Temos 10 anos para salvar as roças de São Tomé e Príncipe
Dois arquitectos portugueses inventariaram e estudaram 122 das cerca de 150 explorações de café e cacau de São Tomé e Príncipe. O que resta do antigo império colonial português pode ser um dos eixos estruturantes do futuro deste pequeno país.
Localizada na província de Lobata, eis a antiga roça Rio do Ouro, agora conhecida como roça Agostinho Neto.
Fundada em 1865, esta foi em tempos a sede da Sociedade Agrícola Valle Flôr, a maior e mais importante das explorações de cacau e café de São Tomé e Príncipe. Hoje é o mais imponente dos escombros que o império colonial português deixou neste pequeno país suspenso sobre a linha imaginária do Equador.
Se o Apocalipse aconteceu, começou aqui: edificado oitocentista a decompor-se coberto de musgo, humidade e dejectos; depois, sobre os destroços, a vida dos mais de mil são-tomenses que habitam hoje a Rio do Ouro; velhos, adultos, jovens e crianças descendentes de antigos escravos e serviçais angolanos, moçambicanos e cabo-verdianos, homens e mulheres que foram comprados e vendidos ou emigraram e que, durante o século XIX e princípio do século XX, quando São Tomé e Príncipe se tornou no maior produtor mundial de cacau, habitaram estes mesmos espaços, rodeados pelo mesmo pano de fundo de palmeiras e coqueiros.
Uma imensa alameda calcetada compõe o eixo a partir do qual este mundo se organizou então e se organiza ainda hoje: na ponta mais baixa da avenida, a antiga casa senhorial, na ponta mais alta, a dominar uma colina, o susto de imponência do antigo hospital, com a enfermaria dos homens de um lado e a das mulheres do outro, ambas, hoje, ocupadas por famílias, tudo corredores vazios e portas fechadas, algumas trancadas a cadeado. A maternidade fica por detrás, depois de um pátio onde a erva nos cresce pela cintura, uma carapaça morta e esvaziada, só tecto e paredes exteriores. A antiga capela também ainda lá está, a dominar do alto as sanzalas, o complexo habitacional originalmente destinado aos trabalhadores comuns.
Com a independência, em 1975, foi a esses trabalhadores que a habitação e exploração das roças acabou por ser entregue, como assalariados sob a égide do Estado. Hoje, na maior parte destas unidades não há emprego – nada se produz, nada se faz. As pessoas têm “vidas privadas”. Quer dizer que trabalham noutros sítios ou não trabalham de todo. E complexos como este, em São Tomé, são às dezenas.
Por entre a vegetação
Na investigação que acabam de publicar em livro, os arquitectos portugueses Duarte Pape e Rodrigo Rebelo de Andrade inventariaram 122 unidades semelhantes à Rio do Ouro num universo total de roças que se estima rondar as 150. Isto num país que não chega a ter mil quilómetros quadrados – um arquipélago de duas ilhas e alguns ilhéus com um total conjunto de 964 quilómetros quadrados; menos do que o Baixo Alentejo.
Um turista que chegue à ilha principal, onde se concentra a esmagadora maioria das roças – 103 –, visitará porventura três ou quatro destas unidades. Talvez a Rio do Ouro, por ser a mais emblemática, a Água-Izé, que fica à beira da estrada rumo às praias desertas do sul, e a São João de Angolares, hoje transformada num projecto turístico pelo seu proprietário, João Carlos Silva, o conhecido apresentador de programas televisivos como “Na Roça com os Tachos” e fundador, também, da bienal de São Tomé, que dirige.
Para além destas unidades, é possível encontrar algumas outras ao circular pelas ilhas. Na maior parte dos casos, as roças constituem porém um património escondido pela morfologia do território, de origem vulcânica, feito de vales profundos e montanhas altas, de vegetação densa e sem grandes acessos. Não é fácil encontrar, por exemplo, o que resta da roça Saudade, onde vivia a família de Almada Negreiros e onde o artista nasceu em 1893.
