Penelope suave

As duas primeiras exposições da nova directora da Gulbenkian foram inauguradas a propósito dos 60 anos da Fundação. Penelope Curtis quis começar de uma forma discreta, mas exposições de aniversário não são tema fácil.

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Exposição Linhas do Tempo: cadeira de braços francesa, séc. XVIII, que Gulbenkian comprou no anos 20, ao mesmo tempo que encomendava uma casa-de-banho a Lalique. Ao fundo, Apolo, de Houdon Rui Gaudêncio
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Biombo de Hein Semke (1971) Rui Gaudêncio
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Escultura Bowbend, de Michael Bolus (1964) Rui Gaudêncio

Penelope Curtis não é Houdini, o famoso ilusionista, mas fez desaparecer a escultura de Houdon do átrio do Museu Gulbenkian, em Lisboa. Do belo Apolo, uma estátua em bronze de quase dois metros, restam quatro ossos suspensos do tecto sobre um plinto vazio. A directora do museu conseguiu substituir a obra do escultor francês do século XVIII por uma do português Francisco Tropa, emprestada pela Fundación Arco, que a comprou este ano na feira espanhola.

“Desapareceu e deixou atrás de si os ossos…” , brinca a nova directora, no cargo desde Setembro, e que comissaria agora as suas primeiras duas exposições. São tempos de mudança na Gulbenkian, por isso este Apolo vai reaparecer mais à frente na sala de exposições temporárias da sede, mas para já é o seu espectro que aqui paira, qual Vanitas.

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Exposição Convidados de Verão: um batedor de tapetes, um objecto típico de uma casa alemã, paira, numa escala gigante – tem 4,60 metros e pesa 20 quilos –, sobre um tapete de medalhão, feito na Índia, na galeria de arte do oriente islâmico Rui Gaudêncio

“E os balões de vidro são os órgãos a desmaterializarem-se nesta ascensão”, acrescenta a co-comissária Leonor Nazaré, chamando a atenção para os dois outros objectos que acompanham, sobre o plinto, os ossos de Francisco Tropa. É a primeira peça a ser apresentada na exposição Convidados de Verão, que leva 13 artistas contemporâneos para dentro do Museu Gulbenkian. Mais precisamente para dentro da Colecção do Fundador, que “nasceu” na semana passada, ao mesmo tempo que a Colecção Moderna, o nome pelo qual passa agora a ser conhecido o Centro de Arte Moderna.

Se a base desta escultura é um plinto clássico, a exposição propõe, ainda no átrio, um diálogo com outra base, que agora constitui a própria peça, numa proposta da artista alemã Asta Gröting. Base 2, feita em resina, é “um projecto de investigação” em redor de outro escultor francês, desta vez Rodin, e dos seus burgueses de Calais, de que um dos cinco exemplares, Jean-D’Aire, está mesmo ao lado, muito vertical. A peça de Gröting é a base em que assenta, com os outros cinco homens, este burguês de Calais, explica Penelope Curtis: “É muito simples e plástico.”

Entramos no museu, pela galeria de arte egípcia, e os olhos levam o seu tempo a adaptarem-se à penumbra e, por momentos, não sabemos se estamos a ver arte da antiguidade pré-clássica ou arte contemporânea. Entre as 15 vitrinas desta sala, impõe-se fora das caixas de vidro S/Título (Figura Pré-Colombiana), de Miguel Branco, esculpida em grés negro. O corpo mostra a mesma posição que a Estatueta do Funcionário Bés (Época Baixa, início da XXVI dinastia), típica da arte egípcia, mas “o grande contraste tem a ver com as caras, uma de hominídeo e outra inteligente”, nota Leonor Nazaré.

Foi por aqui, com Miguel Branco, explica Leonor Nazaré, que a exposição começou a ser pensada em Janeiro. Junta 14 artistas (além dos 13 dentro do edifício, tudo peças emprestadas e que, portanto, são extra Gulbenkian, há uma encomenda feita a Fernanda Fragateiro), três dos quais são estrangeiros (e mulheres). Para lá dos que já encontrámos na visita, há também trabalhos de Bela Silva, Diogo Pimentão, Wiebke Siem, Miguel Palma, Patrícia Garrido, Pedro Cabral Santo, Rui Chafes, Susanne Themlitz, Vasco Araújo e Yael Bartana.

