Wolfgang Tillmans: “Uma sociedade que tem medo de abordar a sexualidade é vulnerável”
É um dos mais reputados fotógrafos contemporâneos. Fala do ISIS, da importância da noite, de sexualidade e política. Em Janeiro, Serralves recebe a sua primeira exposição individual em Portugal.
Wolfgang Tillmans (Alemanha, 1968) é difícil de sintetizar. Começou por usar uma fotocopiadora em vez de uma câmara fotográfica. Nela, mudava as escalas de fotografias e de fotocópias, investigava as reacções químicas e o mistério da mecânica, descobria “o potencial artístico da fotocópia”.
Nos 90s conquistou um lugar na fotografia contemporânea com retratos das subculturas, da vida nocturna e das comunidades LGBT de Londres, Berlim e Nova Iorque. Fotografou Kate Moss, Damon Albarn (dos Blur), Morrissey, Chloë Sevigny, M.I.A., Lady Gaga, entre muitos outros músicos e modelos, entre muitos anónimos e amigos.
No final da década de 90 começou a criar composições abstractas. Experiências de “controlo e acaso” feitas no laboratório, explorando os efeitos da luz, que resultam em trabalhos irrepetíveis de uma beleza aquosa em erosão (ver as séries Freischwimmer). Foi o primeiro fotógrafo a ganhar o Prémio Turner, em 2000, um dos títulos mais prestigiantes da arte contemporânea europeia. No ano passado foi galardoado pela Royal Academy of Arts e tem exposto em importantes instituições como o Metropolitan Museum of Art, a Tate Britain ou o MoMA PS1. Contudo, nunca esqueceu as revistas de cultura pop: há muito que publica na i-D ou na Spex, por exemplo.
Wolfgang Tillmans, dizíamos, é difícil de sintetizar. Mas todo o seu trabalho – seja uma fotografia de um corpo, de arquitectura ou de pessoas juntas numa pista de dança, que parece suster o tempo – transporta uma dimensão social e política, mesmo quando há uma aparente casualidade. “Há em todo o meu trabalho um interesse pelas pessoas e uma ausência de cinismo. É uma visão que trabalha a inclusão e não a exclusão”, dizia em conversa com o PÚBLICO, um dia depois de ter apresentado uma conferência em Serralves com lotação esgotada, no âmbito do Fórum do Futuro, projecto do Pelouro da Cultura da Câmara do Porto.
Entre 29 de Janeiro e 25 de Abril, o Museu de Serralves recebe Wolfgang Tillmans: No limiar da visibilidade, a sua primeira exposição individual em Portugal, comissariada por Suzanne Cotter, directora do museu. Uma exposição com “paisagens verticais” cujas fronteiras de cores e de horizontes têm também um significado político.
A noite e o clubbing são uma parte bastante importante do seu trabalho. Aliás, ficou conhecido por fotografar a cena de acid house e techno dos anos 90 para a revista i-D. Do que é que estava à procura? O que é que a noite significa para si?
A noite foi uma parte muito importante da minha vida e ainda é. Tem a ver com comunidade, com estarmos juntos. Penso nisso quando penso sobre o que é a vida, sobre aquilo de que gostamos nela, sobre o que tiramos dela. O que sair à noite e dançar tem de bom é a parte irracional. Não segue propriamente nenhuma linha de pensamento lógica e racional e ainda assim é algo verdadeiramente inspirador para mim. Tive tantas ideias interessantes para o meu trabalho que vieram dessas experiências. É um momento utópico… E sempre senti que [a noite] tem de facto relevância cultural. Não é só entretenimento.
A propósito disso: na conferência em Serralves mostrou uma fotografia sua, The Spectrum/ Dagger, feita no ano passado num clube de Brooklyn e disse que a noite em Nova Iorque está a tornar-se cada vez mais controlada e institucional. É mais difícil encontrar hoje a liberdade que encontrava no final dos anos 80 e nos 90s?
Nova Iorque e Londres têm vindo a tornar-se tão mortas num certo sentido… Tão limpas. É tão surreal [em alguns sítios] nos EUA as pessoas não poderem andar na rua com uma lata de cerveja na mão. Respondendo à pergunta: sim [é mais difícil]. Acho que tem a ver com o facto de a nossa sociedade estar a ser cada vez mais higienizada por causa do capitalismo. Por exemplo, a cultura do trabalho – trabalhar é o propósito da vida em 2015. Nos anos 90 isso não era tão óbvio. Tenho noção de que a liberdade que havia em Berlim nessa altura resultou de muitos anos de ditadura e das atrocidades do nazismo. Berlim foi uma excepção, ainda é e espero que assim continue. Mas o capitalismo está a tornar-se um problema cada vez maior. Os leitores que não se identificarem com sair à noite podem pensar nos espaços públicos ou nos festivais de música que estão cada vez mais cheios de publicidade.
O corpo é outro elemento central das suas fotografias. O corpo como fonte de liberdade, de luta política, de felicidade, de desejo sexual. A esquerda Freudiana, ou os radicados Freudianos, como Wilhelm Reich e Herbert Marcuse, defendiam que nenhum programa de transformação social democrática podia ser bem-sucedido sem uma revolução cultural e sexual. Contudo, os governos e as estruturas normativas da sociedade ainda nos querem fazer acreditar que o prazer e o hedonismo conduzem ao caos e à anarquia moral…
Não podia concordar mais com essa questão. Devemos colocar uma componente sexual nas discussões e nas observações políticas. Pensemos no ISIS, o quão reprimidas sexualmente serão aquelas pessoas, ou na pedofilia dentro da Igreja Católica… tem muito a ver com a repressão sexual.
