O dispositivo formal repete-se: um pequeno retrato a preto e branco surge emoldurado por um cenário de imagens de flora exótica.
De longe, distinguimos apenas o colorido da folhagem exuberante de palmeiras e bananeiras, os blocos espinhosos de cactos e o entrançado nodoso dos troncos e grandes raízes aéreas de árvores tropicais. Aqui e ali, por entre esta malha, irrompem vislumbres de presenças arquitectónicas de traça modernista. São vistas parcelares: o telhado inclinado de uma moradia, as paredes de vidro de uma estufa, os azulejos de um lago ornamental... Tudo suavidade, sedução, harmonia. E o nosso olhar vai deslizando sem sobressaltos. Até os retratos a preto e branco nos puxarem para mais perto, obrigando-nos a aproximar o rosto. É então, quando já estamos debruçados sobre eles, que nos explode na cara a revelação daquilo a que vamos: nós próprios e a história de horror que espalhámos em volta enquanto potências coloniais.
Este retrato, por exemplo: em pano de fundo, um terreiro e um conjunto de edificado anódino – nada a assinalar; a não ser aqui, neste casal em primeiro plano, um homem branco e uma mulher negra a posarem juntos. O homem está à esquerda. É militar – está fardado. O quico camuflado indicaria estar em operações. Mas não. Tem vestida a farda de saída. Quer dizer que está de licença. E que não deveríamos estar a vê-lo com aquele quico.
Tratando-se de um oficial, esperar-se-ia um cumprimento mais escrupuloso das normas de fardamento. Mas estamos em guerra. Guiné, 1962: o pior cenário de combate do Ultramar português. Acresce que navegamos as águas rasas da base da pirâmide militar – no ombro, as insígnias identificam um primeiro-furriel, o segundo posto mais baixo da hierarquia de sargentos.
À época, este posto era normalmente ocupado por milicianos. E os milicianos não são militares de carreira – são recrutados entre civis. Podem comandar grupos de combate. Na ausência do oficial graduado, é o que fazem: comandar. De resto, é o que farão sempre que o exército decida não arriscar a vida dos seus. Em caso de perigo, retrocedem os quadros e avançam os milicianos. Quer dizer que não passam de carne para canhão. E eles sabem. Vidas perfeitamente dispensáveis na macroeconomia geoestratégica da morte pelas armas. Existências praticamente tão insignificantes quanto a da mulher que está aqui, à direita, debaixo do braço deste furriel.
O rosto dele permanecerá para sempre incógnito; não o vemos – está de cabeça baixa e óculos de sol. Já ela está a olhar directamente para a objectiva. Quer dizer que está a olhar directamente para nós, que estamos aqui, deste lado. Os seus olhos estão vazios. Sem qualquer expressão. Tal como a boca. Tal como todo o seu rosto, na realidade.
Nenhum sorriso, nenhum esgar, nenhuma lágrima. Nada. Está direita, o braço esquerdo caído ao longo do corpo, o direito talvez em volta da cintura dele, contrafeito – não sabemos, não o vemos. O que vemos é o peito apenas coberto por um sutiã. A capulana que lhe serve de saia também expõe tanto quanto esconde: está presa em volta do baixo-ventre; deixa toda a barriga à mostra; e a barriga está distendida, redonda.
Ela está grávida. Será por isso que o militar lhe toca daquela maneira inusitada, mão poisada sobre a pele do ventre, junto ao umbigo, talvez a tentar sentir o bebé. Poderia ser um gesto de carinho, a intimidade de um casal. Mas não. Há o braço esquerdo dele. Parece simplesmente caído sobre os ombros dela, num abraço. Mas a mão esquerda agarra-lhe num dos seios.
Não é um agarrar firme nem hesitante. Apenas displicente. Profundamente displicente. Como se nada de extraordinário ali se passasse.
Ela é uma mulher negra no meio de uma guerra. Está grávida. E ele agarra-lhe num dos seios para a fotografia, como se fosse normal. Ela não sorri nem chora. Não reage. Não faz nada. À época, teve o olhar vazio pousado em quem a fotografou. Hoje, cinquenta anos volvidos, tem o olhar vazio pousado em nós.
É chocante.
Pior: já todos passámos por dezenas quando não centenas de imagens semelhantes. Estão por todo o lado em arquivos, livros e blogues. Estão por todo o lado sobretudo nos álbuns das famílias que passaram por África. Tal como aconteceu com a própria fotografia, houve um momento da história portuguesa em que este tipo de imagem se trivializou. E, exactamente devido à banalização do seu mal, durante muito tempo convivemos com esta realidade sem qualquer sentido crítico. Depois, arrumámos as provas no fundo da gaveta e fizemos de tudo para esquecê-las.
Submissão e esvaziamento
“Quem produziu estas imagens estava imbuído de uma mentalidade de superioridade intelectual e rácica, mas surge hoje inscrito na mesma nomenclatura que criou para o Outro, como um estereótipo da barbárie Ocidental do pensamento”, escreve Emília Tavares no extenso e cuidado texto do catálogo de Botânica, a primeira exposição individual de Vasco Araújo no Museu do Chiado.