Da roça-terreiro à roça-cidade
Rodrigo Rebelo de Andrade e Duarte Pape contactaram inicialmente com esta realidade enquanto voluntários de ONGs locais que trabalham com as populações pobres das antigas explorações, primeiro Rodrigo, em 2005, depois Duarte, em 2007. De volta a Portugal, cruzaram experiências e estudaram livros, mapas e cartas históricos que lhes permitiram ir identificando um número cada vez maior de existências. Só depois voltaram ao terreno para o inventário. E para descobrir o que descrevem como um universo vastíssimo e extremamente diversificado em que “cada roça tem a sua particularidade, a sua diferença, o seu pormenor histórico e arquitectónico, a sua especificidade”.
Em As Roças de São Tomé e Príncipe (ed. Tinta da China), com fotografias de Francisco Nogueira, identificam três grandes tipologias: a roça-terreiro, correspondente ao modelo de assentamento inicial e típica das explorações de menor dimensão, com o edificado a organizar-se em torno da zona desmatada e terraplanada chamada terreiro; a roça-avenida, mais complexa, organizada em torno da espinha-dorsal constituída por uma alameda; e a roça-cidade, mais moderna e correspondente a um verdadeiro aglomerado urbano, com múltiplos terreiros ou eixos, malhas de ruas, bairros, jardins e praças. Depois, há as roças-atípicas, que, quer pela forma como se adaptaram ao terreno, quer pelo tipo de produção, não parecem seguir qualquer modelo predeterminado.
O livro estuda todos estes modelos. Inclui também informação histórica sobre o país e os seus diferentes ciclos produtivos, a partir da ocupação do território, no século XV, quando foi achado desabitado por navegadores portugueses.
Até ao princípio do século XVIII,São Tomé viveu o ciclo do açúcar, acompanhado e potenciado pelo crescimento do tráfico negreiro, então a principal fonte de riqueza da coroa portuguesa. E são as explorações de açúcar que constituem o precedente para a instalação das roças de cacau, a partir da segunda década de Oitocentos. As diferentes tipologias destas vão acompanhando as mudanças sociais.
“O programa das roças é uma realidade vastíssima e riquíssima”, explica Duarte Pape. Inclui não só a casa principal, o hospital, as sanzalas, a parte agrícola dos armazéns e secadores de café e cacau, mas, depois, também, desde escolas a equipamentos de lazer como pombais e pequenas praças de touros, como acontece na roça Bombaim e na roça Java. Isto, o visitante comum desconhece. Mas “é preciso conhecer as roças para conhecer verdadeiramente a sociedade de São Tomé”, diz-nos Rodrigo Rebelo de Andrade.
A matriz de uma identidade
Estamos agora em Lisboa e o arquitecto explica como a existência destas antigas explorações coloniais éa matriz da identidade são-tomense: “As roças foram, de facto, o ordenador territorial de São Tomé. Continuam a ser. Foi ao abrir novas clareiras e pólos o mais longínquos possível, para explorar mais cacau e café, que foi possível numa ilha muito densa em termos de vegetação chegar aos pontos mais longínquos. Foi assim que se distribuiu a sociedade são-tomense.”
Duarte Pape completa: “Embora nós, como arquitectos, não estudemos isso, que é do foro da sociologia, é claro que, hoje, em São Tomé, como em tantos outros países, há um afastamento da vida rural para a cidade. Mas, e ainda que as roças estejam agora desactivadas e abandonadas, é a partir dos pólos que elas constituem que São Tomé está ainda a desenvolver-se. É o que acontece com a vila da Trindade, a vila da Madalena, Guadalupe – crescem à beira das estradas, e as estradas foram criadas unicamente devido à existência das roças. Não fossem as roças estarem localizadas em zonas remotas e São Tomé não se teria desenvolvido do ponto de vista viário, ferroviário e portuário.”
Foi em 1889 que se construiu a primeira estrada asfaltada do arquipélago, entre a cidade de São Tomé e a vila da Trindade; duas décadas depois, por volta de 1908, havia também já 245 quilómetros de vias férreas. E esta realidade tem um correspondente populacional: segundo registos da época, em 1771 existiam em São Tomé 4668 escravos para 111 brancos e 1065 mestiços e negros livres distribuídos pelas várias unidades produtivas. Quer dizer que a realidade são-tomense como entreposto de culturas começou também nas roças, que surgem, assim, como elemento fundamental da matriz identitária do país.
