Entre o tigre e o crocodilo
Em 2004, a jornalista do PÚBLICO Simone Duarte entrevistou o rei do Camboja quando este estava exilado na Coreia do Norte, para um documentário independente que realizou em 2004 sobre Sérgio Vieira de Mello. Testemunho de um encontro com um monarca asiático que marcou o século XX
Só não sofri mais do que Jesus Cristo": A declaração do então rei do Camboja Norodon Sihanouk, durante uma entrevista de quase quatro horas, é reveladora de parte da personalidade de um dos líderes mais excêntricos, carismáticos e enigmáticos do século XX, que morreu na passada segunda-feira, aos 89 anos.
Era o mês de Abril de 2004. Estávamos num palácio à espera de um rei. Chovia lá fora. Já tinhamos passado pelos cães que cheiraram o equipamento e pelos seguranças. Norodon Sihanouk não nos abrira apenas os portões do palácio. Abrira-nos a fronteira da Coreia do Norte, o país mais fechado do mundo. Queria falar sobre um amigo querido que morrera.
Parecia um filme. Nós estávamos a fazer um. E o cinema sempre fora uma das paixões de Sihanouk - assinou mais de 30 filmes como realizador. Fora isso que o aproximara de Kim Il Sung quando ambos eram jovens. A amizade fizera com que o fundador da Coreia do Norte tivesse dado, de presente ao rei, aquele palácio nos arredores de Pyongyang, onde estávamos há mais de uma hora, acompanhados por cinco ou seis assessores reais, a preparar o cenário. Num salão, maior do que uma piscina olímpica, tentávamos atender ao pedido do rei venerado pelos cambojanos: queria que o quadro com o rosto da mãe ficasse por cima da poltrona cor-de-rosa em que fazia questão de se sentar para dar a entrevista.
"A minha mãe era astróloga", dir-me-ia mais tarde numa voz impressionantemente fina e com um sorriso nos lábios. "No Camboja, muitas pessoas conseguem dizer-lhe o seu futuro, o seu destino." Será que a mãe lera nos astros o destino do príncipe que se tornou rei aos 18 anos e ao longo das seis décadas seguintes marcaria a história do seu país e do Sudeste Asiático?
"Sou escorpião como De Gaulle [estava enganado]. Prefiro compor e cantar a música suavemente" e aqui referia-se claramente à política. Quase todas as bandas sonoras dos seus filmes são de sua autoria. Mas também gostava de falar. Durante quase quatro horas. Quase um monólogo. E já dissera numa viagem a Paris na década de 1990, citado pelo jornal francês Le Monde: "Sou mais gaullista que os gaullistas". Fora educado em francês entre Saigão, a capital da Indochina francesa, e Paris. Fora também a França que o colocara no trono do Camboja, então parte da Indochina, como uma marioneta fácil de ser manipulada. Mas seria ele, 12 anos depois, quem conseguiria a independência para o Camboja.
Em 1941, torna-se rei. Em 1953, consegue a independência. Em 1955, abdica, assume os cargos de primeiro-ministro e de ministro dos Negócios Estrangeiros. Em 1960, com a morte do pai, volta a ser rei. Em 1970, é destituído num golpe de Estado pelo general Lon Nol apoiado pelos Estados Unidos. Em 1975, volta como rei ao Camboja - desta vez uma marioneta dos Khmer Vermelhos, o regime comunista sanguinário de Pol Pot. Ficou prisioneiro no seu palácio por quatro anos. Em 1979, exila-se na China para fugir da ocupação vietnamita. Em 1991, volta ao seu país para ter um papel fundamental nas primeiras eleições livres desde o fim dos Khmer Vermelhos e o repatriamento dos cambojanos da vizinha Tailândia, depois de 13 anos de guerra civil. Em 2004, abdica em favor do filho.
Que homem de estado do século XX representou tantos papéis diferentes sem deixar de ser o protagonista do filme? - perguntava, nesta última segunda-feira, Jean Claude Pomonti no Le Monde.
"Se nascesse de novo, queria ser professor" - sorri. "Não sou como os príncipes da família real japonesa, que não precisam de se envolver na política. Devia ser o povo a envolver-se na política? Mas que posso fazer se nasci assim? Nasci para fazer política. É a astrologia a determinar."
Pacto com o diabo
Sedutor, egocêntrico. Diplomata. Estratega. Manipulado ou manipulador? "Há um ditado do meu povo que diz que a vida é feita de acordos. Temos que escolher entre sermos comidos pelo tigre ou pelo crocodilo. É uma escolha terrível já que seremos comidos de qualquer maneira."
