Quem é Lucia Berlin? Uma autora que não mente
Narrou a tragédia humana com sentido de dignidade, como se cada texto seguisse o real sem ligar à literatura. Lucia Berlin escreveu assim e morreu em 2004 sem sair da sombra. Foi uma nómada na América. O conjunto dos seus contos foi publicado no Verão de 2015 e está quase a chegar a Portugal.
Não há sentidos nem emoções em sossego quando se lê Lucia Berlin. A escritora Lydia Davis disse que a obra dessa mulher de olhos azuis, quase sempre de cigarro na mão, tem a capacidade de fazer o leitor “usar o cérebro” e pô-lo a sentir os “batimentos cardíacos”. Mesmo assim Lucia Berlin nunca saiu da sombra enquanto viveu. Nasceu a 12 de Novembro de 1936 e precisamente no mesmo dia, 68 anos depois, vítima de cancro no pulmão, junto dos seus filhos, em Marina del Rey, perto de Los Angeles, e depois de algum tempo a viver num parque de caravanas no Colorado.
Foi professora de escrita criativa, mas antes também foi empregada de limpeza, recepcionista, assistente hospitalar. Escreveu contos sobre o que há de mais devastador, usando um humor desarmante, rindo com enorme delicadeza – e por vezes crueza – da tragédia que atravessou a sua vida. As suas histórias são povoadas por pessoas à margem, excluídos, gente na linha da sobrevivência social, económica, clínica, moral de afecto; dependentes de álcool e droga, excêntricos, frágeis. Histórias talvez demasiado pesadas para serem suportáveis não fosse o tom em que são contadas e que contrasta com a densidade do seu conteúdo. Não é tudo. Falta o mais inquietante. Lida a obra, quer-se saber da biografia e percebe-se que a principal matéria literária de Berlin foi a sua própria vida. Por vezes tão devastada quanto as que pôs no papel. “Exagero muito e misturo a realidade com a ficção, mas, na verdade, nunca minto”, escreve a narradora de uma das suas histórias, Silêncio, sumário de uma existência que é autobiográfica, faltando apenas saber – e é parte do jogo da ficção – exactamente até que ponto.
“Eu tentava esconder-me quando o Avô estava bêbado, porque ele apanhava-me e baloiçava-me. Estava a fazê-lo uma vez, na cadeira de baloiço grande, a agarrar-me com força, com a cadeira a levantar do chão a poucos centímetros do fogão em brasa, com a coisa dele a enfiar-se e a enfiar-se no meu rabo. Ele estava a cantar ‘Ol Tin Pan with a Hole in the Bottom. Alto. A arfar e a grunhir. Ali, a poucos metros, a Mamie estava sentada a ler a Bíblia quando eu gritei ‘Mamie! Ajuda-me!’ O Tio John apareceu, bêbado e empoeirado. Arrancou-me do Avô, levantou o velho pela camisa. Disse que o matava com as próprias mãos da próxima vez. Depois fechou a Bíblia da Mamie com força.” Pouco antes desta descrição, o leitor fora avisado sobre a premissa da narradora, que se pressente ser também a da escritora: “Não me importo de contar coisas horríveis se conseguir torná-las engraçadas.”
Tudo é acção, tumulto, respiração a todos os ritmos na escrita desta mulher nómada que morreu demasiado longe do lugar onde merecia estar quando se fala de literatura. Publicou seis livros de contos entre a década de 70 e o final dos anos 90 e com isso conseguiu chamar a atenção de Lydia Davis e de Saul Bellow. Davis conheceu-a no inicio dos anos 80, trocou correspondência com ela, tentou convencer editores da costa Leste dos EUA a publicar essa mulher que viveu quase sempre do outro lado, mais perto do Pacífico. Em vão. Só em 2015, onze anos passados da da sua morte, Lucia Berlin conquistou a crítica depois da editora Farrar, Strauss and Giroux reunir os seus contos no volume A Manual For Cleaning Women, considerado um dos livros do ano por jornais de referência nos EUA e em Inglaterra. O livro terá edição portuguesa no dia 4 de Maio com o título Manual para Mulheres de Limpeza (Alfaguara) e é mais um sinal de que Berlin está finalmente a deixar de ser, como lhe chamou ainda no século XX o escritor Paul Metcalf, “um dos segredos mais bem guardados da literatura americana”.
