Popular e electrónica dança a dois

Juntando acordeão e guitarra portuguesa, Gabriel Gomes e Luís Varatojo criaram o projecto Fandango. E um disco que é um guia turístico para dançar.

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Aquilo que o duo Fandango procura é não tanto uma inflexão para cenário eruditos, muito mais uma diferente forma de enxertar os instrumentos num contexto popular PAULO SPRANGER

A enunciação deste encontro entre dois músicos pertencentes à ínclita geração Rock Rendez Vous – Varatojo enquanto membro dos Peste & Sida, Gomes no palco com os Sétima Legião e os Madredeus – faz-se de forma simples: uma guitarra portuguesa e um acordeão, em descomplicado convívio com uma música maquinal desenhada por loops, programações, sintetizadores, tudo o que possa emprestar um fundo dançável a esse tal despique entre dois instrumentos com um património e uma linguagem enquadrados pela tradição. Aquilo que o duo Fandango procura é não tanto uma inflexão para cenário eruditos, muito mais uma diferente forma de enxertar os instrumentos num contexto popular. No caso, um popular mais adequado a dançar-se em pistas de discotecas e sob luzes psicadélicas, strobes e afins, pouco remetendo para os estrados que qualquer junta de freguesia tira do armazém para animar as suas festas de Verão.

E é por isso que muito embora se conheçam desde as velhas andanças dos anos 80 e há muito saibam do interesse um do outro pelas investigações electrónicas – mais flagrante no caso de Gabriel Gomes, cuja saída dos Madredeus o viu tornar-se DJ de chill out, integrar a organização do festival Boom e a explorar o trance psicadélico no projecto Tjak –, só depois de Luís Varatojo adoptar a guitarra portuguesa para a fundação d’A Naifa as hipotéticas premissas do Fandango se estabeleceram. Ainda assim, foi preciso esperar pelo final de 2014 para que as conversas entre os dois fossem preparando caminho para a música que se ouve no disco homónimo editado esta sexta-feira. “Se calhar a ideia de fazer algo deste género andava na cabeça do Gabriel e andava na minha”, admite Varatojo, “mas a de o fazermos em conjunto tem a ver com o ano passado. Encontrámo-nos duas ou três vezes, começámos a conversar e no fim do ano tivemos um almoço em que firmámos a ideia”. Quando pousaram os talheres, o rumo já estava definido: juntar os dois instrumentos, convocar a electrónica, mas não empurrando guitarra e acordeão para efeitos e processamentos que roubassem as suas características.

“Seria imprudente transformar o acordeão num outro instrumento sintetizado, até porque não resulta num som agradável”, refere Gomes. Os efeitos usados são, por isso, recursos como delay ou reverb, mantendo os sons reconhecíveis – por mais processamento que uma guitarra tenha, não passa a soar a um Fender Rhodes nem a uma pandeireta. “Se fosse para alterar, mais valia utilizar um Moog, que é muito melhor”, argumenta Varatojo, o guitarrista. Mas argumenta com a consciência de que foi isso mesmo que fez: comprou um Moog que espalhou pelo disco do Fandango, para não ter de trair a sonoridade da sua guitarra.

Espaços e lugares
Se os instrumentos garantiam já casas de partida distintas para Varatojo e Gomes, as circunstâncias de trabalho de cada um ditaram também caminhos diversos nas composições que trouxeram para o projecto – enquanto o primeiro partiu da guitarra privilegiando figuras melódicas sobre as quais foram encaixados padrões rítmicos, o segundo, não dispondo de um estúdio caseiro, fez o contrário e trabalhou primeiro as programações, juntando o acordeão no final. É graças a esse processo bifurcado que Café ou Ritz surgem movidos pelo ritmo, enquanto Paredes, Tua ou Balada não enganam na sua origem melódica. Seja qual for o método, a verdade é que Fandango, o disco, soa quase sempre a um surpreendente encontro entre estranheza e familiaridade. É um disco familiar porque a assunção de uma herança popular depositada neste contexto dançável evita abordagens artificiais e esforçadas em reclamar novos mundos para os instrumentos; é um disco estranho porque decorrente de uma combinação musical atípica, acarretando por isso um cuidado especial para não se deixar contaminar por opções de gosto duvidoso.

Mas até mesmo quando o gosto pode ser confessadamente duvidoso, as escolhas são conscientes e submetem-se ao prazer. Marginal cai precisamente nesse campo. “Fiz aquela melodia de guitarra e pensei ‘Esta merda é easy listening, música de elevador, é o Burt Bacharach’. Mas a guitarra portuguesa também é isto.” E essa foi uma das importantes lições que ficaram a Varatojo dos tempos de aprendizagem com Carlos Gonçalves (um dos últimos guitarristas de Amália), quando este lhe mostrou o tema Lisboa ao entardecer, “um instrumental em que não há tristezas nem desgraças, parece que se está na esplanada e a guitarra a tocar em fundo”. Precisamente pela semelhança de ambientes o tema foi designado Marginal, como se tivesse sido parido para acompanhar uma viagem de carro ao fim da tarde entre Lisboa e Cascais.

Espaços e lugares povoam, aliás, todo o disco. Depois de Marginal, há Café e Ritz, mas também Tua, Algarve, Tróia ou Ponta do Sol. “É um guia turístico alternativo”, chama-lhe Varatojo. “A maior parte das músicas nasce das paisagens e do que sentimos em relação a determinado sítio. Tua não nasceu no Tua, mas nasceu de uma ideia de paisagem do Minho ou do Douro; depois, como a música tem uma cadência ferroviária achámos que fazia sentido.”

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Assim como lhes faz sentido continuarem a tocar ao vivo (sábado, em Lisboa, actuam no festival Lisb-On). Se a aproximação às ferramentas tecnológicas em meados dos anos 90 funcionou sobretudo para autonomizar os músicos e livrá-los de egos alheios, salas de ensaios e conjugação de agendas, é essencial para estes fandangueiros que a música possa viver também em palco. “Sem ser música da pen”, advertem. Aquela música que se carrega num bolso em ficheiro de computador e só precisa de um play para se fazer escutar. Em Fandango, a electrónica ajuda, mas é apenas convidada. Manda pouco.

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