“Os franceses não vão esquecer as manifestações dos lusodescendentes”
O impacto mobilizador da selecção nacional no Euro 2016 poderia ter sido mais potenciado pelas autoridades portuguesas para aprofundar os laços com a vasta comunidade de emigrantes e lusodescendentes, a nível político, económico e cultural, defende Hermano Sanches, vereador da Câmara de Paris.
A França nunca viu uma mobilização tão grande da comunidade luso-francesa como a que se verificou nas últimas semanas em torno da selecção nacional, reveladora da estreita ligação afectiva e cultural existente com Portugal. Em entrevista ao PÚBLICO, Hermano Sanches Ruivo, o primeiro vereador português eleito para o município de Paris, defende que esta é uma oportunidade única para os Governos dos dois países escutarem as reivindicações desta população que ronda 1,5 milhões de pessoas e quer manter uma identidade própria. O reforço do ensino da Língua Portuguesa é uma das prioridades.
Está surpreendido com a mobilização da comunidade portuguesa em França em torno da selecção nacional?
Este Euro mostra duas coisas: por um lado, a maior visibilidade da comunidade portuguesa, que tem sido alvo de várias reportagens nos media franceses nos últimos dias, mas, ao mesmo tempo, revela também uma falta de preparação e coordenação desta mesma comunidade e das autoridades portuguesas. Já se sabia, há muito tempo, que esta competição iria ser aqui e, desde há alguns meses, sabemos que Portugal estaria qualificado. Podiam ter sido preparados e organizados todo o tipos de eventos em redor dessa presença, como outros países fizeram, promovendo encontros, nomeadamente ao nível empresarial e cultural. Poderíamos ter facilmente imaginado o que teria sido a mobilização das 900 associações franco-portuguesas para apoiar a selecção.
Esta mobilização foi totalmente espontânea e não fruto de qualquer tipo de organização?
Exactamente. Não foi o fruto de uma coordenação, nem aqui, por parte da comunidade lusófona, nem por parte do Governo português. E isto é um evento com exposição mundial que acontece uma vez na vida. O que vivemos aqui nestes dias, jamais o viveremos. É preciso ter a honestidade intelectual de reconhecer que deveríamos ter organizado melhor este acontecimento único em 2016. Já por variadas vezes solicitei que fosse criado em França uma espécie de alto comissariado ou alto conselho da comunidade portuguesa em França.
Desenvolveu contactos oficiais para que isso fosse uma realidade?
Sim, junto das autoridades portuguesas, junto aos embaixadores em Paris. Penso que seria fundamental esse alto conselho informal, que fosse composto por pessoas representativas de redes e capacidades para poder orquestrar, por exemplo, a campanha de promoção da língua portuguesa ou da cidadania. É importante que cada um dos portugueses em França esteja inscrito não apenas para as eleições em Portugal, mas também aqui, porque é neste país que podem ter muito mais peso e conseguirem politicamente defender os interesses portugueses, nomeadamente económicos e culturais, mas também defenderem os interesses franceses em Portugal.
Acha que os sucessivos Governos portugueses têm estado mais preocupados no desenvolvimento dos laços com a CPLP do que com as comunidades portuguesas espalhadas pelo mundo, nomeadamente em França, face à sua expressão numérica?
Nenhum partido político português compreendeu completamente essa questão das comunidades. Mas devo reconhecer que o actual primeiro-ministro, António Costa, parece ter outro entendimento sobre a noção de portugalidade e lusofonia e que ela não está apenas restrita aos países de língua portuguesa. Está também em todos os países onde as comunidades portuguesas e lusófonas são de tal maneira importantes e participativas que trazem à lusofonia países suplementares. Isso é um dado novo e algo que apenas ouvi com este Governo e que penso também ter sido compreendido pelo novo Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa.
Acredita que haverá resultados palpáveis?
Quero acreditar que há uma visão nova no que diz respeito à questão das comunidades, porque houve, desta vez, algumas provas concretas, nomeadamente na sequência das recentes visitas destes dois governantes portugueses a França. Elas obrigaram o Presidente francês, François Hollande, a dizer que vai apoiar a língua portuguesa. Neste aspecto, critico o ex-Presidente da República Cavaco Silva, por não ter organizado visitas de Estado a França durante os seus dois mandatos. Anteriormente, nunca houve uma regularidade na pressão junto do Governo francês para serem obtidos resultados palpáveis.
Qual é a dimensão do ensino da Língua Portuguesa em França?
Temos apenas 30 mil pessoas a aprenderem a língua, quando são 250 mil para o italiano, 800 mil para o alemão e 2,5 milhões para o espanhol.
Mas a Língua Portuguesa faz parte dos programas curriculares?