Forçar a lenda
Como apresentar Lucia Berlin? O tom tem sido o de quem conta um facto surpreendente. O desconhecimento aliado ao modo como o livro está a ser recebido têm ajudado a alimentar o mito, e a lenda parece tão mais apetecida quando mais perto da ficção estiver a realidade de Berlin. Ou seja, fazer o contrário do que ela fez na literatura: aproximar do real, não o distorcendo. Tem-se escrito, por exemplo, que morreu na garagem da casa de um dos seus filhos por não ter outro sítio onde morar. No início desta semana, na página de Facebook dedicada a Lucia Berlin, o seu filho David escreveu que a mãe não morreu numa garagem mas no seu apartamento de onde se via o Oceano. “Morreu na cama com um livro, mas não foi, como diz a lenda, o seu livro preferido”, acrescentou.
A biografia oficial conta que nasceu em Juneau, a capital do Alasca, com o nome Lucia Brown, filha de um funcionário da indústria mineira. Num dos seu contos, ela alude a uma conversa onde um pai meio senil, em fim de vida, tenta que a filha se lembre desse território inicial. A filha não tem recordação alguma, mas diz-lhe que sim. O lugar onde Lucia nasceu foi só mais uma escala – a única sem memória – na grande itinerância que seria a sua vida. Passou os primeiros anos em cidades ou acampamentos mineiros de Idaho, Kentucky e Montana. Tinha cinco anos quando o pai foi chamado a combater na II Guerra e, com a mãe a a irmã mais nova, mudou-se para El Paso, Texas, onde foi viver para casa do avô, dentista alcoólico, que inspirou o conto que inaugura o livro. Lucia era mais próxima do pai; com a mãe, também dependente de álcool, a relação era turbulenta.
A família mudou-se para Santiago do Chile quando a guerra acabou. Aí, Lucia Berlin conheceu outro mundo, aprendeu a falar e a escrever espanhol fluentemente, andava entre eventos sociais, estava entre as elites, um contraste com a vida na América. Nessa altura foi-lhe diagnosticada uma escoliose e seria muitas vezes obrigada a usar um suporte ortopédico de ferro para manter a coluna direita. Inscreveu-se na Universidade do México, em Albuquerque, foi aluna do escritor Ramon Sander, casou e teve dois filhos. O primeiro tinha ela 19 anos, o segundo nasceu já ela estava sozinha. O marido deixara-a durante a gravidez. Pouco depois, terminava o curso, conheceu o poeta Edward Dorn, o escritor Robert Creely e os músicos de jazz Race Newton e Buddy Berlin. Casou com Race Newton, começou a escrever, mudou-se para Nova Iorque, fica próxima dos nomes da Beat. O casamento acabou em 1960. Durou dois anos. Lucia viajou com Buddy Berlin para o México e os dois casam-se. Buddy tinha dinheiro mas Lucy não sabia que ele dependia de drogas. Tiveram dois filhos até se divorciarem em 1968. Aos 32 anos, tinha quatro filhos e três divórcios. Nunca mais casou.
Foi viver para a Califórnia, um dos territórios mais presentes nos seus contos, entre Oakland e Berkeley. Deu aulas no liceu e teve muitas das ocupações que fazem parte da identidade das suas personagens, enquanto escrevia e começava a beber. Passou por vários processos de desintoxicação, até ir outra vez para o México em 1991. Viveu um ano a cuidar da irmã, em fase terminal de cancro. A mãe morrera pouco antes. Supostamente, por suicídio. Lucia volta a encontrar Edward Dorn que em 1994 a leva para a Universidade do Colorado ensinar escrita criativa. Em 2000 reforma-se. A escoliose perfurara-lhe um pulmão e tem dificuldade em respirar sem auxílio de oxigénio. Pouco depois, é-lhe diagnosticado um cancro. Em 2001 muoua-se para Los Angeles onde estão os filhos. Morreu em 2004.