É Emília Tavares, curadora de fotografia e novos media do museu, quem assume o comissariado. E quem escreve também: “As imagens apresentadas em Botânica percorrem várias épocas e contextos, nacionais e internacionais, íntimos e oficiais, mas todas elas representam actos de submissão, tendo por consequência o anonimato. Todas representam o colonizado como o colonizador o fixou, enquadrando-o numa ideologia de raça através de um esvaziamento do ‘ser’.”
O esqueleto e o molde do corpo Saartjie Baartman (1789-1816), a jovem khoisan tornada célebre como “Vénus de Hotentote”, uma atracção dos circos coloniais europeus e, depois, dos bordéis de Paris, onde morreu. Ota Benga, o pigmeu mbuti que se suicidou em 1916, aos 32 anos, depois de ser levado para os Estados Unidos e exposto na casa dos primatas do Jardim Zoológico do Bronx. Uma actriz norte-americana da década de 1940 a posar ao lado de uma mulher-bandeja ubangi. E muitas outras imagens. Por exemplo, a de uma mulher somali com o seu filho ao colo parada no meio de um terreiro do Jardim de Aclimatação de Paris.
Os jardins de aclimatação serviam para habituar a flora exótica às temperaturas da Europa; acabaram também por servir de zoos humanos – a mulher somali e o seu filho, por exemplo, são observados por europeus brancos, adultos e crianças, através de uma cerca. A mesma cerca que separa esses europeus das zebras e outros animais com os quais dezenas de homens, mulheres e crianças africanos foram na mesma altura obrigados a viver ali, em exposição. Flora e fauna, juntos.
À mesa com a história
É precisamente do conceito de jardim – de aclimatação, tropical ou botânico – que Vasco Araújo parte para a construção da série de esculturas que compõem a âncora central de Botânica. Do conceito de jardim como primeira instância de construção do exótico. E como primeira instância de afirmação de uma ideia de domínio construída sobre princípios de superioridade rácica.
O dispositivo formal repete-se uma e outra vez: sobre uma mesa doméstica, um conjunto de imagens de plantas exóticas servem de cenário a retratos a preto e branco emoldurados a prata, como fotografias de família sobre um aparador.
O natural e o cultural em confronto. Tal como o público e o privado. O individual e o colectivo. O pequeno facto e a narrativa que encerra como testemunho maior da História. Tudo sobre a mesa, essa presença à volta da qual decorre grande parte existência humana, do trabalho ao lazer, passando pelas mais definidoras negociações e decisões sobre os nossos destinos colectivos.
“É nos objectos que ficam as memórias”, diz Vasco Araújo. Não por acaso é mais difícil escrever a história dos pobres, dos desapossados, dos que não deixaram testemunhos materiais através dos quais se possam rememorar os seus percursos. Assim, é tanto um gesto de acusação como um exercício de dignificação este que se exerce em “Botânica”: ao objectualizar a História ficamos tanto face a mesas de debate quanto a altares agnósticos, dedicados não a divindades mas a uma humanidade violentada.
Emília Tavares recorda como o tema da discriminação, nas suas várias facetas – racial, de género, cultural… – tem estado presente em grande parte do trabalho de Vasco Araújo. Mas sublinha também que temos que analisar esta série de obras sob outros ângulos, nomeadamente trazendo as suas narrativas até ao presente e sobrepondo-as à actualidade. Sobretudo no tocante “aos malabarismos geoestratégicos que se jogam hoje, tanto no panorama político como no da cultura e da arte, face à questão pós-colonialista”.
“O pós-colonialismo parece-nos hoje um conceito esgotado, alvo de variadas controvérsias”, reconhece a curadora. Contudo, sabemos que, em grande medida, é um processo pouco mais do que embrionário num Portugal preocupado ainda com as questões ligadas à problemática da autonomia da arte. E, mesmo, às questões de autonomia nacional.
Perdido o Império, virámo-nos para a Europa em busca de uma nova identidade, de uma filiação ou pertença. Não reflectimos sobre a nossa história colonial nem no que dela nos enforma ainda. Simplesmente decidimos não voltar a pensar no assunto. Até há muito pouco tempo. Primeiro timidamente, agora com cada vez mais nomes a juntarem a sua voz ao debate.
Não quer dizer quase nada – ainda é pouco; as feridas estão longe de cauterizadas. Ainda há quatro meses, por exemplo, a intervenção de Teresa Mendes Flores no colóquio “O Império da Visão: fotografia no contexto colonial português (1860-1960)” causou fricção.
Investigadora do Centro de Estudos e Comunicação das Linguagens e do Centro de Investigação em Media e Jornalismo, ambos da Universidade Nova de Lisboa, Teresa Mendes Flores apresentou um estudo sobre as fotografias incluídas nos relatórios médicos da Diamang, a antiga diamantífera portuguesa em Angola.
Na sua exposição, a investigadora referiu que se torna “incontornável” constatar a “diabolização e inferiorização do negro” pelos relatores portugueses de meados da década de 1960.
