Teatro com vista para prostíbulos e para a arte mercantil

Duas criações argentinas mostram no Festival de Almada a vitalidade da cena teatral de Buenos Aires. Trópico del Plata e Rat são dois espectáculos de denúncia.

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Trópico del Plata , um espectáculo assente na extraordinária representação de Laura Nevole dr
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Rat, um espectáculo de denúncia dr

Há muito que o vamos sabendo: a vitalidade do teatro argentino, em especial da cena independente de Buenos Aires, é feita de uma invenção que contorna a escassez de meios e que assenta no texto e no trabalho dos actores por ser essa a matéria-prima essencial. Reduzido ao mínimo, o teatro é um actor ou uma actriz em cena, a insuflar vida num texto. De preferência, original. Assim é com Trópico del Plata e assim é com Rat, as duas peças argentinas apresentadas esta semana no Festival de Almada. Trópico del Plata é o exemplo perfeito de um espectáculo assente na extraordinária representação de Laura Nevole, sozinha em palco; Rat é o paradigma imaculado de como a falta de recursos pode ser usada em proveito próprio.

Rat começou por ser outra coisa. Começou por ser a intenção de Juan Mako de encenar um texto do dramaturgo argentino Copi. Após as primeiras diligências nesse sentido, Mako, finalista do curso de encenador da Universidade Nacional das Artes, foi confrontado com a exigência de depositar 2500€ nas mãos de uma “agência literária muito poderosa” para obter os direitos de apresentar a peça durante um ano. “Eu pertenço ao teatro independente, não pertenço ao teatro comercial”, diz ao PÚBLICO, notando o despropósito de um tal pedido. “Então, perante a impossibilidade de fazer esse texto, aquilo que me propus foi agarrar-me ao universo estético do Copi e que me interessava muito por ter que ver com a meta-teatralidade, e por explorar um mundo muito marginal, e fazer uma denúncia contra o burguês, o estabelecido e o canónico.”

Depois deste episódio frustrado, Copi virou a ideia de denúncia para o próprio processo por que tinha passado, fazendo de Rat uma crítica acre ao “carácter mercantil da arte”. É, por isso, uma peça que lida com o espanto de poder haver “quem possa apropriar-se da produção literária de um autor morto e decidir quem são aqueles que a podem fazer e quanto terão de pagar por isso”. Daí o título, remetendo para o mundano, os caminhos subterrâneos, o contornar de obstáculos, a acção roedora e de subversiva sabotagem das instituições, em tom de farsa e de fábula contaminada pelo absurdo.

A inspiração não apenas Copi, mas de muitos outros pontos também. Vem de A Quinta dos Animais, de George Orwell, que interessa a Juan Mako enquanto autonomização dos animais em relação aos humanos, enquanto construção de um novo sistema de governo e o estabelecimento das suas regras e leis, tão corrompíveis quanto quaisquer outras. E também El Centroforward Murió al Amanecer, peça de Agustín Cuzzani escrita nos anos 50, e que o autor e encenador refere como debruçando-se “sobre a propriedade privada”.

Rat estreou em 2015 no âmbito da Bienal para Jovens Artistas de Buenos Aires, tendo-lhe sido atribuído o primeiro prémio, e estará em palco sábado e domingo, 16 e 17 de Julho, no Teatro-Estúdio António Assunção (Almada).

Dedo apontado ao governo

Em Trópico del Plata, terça e quarta-feira também no Teatro-Estúdio António Assunção, tudo começou pela certeza de Rubén Sabadini em querer explorar a altura de um lugar, mais concretamente “a situação de uma personagem que caminha pelo tecto de uma casa e desce pela parede”. A este macguffin juntou-se a sua fixação em fazer jorrar a escrita a partir da boca de uma figura feminina, esta mulher que vemos em palco conversando “com o seu amante, o seu namorado ou o seu proxeneta”. Uma conversa assumida pela mesma actriz, uma notável Laura Nevole, que junta as duas personagens no seu corpo, ela subjugada por ele, num texto em que Sabadini quis fazer ressoar “uma certa imposição do homem em relação à mulher, como construção do patriarcado e da prevalência de um género sobre o outro”.

Desde o início, para Sabadini, Trópico del Plata deveria ser assumido por uma actriz morocha. Uma actriz negra, mestiça, que representasse o movimento migratório da província para a capital argentina, empurrada para a prostituição como modo de sobrevivência. Quando passou o texto a Laura Nevole, o autor e encenador fê-lo pedindo-lhe a sugestão de uma morocha que pudesse dar vida a esta mulher, mas Laura respondeu-lhe: “Estás louco, esta peça é para mim”. Laura, louríssima, branquíssima, defendeu-se dizendo ser “negra de alma, mulher da província, conhecedora daquela história apesar da cor da pele”. O proxeneta, aliás, branqueia-lhe a pele, transforma-a nas suas mãos, numa alusão ao “acesso a outra condição social” que Sabadini diz ser fundamental em Buenos Aires.

É então por isso que o autor coloca a trama num baile de máscaras, jogando em permanência com a ideia de disfarce, típica, defende, numa cidade com 12 milhões de habitantes (na zona metropolitana) formada, na sua maioria, por “gente do interior que chega à capital buscando recursos económicos”. “As pessoas chegam a Buenos Aires vindas do interior e têm de disfarçar-se de porteños para conseguirem viver e sobreviver. Têm de adaptar a sua linguagem, a sua maneira de vestir, a forma como falam – e toda essa construção esconde um plano social e histórico.” Mas a escolha desta mulher como prostituta tem também uma acentuada razão política. Para Sabadini, Trópico del Plata aponta o dedo ao “governo de direita” que dirige o país. “Quando falo deste proxeneta e deste abusador, é desse governo sustentado economicamente por muitos prostíbulos que estou a falar.”

Com o mesmo carácter subterrâneo de Rat, também aqui há uma denúncia a correr em fundo.

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