Uma vastidão de gente anónima
São os factos secos que ajudam a situar ou a entender os temas da escrita. Mas neles não está o desespero nem a dignidade com que conta a existência dos desesperados ou desamparo. A vida de Lucia é a sua grande fonte criativa, não tanto pelo modo como se narra a si mesma, mas pela voz narrativa que inclui a voz de todos os que se cruzaram com ela sem nunca os revelar por completo. Por isso, quando se indaga acerca das referências é preciso pensar numa vastidão de gente anónima a que se juntam alguns nomes reconhecidos. “A sua vida foi rica e cheia de acontecimentos, e o material que retirou dela para os seus contos foi colorido, dramático e muito variado”, escreve Lydia Davis no texto de apresentação do livro. E acrescenta: “Ela viveu em tantos lugares – passou por tanta coisa – que daria para encher várias vidas. Quase todos nós já vivemos parte daquilo por que ela passou: sarilhos em criança, ou abuso sexual na infância, ou um caso amoroso arrebatado, ou problemas de dependência, uma doença difícil ou incapacitante, um inesperado reatar de laços fraternais, um emprego entediante, colegas complicados, um chefe caprichoso, ou um amigo horrível, para não falar do êxtase perante o mundo natural – gado da raça Hereford com castilleja até aos joelhos, um campo de tremoceiros azuis, uma violeta-das-damas cor-de-rosa no beco atrás do hospital. Porque conhecemos uma parte disso, ou algo parecido com isso, é como se estivéssemos lá quando somos conduzidos por ela.”
As grandes pistas sobre quem foi, as escolhas que fez, o que perseguiu na escrita, o modo como lidou com a culpa ou o trauma, estão mais uma vez nos contos. “Imaginemos o conto de Tchékhov Saudade na primeira pessoa. Um velho a dizer-nos que o seu filho acabou de morrer. Sentir-nos-íamos sem jeito, desconfortáveis, até entediados, reagindo precisamente como os passageiros do coche do homem na história. Mas a voz imparcial de Tchékhov confere dignidade ao homem. Absorvemos a compaixão do autor por ele e sentimo-nos profundamente comovidos, se não pela morte do filho, pelo modo como o velho fala com o cavalo.” O início do conto Ponto de Vista, um dos 77 que compõem o livro, é um manifesto sobre o estilo. Berlin nunca julga. As personagens e as relações que descreve são complexas, o modo como as expõe aparenta uma simplicidade desarmante. Não têm faltado comparações com Raymod Carver, Williams Carlos Williams, autoras menos mediáticas como Grace Paley ou Lorrie Moore. Ela falava sempre de Tchéhov. Num texto publicado na Paris Review com o título Fumando com Lucia Berlin, a escritora Elizabeth Geoghegan contava um encontro com Berlin, já com a escritora doente, sempre com uma botija de oxigénio a ajudar na respiração. As duas falaram à mesa da cozinha, um dos lugares preferidos de Lucia Berlin. Lê-la é ficarmos perdidos na sua voz. As suas histórias fazem-nos sentir como se estivéssemos coscuvilhar à mesa da sua cozinha.” E naquela cozinha cabe a essência de um país por uma perspectiva invulgar, dos desesperados. Voltemos a Lydia Davis: “O leque das suas referências é tão vasto, e até tão exótico, que as telefonistas se encostam aos seus painéis como ordenhadoras se encostam às suas vacas; ou uma amiga vem à porta, com ‘o cabelo preto penteado para cima, em rolos metálicos, como um adorno de kabuki”.
Há comédia na tragédia de Lucia Berlin e Lydia Davis sublinha isso com uma espécie de ressalva que não escreve mas deixa implícita. Não há em Berlin traço de ironia amarga. É outra coisa. Davis diz isso assim: “Como na vida, pode haver comédia no meio da tragédia. A irmã mais nova, a morrer de cancro, chora: 'Nunca mais voltarei a ver burros!', e ambas as irmãs acabam a rir sem parar, mas a exclamação pungente permanece connosco. A morte tornou-se tão imediata – acabam-se os burros, acaba-se tanta coisa.”