. "Não há necessidade de criar um processo legislativo que pode levar à canibalização de umas espécies por outras", diz Gonçalves Alves, que até há pouco foi director das fileiras da extinta Autoridade Florestal Nacional. Uma visão contraditada por Américo Carvalho Mendes, professor de Economia na Universidade Católica do Porto e presidente da Associação Florestal do Vale do Sousa, que há anos critica a propensão do Estado para olhar a floresta numa perspectiva de "comando e controlo". "O que se faz na floresta depende dos privados", diz Carvalho Mendes, que acrescenta: "As plantações de eucalipto vão acontecer, quer haja esta lei, quer não haja".
Recorrendo a argumentos de natureza económica, João Gonçalves, presidente do Centro Pinus, que está contra a proposta de lei, adverte para o perigo de a floresta portuguesa se resumir a uma monocultura e lembra que "as medidas de política florestal são feitas para o longo prazo". E acrescenta: "o eucalipto, que hoje está na moda, poderá não estar dentro de 15 ou 20 anos". Um alerta que a fileira da pasta não subscreve, lembrando que, apesar das "políticas discriminatórias contra o eucalipto", a área destinada à indústria da pasta cresceu, enquanto a floresta de pinho recuou desde a integração europeia, em 1986, 400 mil hectares, após ter consumido investimentos de 750 milhões de euros.
Liberal ou não?
O ICNF recusa a crítica de liberalização que ambientalistas e organizações profissionais, como o Centro Pinus, lhe dirigem. João Soveral, vice-presidente do Instituto, considera que a dispensa de comunicação não implica a liberalização, porque "não se abdica do cumprimento da lei em matérias como o uso de solo ou a protecção dos recursos hídricos". O que está em causa é o reconhecimento de que o Estado não tem meios para fiscalizar tudo. E também a noção de que, apesar de haver leis que exigem pedidos de licenciamento, a maioria das novas plantações "é feita selvaticamente", nas palavras de João Soares, assessor para assuntos florestais da Portucel-Soporcel. Pelo contrário, a expectativa do ICNF é que, com uma base de dados, todas as informações dos produtores sejam registadas e encaminhadas para as câmaras municipais (que deixam de ter qualquer papel nos licenciamentos), comissões de coordenação regional e GNR. "Assim, a fiscalização do Estado centrar-se-á nas áreas mais sensíveis e nas plantações mais relevantes", augura João Soveral.
A promessa não convence os ambientalistas. "O Estado demitiu-se da sua capacidade reguladora", protesta Eugénio Sequeira, da Liga para a Protecção da Natureza. "95% dos proprietários da zona do pinhal têm menos de três hectares de propriedade, e como se sabe que a exploração do pinho não paga sequer a limpeza dos matos, é de recear que, com as facilidades de arborização e rearborização que a proposta de lei concede, se criem manchas contínuas de eucaliptos", o que pode aumentar os riscos de incêndio e comprometer a biodiversidade. A Quercus, por seu lado, considera que a proposta "apenas visa favorecer as celuloses e alguns produtores florestais interessados na diminuição da burocracia e na desregulação relativa ao eucalipto".
A solução para se preservarem os equilíbrios globais da floresta passa pela aposta no ordenamento. Todos o dizem. "Temos de apostar no ordenamento numa escala vasta que não esqueça os interesses dos proprietários e das suas associações", diz Carvalho Mendes. "Esta proposta de decreto é apenas processual, não dispensa que se legisle em termos do ordenamento florestal", propõe João Soares.
O problema é que os instrumentos de ordenamento aprovados em 2006, nomeadamente os planos regionais de ordenamento florestal, têm as suas metas indicativas das áreas desejáveis para cada espécie suspensas há dois anos. Depois, apesar de estarem registadas no ICNF 162 zonas de intervenção florestal (ZIF), que ocupam 853 mil hectares, e 1245 planos de gestão florestal para 779 mil hectares, o planeamento e a gestão real da floresta não existem. "Só há uma ZIF a funcionar", alerta Eugénio Sequeira; as outras "têm apenas uma existência nominal", acrescenta Carvalho Mendes.