Gisela João canta Amy Winehouse, Cave, Cohen ou Sinatra

Antes da chegada do segundo álbum, toma conta do Teatro São Luiz, em Lisboa, durante três noites. Caixinha de Música é desculpa para cantar Amy Winehouse, Nick Cave, Leonard Cohen ou Frank Sinatra, mas também para acolher workshops de bordados ou sessões fotográficas.

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Convidada pelo São Luiz a pensar num concerto especial para a sala, Gisela quis aproveitar as três noites para dar corpo a um espectáculo que não se limitasse a repetir o alinhamento que tem vindo a rodar em palco desde a edição do seu álbum de estreia, em 2013 Nuno Ferreira Santos
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Gisela João tem um talento um pouco menos óbvio do que aquele canto ardente que parece saber de cor o caminho para puxar cada fio de emoções das gentes. E partilha-o com os músicos que a acompanharão nos três concertos que levará ao Teatro São Luiz de 10 a 12, no dia do primeiro ensaio conjunto, em que já fez deles os seus melhores amigos, os seus “meninos”. E esse talento prende-se com uma capacidade quase transcendental que Gisela acredita ter de aferir a personalidade ou o estado de alma de um cantor através da qualidade da sua interpretação. Uma espécie de vidente emocional pela música.

Por isso, quando ensaia com a banda Silêncio e Tanta Gente, tema com que Maria Guinot venceu o Festival RTP da Canção de 1984, não resiste a partilhar que a sua intuição lhe devolve a sensação de que talvez a intérprete não tivesse mesmo vivido a história a que dava voz. Ou, tendo-a vivido, trairia essa experiência soando muito segura de si – possivelmente “achava-se a maior a cantar”. Guinot cantava de facto com uma colocação vocal pomposa, solene, tudo aquilo que Gisela João não activa quando se entrega à interpretação de qualquer tema. Mas Silêncio e Tanta Gente, que motiva entre os músicos uma bem-humorada discussão sobre a maior prevalência de adúlteros entre homens ou mulheres – mais coloquialmente discutida como “quem é que chifra mais”, graças ao verso do refrão “E troco a minha vida por um dia de ilusão” –, é uma excepção no meio da dezena e meia de temas fora do seu reportório fadista que Gisela apresentará no concerto a que chamou Caixinha de Música.

Convidada pelo Teatro São Luiz a pensar num concerto especial para a sala lisboeta, Gisela quis aproveitar as três noites para dar corpo a um espectáculo que não se limitasse a repetir o alinhamento que tem vindo a rodar em palco desde a edição do seu álbum de estreia, em 2013. Chamou então para um almoço o seu cúmplice André e. Teodósio – “um outro neurónio meu que está separado de mim, em criação e ideias”, chama-lhe –, do Teatro Praga, para a ajudar a deslindar um sentido na imagem que logo se lhe acendeu na cabeça: “a boneca da caixinha de música, a cantar outras músicas diferentes”. Teodósio resolveu o assunto: “E se pedisses a outras pessoas para te escolherem as músicas?”

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E assim foi. Durante um par de meses, Gisela contactou cantores, jornalistas, programadores, gente amiga com um gosto musical com que se identifica e pediu-lhes três hipóteses de temas que gostariam de ouvi-la cantar. É da selecção desses temas que se chega a este programa feito de composições de Amy Winehouse, Nick Cave, Leonard Cohen, Nelson Cavaquinho, Serge Gainsbourg, Violeta Parra, Frank Sinatra ou Ella Fitzgerald. “É muito engraçado perceber aquilo que as pessoas me viam a cantar”, confessa ao Ípsilon. “Há algo que segue um padrão, sem querer, e que não sei dizer qual é, mas há qualquer coisa que une a forma como todos escolheram músicas para mim.” Uma hipótese, mais evidente, é de que as sugestões podem reflectir uma aproximação ao fado por via de outras músicas. Gisela concede que “a maior parte das músicas que vou cantar é fado”, no sentido em que “têm alguma coisa que o fado também tem.”

A colherada em Hallelujah
Não confundir, no entanto, este travo fadista com a aplicação discricionária dos trejeitos e requebros de voz a que se associa a canção lisboeta sobre exemplos preciosos dos cancioneiros pop/rock ou jazz. Quando arranca o ensaio nos estúdios Valentim de Carvalho, o trompetista Tomás Pimentel pergunta-lhe, sem censura à vista, se vai “afadistar” as canções. Não condenando essas soluções, percebe-se a reacção horrorizada de Gisela ao ponderar sequer a hipótese de cantar Into My Arms, de Nick Cave, emprestando-lhe as voltinhas melódicas que daria se estivesse de posse do Fado Menor do Porto. E não é nada disso que se ouve quando canta o tema sobre um piano reconhecível e uma guitarra portuguesa que tenta seguir-lhe os passos. Gisela João confessa-se ainda nervosa e insegura a palpar o registo de canções que admira, mas no meio dessas incertezas é já tocante a forma como abraça a composição em que Cave desespera por ajuda divina na salvação dos seus amores.