Faz e não faz. Ninguém pode dizer que o português não está nos currículos, porque até poderá estar no programa da Escola Nacional de Administração, que é a escola dos altos funcionários. Estará também nas escolas de comércio e em algumas universidades. Mas como é que podemos aceitar que apenas uma dezena de universidades tenham, de facto, o ensino da Língua Portuguesa nas suas propostas curriculares? Como é que podemos admitir ou entender que ainda tenhamos centenas ou milhares de directores de escolas que simplesmente rejeitam a possibilidade de oferecer a Língua Portuguesa aos seus alunos? A realidade é que não se está a responder a um plano de desenvolvimento do ensino da Língua Portuguesa. Nunca foi algo que tenha sido suficientemente negociado ou pressionado pelos Governos de Lisboa. E temos mais do que as pessoas suficientes potencialmente interessadas em aprender a língua.
Acredita que as novas gerações de lusodescendentes estão motivadas para aprender português?
É verdade que a primeira geração de imigrantes portugueses falava a língua naturalmente; a segunda já começou a esquecer e só falava português em casa com a família. Mas isso não impede que as gerações mais recentes não queiram aprender esta língua internacional, falada no maior país da América do Sul e em vários países africanos. Ela só pode desaparecer se ninguém fizer nada. Aqui em França, por exemplo, se juntarmos aos portugueses aqui nascidos os brasileiros e cabo-verdianos, que são as outras duas grandes comunidades lusófonas importantes neste país, temos um enorme potencial de interessados em aprender a língua. Isto para além dos próprios franceses, que também poderiam ter essa motivação. Lembro que, dos 2,5 milhões de pessoas que estão a aprender espanhol, contam-se milhares de alunos de origem portuguesa. Portugal tem de saber quais são os seus objectivos e eles não podem ser alcançados apenas com a boa vontade do Governo francês. Tem de haver pressão.
Os franceses têm noção da dimensão da comunidade portuguesa?
Tenho de admitir que a França abusou, de certa forma, da característica pacata dos portugueses e lusodescendentes que aqui vivem. Mas todos sabem que a comunidade é grande.
Quando se refere o exemplo da boa integração da comunidade portuguesa na sociedade francesa, falamos mais de uma assimilação?
O sistema francês tem apostado, até aqui, na assimilação. Falam de integração, mas pretendem, na realidade, uma assimilação. E a comunidade portuguesa é um mau exemplo neste aspecto, porque ela está integrada e não assimilada. Dou um outro exemplo: a comunidade argelina está integrada, muito mais do que alguns querem fazer parecer, mas também não está assimilada. Essa noção de assimilação já desapareceu. Acho que é muito melhor a França estar cada vez mais consciente da força e da necessidade destas comunidades e ter um projecto comum, do que persistir em nacionalismos bacocos, referindo-se aos seus antepassados como os gauleses. Não faz sentido.
Qual é a relação afectiva desta extensa comunidade portuguesa e lusodescendente com a França?
Nós amamos a França, não há qualquer dúvida a esse respeito. E, por isso, não compreendemos por que é que as autoridades deste país não têm mais reconhecimento pela comunidade portuguesa. A segunda geração de portugueses que aqui vive, na qual me incluo, que está bem inserida na sociedade francesa, com outro tipo de trabalho e capacidade, quer dizer basta! Queremos que sejam entendidas e respeitadas as nossas origens e volto à questão da língua portuguesa, mas não só. Existe o sentimento que temos de continuar a provar a nossa fidelidade e não entendemos por que é que há uma espécie de condescendência para com a nossa identidade.
Pode dar-me exemplos?
Sim, um deles pode observar-se nos programas desportivos televisivos dos últimos dias, dedicados ao Euro 2016. Entre as dezenas de analistas e participantes não houve um único português ou franco-português. E a final é entre as duas selecções. Os lusodescendentes estão a chegar a um limite, com o sentimento de participarem na sociedade francesa e contribuírem para a mesma, mas não terem contrapartidas. Estão a ver outras comunidades, outras realidades, que são, muitas vezes, mais apoiadas ou, pelo menos, escutadas, ao contrário da portuguesa. Há reivindicações da nossa parte que deviam ser muito mais consequentes, até porque estamos a falar de uma população que rondará 1,5 milhões.
Nem o facto de a selecção portuguesa contar com três lusodescendentes tem despertado a curiosidade dos media franceses?
É verdade e também muito poucos falaram das origens portuguesas da sua estrela Antoine Griezmann. Parecem rejeitar esta realidade.
Acredita que depois deste Europeu nada será como antes?
É evidente que não. Os franceses não vão esquecer as manifestações dos imigrantes e lusodescendentes em redor da selecção nacional. Existem bandeiras portuguesas no exterior de muitas casas. Muitas vezes, as bandeiras dos dois países estão juntas. Mas qual é a estranheza desta situação para os franceses? É que, por exemplo, aqui no 14.º Bairro de Paris, onde vivo, um bairro muito pacato, a bandeira portuguesa está no quinto andar e não apenas no rés-do-chão. Nós também não vamos esquecer. Vivemos numa realidade que não foi suficientemente trabalhada e muitos franceses estão a descobrir agora quais são as nossas reivindicações e qual é a postura da nossa comunidade que muitos pensavam ser apenas pacata e integrada.