Tal como a “diabolização” da diferença como estratégia “civilizadora”, através da demonstração sistemática da cultura ocidental como norma, segundo a investigadora, também a demonstração visual de uma estratégia arquitectónica e urbanística de “desafricanização” é evidente nas imagens.
O que (não) vemos
Enquanto os jardins tropicais e botânicos de Lisboa, por exemplo, se enchem ainda hoje de espécies exóticas, sem flora autóctone, nos jardins angolanos dos relatórios da Diamang surgem apenas apontamentos evocativos de África - não mais do que uma palmeira, um arbusto local... Como se não se estivesse em África, mas numa Europa deslocalizada.
Nessas imagens – como em quase todas – o que não vemos é tão importante como o que nos é dado a ver. E o que quase não vemos é a mata desordenada, a selva, que surgem raramente e apenas em pano de fundo distante. Ou seja, mostra-se um pequeno mundo ordenado, esconde-se um grande mundo fora de controlo.
Uma leitura possível é que, no fundo, simbolicamente, estas fotografias representam o sonho europeu do domínio de África. É a leitura proposta por Teresa Mendes Flores. Mas, 38 anos volvidos sobre a independência angolana, há quem defenda ainda o que o se operou foi uma afirmação de portugalidade e não uma estratégia de “desafricanização” do continente negro. Como se houvesse uma diferença real entre uma lógica e outra.
“As pessoas têm uma grande resistência em pensar que a forma como os negros são retratados em imagens como as dos relatórios da Diamang são, sequer, um sinal de racismo. Pensamos em nós [portugueses] ainda como um povo amigo”, dizia na altura a investigadora. É até esse refúgio que Vasco Araújo não nos permite recuar.
Ao cruzar imagens de arquivos internacionais que se tornaram narrativas universais com imagens e narrativas portuguesas, vastamente ainda por levantar, Araújo cria um nivelamento, um território de equivalências que não nos permite continuar a ignorar ou desculpabilizar os nossos contextos de violência e opressão racial.
Amélia Rey Colaço em trajo de cena a posar com uma criança negra nua ao colo não é diferente da actriz norte-americana que posa com a mulher-bandeja ubangi. Nem as imagens de timorenses dispostos sobre o chão a formar as palavras “Timor” e “Salazar” para uma visita de Américo Tomás em 1940 são menos racistas do que os zoos humanos de Paris ou Nova Iorque.
Vasco Araújo sublinha ainda esta realidade com a inclusão, na sua exposição, de pinturas portuguesas evocativas desses mesmos gestos de domínio e opressão.
Ao Departamento de Zoologia e Antropologia do Museu Nacional de História Natural, por exemplo, foi buscar Ciríaco, um óleo sobre tela de 1787 em que Joaquim Leonardo da Rocha retratou um negro com vitiligo, a mancha de pele despigmentada a torna-lo quase branco. E dos acervos do próprio Museu do Chiado veio o conhecido Os Pretos de Serpa Pinto (1876), de Miguel Ângelo Lupi. Mas talvez a narrativa mais exemplar sobre a mentalidade colonial portuguesa surja através do Retrato do Juiz Adalberto Soares do Amaral Pereira, um óleo sobre madeira assinado em 1920 por José Malhoa.
Em 1961, foi Eduardo Malta, pintor e, à época, director do Museu do Chiado, quem propôs a aquisição desta obra pelo museu. A 11 de Outubro, num ofício parcialmente citado no catálogo de Botânica, explicava que a compra tinha grande interesse “por se tratar de um juiz português de raça preta pintado há mais de quarenta anos”.
Oito meses antes tinham ocorrido os célebres massacres no norte de Angola que acabaram por levar ao início da guerra colonial. “Neste momento político [a aquisição] tem especial significado por vir demonstrar que em Portugal nunca houve descriminação racial”, escreveu Malta.
Anos antes, em 1934, fora ele o autor de Retratos de Gente Exótica, um tríptico realizado para a Exposição Colonial que nesse ano foi feita no Porto. Nesse trabalho, Malta retratou indígenas de todas as colónias portuguesas. Posteriormente, recordou episódios do processo de realização da obra, nomeadamente com hindus, no seu estúdio: “Como sempre faltavam descaradamente, era necessário andar em busca dêles e trazê-los, quasi à força para o atelier. Henrique Galvão, o sábio director da Exposição Colonial do Pôrto, teve um dia de castigar uma índia […] e ela passou horas aos gritos, espumando de raiva, a dar com a cebeça pelas paredes, até o sangue brotar… E era extraordinariamente lindo o corpo dessa alma maligna, impressionante como um punhal brandido.”
Emília Tavares cita Jean Daniel: “Na rejeição a que por preguiça chamamos ‘racismo’ existe um tal mistério de irracionalidade que não podemos entrar no estudo das condições da sua emergência. É preciso tratá-lo como uma doença e não como um pecado.”
Em Portugal, somos (quase) todos brancos, (quase) todos bárbaros, (quase) todos doentes.