A repressão sexual pode ter também repercussões políticas e sociais, não só individuais. Incluindo a agressão contra o outro, contra a diferença.
Sim, e isso está afastado do debate político. Toda esta violência contra imigrantes estrangeiros… Não quero dizer que é um resultado directo da repressão sexual, mas uma sociedade que tem medo de abordar o corpo, a sexualidade e a diferença sem tabus é sempre uma sociedade vulnerável.
Esteve na Rússia no ano passado, onde fez vários retratos de membros da comunidade queer de São Petersburgo. Em Serralves contou que fizeram uma exposição numa cave e que mesmo assim foi fechada pela polícia passados dois dias. Apesar do medo e das agressões constantes (físicas e psicológicas), há felicidade naquela comunidade? Costuma dizer que as suas fotografias mostram que nada na vida é preto e branco.
Sim. A vida continua apesar das circunstâncias. Tal como no início dos anos 90, quando muitas pessoas estavam a morrer de sida. Elas continuavam a divertir-se, a dançar. Essa coexistência, por assim dizer, é talvez a grande qualidade humana. As pessoas que eu conheci na Rússia têm uma vida, apesar de tudo, e destetariam vê-la descrita como uma completa miséria.
Vai apresentar esse trabalho na sua exposição em Serralves?
Não tenho isso planeado, não.
O que é que nos pode adiantar sobre a exposição?
Vou fazer uma exposição especial em Serralves com fotografias a que chamo "paisagens verticais", que retratam fronteiras entre o céu e o horizonte, entre a água e o céu, entre nuvens e horizonte. São também sobre a distribuição do espaço e da cor… Apesar de estas fotografias serem incrivelmente bonitas, têm um significado simbólico sobre outras questões de distribuição e de fronteiras.
Como a crise dos migrantes?
Como podemos fazer uma distribuição mais justa, a questão das fronteiras que está no coração da discussão política com a crise dos refugiados... Esta mostra em Serralves vem logo a seguir à minha exposição no Hasselblad Center, em Gotemburgo [Suécia] chamada What’s Wrong with Redistribution?. Além disso, em Serralves vou trabalhar e jogar com a arquitectura do museu, com a arquitectura do Siza. Eu e a Suzanne Cotter combinámos fazer algo bastante radical nesse sentido. E talvez integre na exposição algumas fotografias que fiz no Porto, durante estes dias que cá estive... Vai ser algo que eu nunca vi antes [risos].
Por falar em arquitectura, outro elemento presente no seu trabalho… Na Bienal de Arquitectura de Veneza do ano passado apresentou o projecto Book For Architects. Qual é o objectivo deste conjunto de fotografias? Parece-me uma reflexão sobre como os cidadãos usam os edifícios e os vão adaptando às suas necessidades.
O meu trabalho também tem a ver com a forma como a arquitectura molda as nossas vidas. O projecto Book For Architects não tem como objectivo fazer um julgamento sobre o que é ou não é boa arquitectura. É uma mistura de coisas de que gosto, de que não gosto e que observo. Serve, em particular, para nos lembrar que os edifícios não são muitas vezes utilizados como planeado e que não são estáticos; que são modificados e adaptados pelas pessoas. Muitos arquitectos estão atentos a isto. Pensam nas pessoas e querem saber como elas vão usar os edifícios. Contudo, em comparação com há 30 anos, hoje há mais edifícios que são construídos a pensar no dinheiro, não nas pessoas. E ver arquitectura bem feita, com cuidado, é ver qualidade de vida.
Diz que ainda se considera um fotógrafo analógico, apesar de nos últimos anos só usar equipamento digital.
Para mim, o analógico é uma sensação de um para um. O verdadeiro significado da palavra “analógico” é a relação directa, sem nada alterado ou movido no processo. Eu não faço alterações nas minhas fotografias. Só faço o que é possível fazer no laboratório, no quarto escuro tradicional. Para mim, a realidade é mais interessante do que tudo o que pode ser feito num computador. Percebi que tinha de começar a dizer isto nas conferências, porque muita gente pensava naturalmente que as minhas fotografias eram alteradas.
Nas exposições não coloca as fotografias em molduras, cola-as às paredes. Parece um quarto de adolescente, como disse na conferência em Serralves. É uma forma de dessacralizar a obra de arte e de tentar criar uma relação mais emocional com o espectador?
A ideia do quarto de um adolescente não foi usada como um ponto de partida – ou seja, não tentei simular isso. Só percebi mais tarde que a minha actividade artística era similar, digamos, à actividade artística de um adolescente no seu quarto. Há uma certa inocência e uma economia de espaço e de meios. Tem a ver com uma vontade de conseguir inserir o máximo de informação possível e necessária e criar uma boa tensão. Por exemplo, em 1993, na primeira exposição que fiz em Colónia, havia uma parede só com uma linha muito fina de fotografias e uma outra parede totalmente cheia. A arte contemporânea nos últimos 15 anos tem defendido a rarefacção e eu às vezes faço coisas só com uma ou duas fotografias numa parede, mas não tem de ser sempre assim. O mundo é uma multitude…
Mas foi uma maneira de questionar certos códigos da alta cultura?
Sim, mas não porque queria ser cool. E na verdade não me via como baixa cultura.
Não acredita nessa divisão?
Não, de todo. Foi isso que me deu confiança para nunca duvidar que uma fotografia de um pescoço suado numa discoteca pode ser arte.