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Qualquer coisa que seja de verdade

Fechados num teatro, três actores ensaiam um espectáculo sabendo que lá fora há pessoas a morrer. É em São Petersburgo, no ano de 1905, mas podia ser aqui e agora: João Reis traz o dilema moral de Neva, do dramaturgo chileno Guillermo Calderón, para o palco do Teatro Carlos Alberto.

Foto
Diogo Baptista

Três actores vestidos de preto, iluminados pela resistência incandescente de um velho aquecedor, e lá fora – na rua, no mundo – um domingo sangrento em São Petersburgo (cenas, aliás das mais icónicas, da luta de classes).

Foi assim a primeira aparição de Neva em Portugal. Já a caminho de se tornar um caso exemplar do teatro latino-americano, a caminho de ser recebido em ombros na Europa e nos EUA, o chileno Guillermo Calderón tinha estado um ano antes no Festival de Almada com Diciembre, onde imaginava o futuro como repetição do passado (o Chile em conflito com o Peru e com a Bolívia, mais de cem anos depois da Guerra do Pacífico). Em 2010, chegava ao Próximo Futuro, o entretanto extinto programa de cultura contemporânea da Gulbenkian, com uma peça onde fazia o movimento contrário e imaginava o passado como máquina infernal de aprisionar o futuro: nesse longínquo massacre de 1905 em que as tropas do czar esmagaram um número indeterminado de manifestantes, nos corpos que então ficaram a boiar no rio Neva, Calderón viu não só os corpos que Pinochet pôs a boiar quase 70 anos depois numa galáxia bastante distante, o rio Mapocho, mas também o trauma fundador que condena ao fracasso todas as revoluções, ou pelo menos a única que ele viu acabar (e, claro, a acabar mal).

Passaram-se cinco anos e várias vindas de Calderón a Lisboa – com outros textos em que não saía desse sinistro Chile pinochetista (Villa + Discurso, em 2011; Escuela, em 2014) – até esta segunda aparição de Neva, agora em português, que ontem se estreou no Teatro Carlos Alberto, Porto, onde fica até ao próximo dia 15 (de 26 a 29, estará no São Luiz, em Lisboa). Não é um efeito da primeira: João Reis, que aqui volta a interromper a carreira de actor para se sentar a encenar, não viu Neva em Lisboa, na encenação original do próprio Calderón que permanece até hoje, incandescente, na memória de muitos espectadores.  Escolheu esta peça porque, “por força das circunstâncias e da crise”, andava “à procura de um texto para poucos actores” (Neva pedia três: Lígia Roque, Cristovão Campos e Sara Barros Leitão): “Chegou-me às mãos num tráfico entre amigos e assim que o li fiquei agarrado, porque levanta essa questão incontornável da utilidade do teatro, e da necessidade e da pertinência de o continuarmos a fazer, e porque é um texto de actores para actores – sendo que esta minha curta experiência de encenador serve sobretudo para me aproximar dos actores. Não é recorrente nem eu quero que o venha a ser.”

Certo, é com a sua “cabeça de actor” que João Reis olha para Lígia Roque, Cristovão Campos e Sara Barros Leitão. Como não olhar com essa cabeça quando, em cima do palco, eles são actores de 2015 a fazer de actores de 1905 – e quando um desses actores, a mítica Olga Knipper (Lígia Roque), é o fantasma, tal como o ficciona um dramaturgo nascido no Chile em 1971, da “primeira actriz do Teatro de Arte de Moscovo, onde tudo se ensaia, tudo se sente e tudo se recorda com uma emoção brutal”, e além do mais “viúva dele, do génio, de Anton Pavlovich Tchékhov”? É “um teatro com várias camadas”, o de Neva. E com os milagres e os equívocos criados na incessante “transferência dos actores para as personagens e das personagens para os actores” que se processa dentro do próprio texto, e que torna impossível distinguir a vida do teatro e o teatro da vida.

É esse, de resto, o dilema moral destes três actores que, fechados num teatro, ensaiam um espectáculo sabendo que lá fora nas ruas de São Petersburgo, 40 graus abaixo de zero, há pessoas a morrer (incluindo, possivelmente, todos os outros actores da companhia). Tal como tinha sido esse o dilema de Olga Knipper quando, fechada num teatro, fazia os papéis das mulheres que Tchékhov escrevia enquanto lá fora, na sua casa de Ialta, ele cuspia os pulmões.

Não é verdade que alguém tem de entreter os espectadores enquanto o mundo acaba?

Fantasmas
Aleko quer ir viver para o campo. Olga quer continuar a representar. Masha não quer trabalhar pintada, não quer parecer bonita. Quer queimar tudo, e atirar barris de pólvora às pessoas que sabem dançar a valsa: “A história passa como um fantasma, vai haver uma revolução. E quem é que é suficientemente imbecil para ficar trancado numa sala de teatro (…)? Querem fazer qualquer coisa que seja de verdade? Saiam à rua e vejam a força simples da violência política, o fim do regime. É tão bonito matar um general e rebentar um ministro com uma bomba, vem um cheiro a justiça.”

Sentados no palco do Teatro Carlos Alberto, depois de mais um ensaio, enquanto na rua ainda não há Governo e certos países da União Europeia tratam refugiados como lixo, os actores de Neva também têm dúvidas sobre onde estar. Cristovão Campos: “Os actores devem estar no palco, por isso é que são actores. Mas depois o indivíduo que também é actor deve estar na rua.” Lígia Roque: “Para os actores, a decisão acerca do lugar onde devem estar é uma demanda diária que se manifesta na escolha do texto a fazer, das pessoas com quem trabalhar. Por isso é que o momento em que o Guillermo Calderón situa esta peça não é inócuo: é o momento de uma grande revolução social mas também da grande revolução teatral do Stanislavski.” João Reis: “Estou como o Aleko, numa fase mais contemplativa em que gostava de ter mais tempo para ler e para estar parado. Mas também me revejo no desejo de revolução da Masha e no desejo mais conservador, de disciplina e de teatro, da Olga.”

Mesmo tendo sido sobretudo este último, o desejo de teatro, a agarrá-lo ao texto, João Reis acredita que a Europa de 2015, como a Rússia de 1905, precisa urgentemente de desejar a revolução. “A Rússia de 1905 é uma metáfora: podemos imaginar esta situação a acontecer hoje em Atenas ou em várias outras cidades europeias, porque efectivamente precisamos de fazer alguma coisa.”

É o tipo de frase que uma actriz de Tchékhov podia dizer – e que uma actriz de Tchékhov de facto dizia neste mesmo palco, mas há dez anos, numa encenação de Nuno Carinhas que em certo sentido agora assombra Neva. Literalmente, porque a alcatifa que então cobria o chão de O Tio Vânia é agora uma cortina, mas mais do que isso, diz o director artístico da casa, a quem João Reis pediu para tratar da cenografia e dos figurinos: “Esta é uma peça de fantasmas: o fantasma de Tchékhov, da sua actriz, das suas personagens. Mesmo a Masha e o Aleko, que vampirizam esse legado, são profundamente tchekhovianos no seu desespero, nas suas ambições, nos seus afectos, nas suas simulações, sem deixarem de amalgamar outros acontecimentos noutros lugares e noutras datas. Mas o século XX foi isso, uma sucessão de acontecimentos, e somos filhos de todos eles.”

Talvez por isso não soe tão estranho, nem tão anacrónico, vir cá fora dizer, neste Portugal de 2015, que não há deus nem há czar.

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