Para muitos historiadores e críticos de Sihanouk, o maior erro da sua vida foi ter feito o pacto com o diabo. Ter apoiado Pol Pot, quando ainda estava no exílio na China. Os chineses não lhe deixaram outra escolha. Em 1970, apoiara o líder dos Khmer Vermelhos. Foi o "Grande Irmão" Pol Pot que o trouxe de volta como rei e chefe de Estado e transformou o Camboja num gigantesco campo da morte com a instituição do Ano Zero e o genocídio de quase dois milhões de cambojanos em quatro anos. Morreram de fome, de fadiga, torturados ou executados.
"Se tiver que ir ao Tribunal Internacional da ONU (na época ainda não havia sido instituído o Tribunal Internacional para os crimes do regime de Pol Pot ) irei provar tudo. Eu não os ajudei, quando estava na China, como me acusam. Não fui cúmplice dos Khmer Vermelhos. Sihanouk não foi aliado do Khmer Vermelhos. Posso mostrar os documentos em tribunal, todos os documentos necessários para provar que eu fundei a Frente de Unidade Nacional de Kampuchea [grupo que ajudou a derrubar os Khmer Vermelhos). Reuni os que resistiam."
"Um peso insuportável"
E, nessa altura, a entrevista tornou-se num monólogo.
"Vamos falar do genocídio. Os chineses aconselharam os Khmer Vermelhos a manter-me como chefe de Estado. Eu nunca vi os campos da morte. Soube que o meu povo estava privado das suas liberdades e se tornara escravo. Os Khmer Vermelhos suplicaram que eu continuasse como chefe de Estado, eu recusei. Mas eu não sabia dos campos da morte. Os Khmer Vermelhos mataram cinco dos meus filhos e (14) netos. Fiquei preso no palácio em Phnom Penh durante quatro anos. Preso no meu próprio palácio. Não podia ajudar o meu povo. Contei-lhe a minha história com os Khmer Vermelhos. Viu o filme A Paixão de Cristo de Mel Gibson? Só não sofri mais do que Jesus Cristo. Aliás na minha capela tenho o Buda e a imagem de Jesus. Apresentar-me-ei ao tribunal e autorizo que me condenem ou perdoem, como acharem melhor."
O rei nunca chegou a comparecer perante o tribunal. Passou os últimos anos da vida lutando contra o cancro, doença que começara a manifestar-se na década de 1990 e o levou inúmeras vezes a hospitais e tratamentos em Pequim. No seu site (sim, Sihanouk foi um dos primeiros monarcas a adoptar a Internet), reflectia sobre a doença, escrevia poemas, fazia revistas de imprensa e dava receitas culinárias da tia. Em Outubro de 2009 escrevera que não iria viver muito tempo e que esperava logo a morte: "Esta longevidade pesa-me. É um peso insuportável."
Cinco anos antes, tinha sido a morte de Sérgio Vieira de Mello, o chefe da missão da ONU em Timor-Leste e no Iraque, assassinado, em 2003, no atentado contra a sede da organização em Bagdad, que o fizera abrir as portas da Coreia do Norte para participar no documentário independente que realizávamos sobre Vieira de Mello. Sérgio Vieira de Mello e o rei tornaram-se amigos durante o repatriamento dos cambojanos depois de mais de uma década de guerra civil e dos acordos de paz celebrados em Paris em 1991. O rei amado pelo povo tinha sido fundamental para ajudar Sérgio Vieira de Mello a repatriar 300 mil pessoas a tempo das eleições - missão na época considerada impossível.
Para Vieira de Mello, Sihanouk seria sempre lembrado como um dos fundadores do movimento dos países não-alinhados que surgiu na década de 1950, quando o mundo estava dividido entre duas superpotências, Estados Unidos e União Soviética.
Para o biógrafo oficial do rei, o chileno Julio A. Jedres, Sihanouk será sempre um monarca pouco compreendido que se preocupou verdadeiramente com seu povo. Jedres defende que Sihanouk não se aliou aos Khmer Vermelhos em 1970 nem colaborou com eles na década de 1980.
Para o jornalista Bernard Hamel, autor de Sihanouk e o Drama Cambojano, a ambiguidade política e as alianças perigosas de Sihanouk levaram à tragédia do Camboja.
Para mim, é a lembrança de três dias e um encontro extraordinários. Dias que não teriam existido se um rei não quisesse muito aparecer num filme sobre um amigo querido.
Para muitos, o Camboja é ele.Para Norodon Siranouk Varmam, foi o rei comido pelo tigre e pelo crocodilo.