Acontece que isto, que do estrito ponto de vista da arquitectura e do urbanismo é um raciocínio pacífico, obviamente não o é em termos sócio-políticos.
Há dois anos, esta mesma dupla de arquitectos apresentou uma exposição na sexta edição da Bienal Internacional de Arte e Cultura de São Tomé e Príncipe sobre a investigação, que na altura estava ainda em curso. Então,Duarte e Rodrigo tinham inventariado 32 roças – pouco mais de um quarto das que inventariaram até hoje. E já o arquitecto e crítico de arquitectura José Manuel Fernandes, que no princípio dos anos 1990 fez um grande levantamento do património arquitectónico são-tomense, alertava para a necessidade de “um plano de intervenção de emergência” nestes complexos agrícolas, sobretudo na roça Rio do Ouro, a que chamou “o monumento dos monumentos”.
Na plateia da conferência de José Manuel Fernandes na bienal estava o ministro do Plano e Desenvolvimento,Agostinho Fernandes. Era sobretudo para ele amensagem que, depois, o artista plástico René Tavares enfatizou: "É preciso olhar para o património são-tomense. É preciso explicar que o património só sobrevive se for valorizado." E não há muito tempo: menos de uma década, dizem os autores de As Roças de São Tomé e Príncipe.
É preciso pensar que, na África equatorial, a luta do homem contra a natureza é diária. Num clima tropical húmido em que as temperaturas sobem aos 27 graus centígrados e não descem dos 21, basta um mês sem cuidados para que uma horta desapareça sob a erva. O metal enferruja em pouco tempo, a madeira apodrece, desaparece. E, precisamente: nas primeiras roças, a madeira, abundante no arquipélago, foi assumida como material construtivo de eleição – só mais tarde surgiram os sistemas mistos e as edificações com recurso ao betão armado. Depois, há que contar com o repúdio em relação aos traços da época colonial: em meados da década de 1960, a desactivação e desmantelamento das vias férreas das roças foi celebrada como símbolo do fim de um ciclo.
“Passaram muito poucos anos desde a independência e as mentalidades não se mudam de um ano para o outro. Mas isto é urgente. Desde 2005 para agora a degradação é assustadora. Mais 10 anos a esta velocidade e desaparece a maioria das roças”, diz Rodrigo Rebelo de Andrade.
“Só se preserva aquilo que se entende e a verdade é que em São Tomé não se entendem as roças como património. Para a recuperação das roças tem que haver um entendimento destas como património válido, como mais-valia cultural e económica”, diz, por seu lado, Duarte Pape. Depois, há que ver que “só é conservado e preservado aquilo que se usa”, refere Rodrigo Rebelo de Andrade, para quem a solução passará “por assumir aquele património, usar, habitar, transformar para outros fins”.
Para essa espécie de normalização é preciso criar distância da carga política e social do colonialismo. E não só em São Tomé – também em Portugal. Duarte Pape chama aatenção para os testemunhos que, em Lisboa, se ligam à realidade do ciclo do cacau são-tomense: “Passeamos pela cidade e percebemos que há imenso património relacionado com o ciclo do cacau: o Palácio Vale Flor [do Hotel Pestana Palace], no Alto de Santo Amaro, o Palácio Mendonça [também conhecido como Casa Ventura Terra], em Campolide, a Quinta das Conchas, no Lumiar, a zona do Elevador do Lavra, do Príncipe Real... Portanto, podemos fazer um roteiro turístico em São Tomé, mas também em Lisboa. Há muita informação por explorar, e o que ela nos diz é que houve um período agrícola muito rico e para o qual olhamos hoje apenas com uma conotação negativa. É preciso evoluirmos para outro modelo.”
No seu livro, os arquitectos escrevem: “A reabilitação de infra-estruturas pré-existentes pode constituir a alavanca para a sua reinvenção e reconversão, promovendo a transição de um ciclo colonial para um ciclo cultural, conservando o carácter evolutivo da roça no seu programa ou função através de projectos eco-turísticos ancorados na sua actividade agrícola […]. As roças constituem, sem sombra de dúvida, a herança mais profunda de São Tomé e Príncipe.”