Cave, que aprendeu a admirar primeiramente como poeta, chegou-lhe por sugestão de Luís Montez, patrão da promotora Música no Coração, e faz parte de um lote de escolhas de inevitáveis luminárias da escrita de canções deste tempo. Além de Montez, há escolhas das jornalistas Lia Pereira e Anabela Mota Ribeiro, do ilustrador André Carrilho, da directora do São Luiz Aida Tavares, do fadista Camané ou do designer Carlos Guerreiro – “ele é um dos meus dealers de música, estamos sempre a enviar músicas um ao outro e dá-me uma abada, conhece coisas do arco-da-velha”, diz. Num único caso, Gisela meteu a sua colherada, escolhendo Hallelujah, de Leonard Cohen, mas apaixonadamente motivada pela versão de Jeff Buckley. “Aquilo parece que foi feito para ele”, comenta. “É isso que admiro nos cantores, aqueles que estão ali sem merdas, sem estarem a mostrar que têm uns agudos incríveis ou que são grandes músicos. Ele está a viver aquilo, não há ego nenhum em jogo.”

Sendo uma escolha sua, Gisela deixou-a ficar no fim da lista, pronta a desistir dela se tivesse de deixar algum tema pelo caminho. “E como a deixei para o fim para decorar, agora ainda não a decorei”, ri-se, como uma miúda que se baldou aos trabalhos de casa. Sobretudo porque “Hallelujah” tem uma letra “gigante”. “Isto é d’Os Lusíadas”, diz para os músicos. “Não te lembras de dar isto na escola?”

Só num caso hesitou no atrevimento: Back to Black, de Amy Winehouse. Ao contrário de Ella Fitzgerald ou Frank Sinatra, cujos reportórios foram já alvo de tantas revisitações que as suas interpretações deixaram de pesar sobre as músicas. “Essas são antigas, já as ouvi muitas vezes e já consigo, de certa forma, ter um descolamento”, contextualiza. Winehouse é outra história, uma história fatídica que deixou Gisela tomada pela tristeza de ter perdido alguém que admirava e que, acredita, possivelmente “nunca teve ninguém mesmo amigo que lhe desse a mão”. Gisela suspira: “A memória dela a cantar é muito recente e o que ela fez é tão bom… Tal como o Camané, admiro tanto a forma de eles interpretarem que é um risco muito grande. Mas também por isso decidi fazê-lo, assumir o risco e o desafio de fazer alguma coisa diferente. Detesto tentar fazer igual a alguém. Prefiro pôr logo de parte.”

Bordados, fotografias, danceteria
Com uma banda formada por músicos habituados aos palcos do jazz e dos blues, Gisela João assegura que teve de superar “muito medo e muita vergonha” ao abordar reportório com o qual, imagina, os eleitos pelo director musical Frederico Pereira terão uma enorme familiaridade. Mas, por estes dias, esse medo miudinho acompanha também a cantora por outro motivo. A trabalhar no segundo álbum, depois do sucesso de crítica e de público do disco homónimo com que se deu a conhecer ao país, Gisela não se esquece de uma tendência que foi identificando ao longo dos anos – “o segundo disco leva sempre tareia”. “Mas eu gosto tanto, tanto, tanto de cantar… A única coisa que posso garantir sempre é que se não der tudo o que possa dar, então prefiro não cantar. O compromisso que tenho comigo é cantar sempre como se fosse a última vez.”

No caso de Caixinha de Música, embora trabalhando com uma banda nova – na qual estão também integrados Ricardo Parreira e Nelson Aleixo, os seus habituais músicos na guitarra portuguesa e na viola de fado –, Gisela defende-se com a recorrência de colaboradores (mais ou menos presentes) como André e. Teodósio ou os artistas plásticos João Pedro Vale e Nuno Alexandre Ferreira que, depois dos Coliseus, voltam a ter a seu cargo a cenografia de Caixinha de Música. “Falamos a mesma linguagem”, diz a cantora. “Se eu chego e digo ‘branco’, eles dizem logo ‘branco com uma pinta dourada’ e eu acrescento ‘e põe verde também’.”

A par do reportório pouco habitual do concerto, Gisela João ocupa ainda as três noites no São Luiz com uma programação de que fazem parte guitarradas por Parreira e Aleixo (dias 10 e 11), um workshop de bordados assegurado por Joana Caetano (inspirado nos lenços de namorados, mas com versos do álbum Gisela João, de 10 a 12) e uma sessão fotográfica com Estelle Valente (de 7 a 12, durante todo o dia) em que o público se pode inscrever através do email acaixinhademusicadagiselajoao@gmail.com. Após a derradeira actuação, no dia 12, a própria Gisela salta para os pratos de DJ, ocasião em que se vai “vestir toda sheilona e pôr umas músicas divertidas para toda a gente dançar”. “Pensei que gostava de fazer do São Luiz um bocadinho o meu mundo”, justifica.

Gisela João não se importa de “pôr a cabeça no cepo”, arriscando com um programa ambicioso ou cantando em línguas que não maneja na perfeição. Até porque não sabe fazer de outra maneira. “Se estou contente, não me atirem pedras nem me matem, porque é honesto.” É essa honestidade, de que não está disposta a abdicar, que contamina tudo quanto faz. A ponto de, por momentos, acreditarmos também que Into My Arms ou Hallelujah foram inventadas por Cave ou Cohen para a sua voz.

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