“Foi engraçado porque na preparação da exposição foi tudo mesmo muito partilhado. A Penelope lançou o desafio, falando no Miguel Branco, e eu apresentei um pacote de ideias. Ela picou algumas. ” Contrapôs, por exemplo, esta peça de Tropa e as artistas estrangeiras foram todas propostas pela directora. O passado destes encontros, lembra Nazaré, foram os Meeting Points organizados por Helena de Freitas, que cruzaram Paula Rego e Rembrandt ou Fantin-Latour e Manuel Botelho. Mas “foi difícil continuá-los, porque a anterior direcção não foi aquilo que quis valorizar.” Já Penelope Curtis, para lá de ter sido o que lhe foi pedido quando concorreu ao cargo, “está na sua matriz fazer estes diálogos”.

Já na próxima paragem, na galeria de arte mesopotâmia, não é possível deixar de recordar os painéis de baixo-relevo atacados com marretas, perfurados com berbequins ou atirados ao chão, as imagens da destruição do património efectuada pelo Estado Islâmico feitas em Nimrud, no Iraque, e divulgadas como propaganda. Lado a lado, estão dois baixos-relevos, um feito em vídeo e outro em pedra, um de 2004, da artista israelita Yael Bartana, outro em 884-859 a.C., assírio. O primeiro mostra soldados israelitas, e toda a militarização do Médio Oriente, o segundo mostra um génio alado que decorou o interior de um palácio de Nimrud.

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Penelope Curtis em frente a uma tapeçaria de Eduardo Nery, na sala de exposições temporárias Rui Gaudêncio

“Não sei se é preciso dizer alguma coisa sobre esta peça de Wiebke Siem”, comenta a directora. Um batedor de tapetes, um objecto típico de uma casa alemã, paira, numa escala gigante – tem 4,60 metros e pesa 20 quilos , sobre um tapete de medalhão, feito na Índia, na galeria de arte do oriente islâmico.

Seguem-se as cerâmicas de Bela Silva, umas inesperadas peças de Rui Chafes em massa Fimo com cores vibrantes, até chegarmos à grande série de desenhos de Vasco Araújo, que ocupa todo o corredor de ligação com a galeria de arte europeia. Outro objecto do quotidiano, desta vez de Patrícia Garrido, um pára-sol de veludo vermelho, do renascimento veneziano, parece um objecto contemporâneo. O comentário é de Penelope Curtis, que já nos tinha interrogado, a propósito das pequenas esculturas de Chafes, se podemos chamar contemporâneo a uma obra de 1989, que já tem 25 anos?

Exercícios com o tempo, para a frente e para trás, é o que faz a segunda exposição, Linhas do Tempo, que foi inaugurada simultaneamente na sala de exposições do edifício-sede. Agora o diálogo quer estabelecer-se entre a Colecção do Fundador e a Colecção Moderna, simbolizando o novo perfil do Museu Gulbenkian. Pedida a Penelope Curtis logo que a directora britânica chegou a Lisboa para comemorar os 60 anos da fundação, como ela explicou na visita de imprensa, são mostradas 160 obras das duas colecções, algumas nunca antes expostas.

“Como é que se fazem exposições interessantes de aniversário?”, interrogou-se Penelope Curtis. Com a ajuda dos curadores João Carvalho Dias (Colecção do Fundador) e Patrícia Rosas Prior (Colecção Moderna), a nova directora tentou perceber como é que as duas colecções podem falar uma com a outra. “São mais parecidas do que esperamos. Encontrámos ligações interessantes, algumas muito óbvias, como o gosto pela pintura de paisagem, ou pela relação com Rodin, comum a Gulbenkian e a artistas da colecção moderna. Outras mais inesperadas – porque geralmente pensamos no Gulbenkian como um homem em que o gosto acaba em 1900  mas aqui podemos vê-lo no século XX, como é que ele vivia no seu tempo. O seu tempo é o mesmo de partes da Colecção Moderna.”

Em Linhas do Tempo, mostra-se que estas colecções consecutivas são, afinal, também simultâneas. Várias datas, que revelam pontos de convergência e divergência: a primeira compra de Gulbenkian, moedas gregas, é de 1896, exactamente 60 anos antes da criação da fundação; 1955-56, morte de Gulbenkian e criação da fundação, altura em que terá sido adquirido um tapete de oração da Ásia Menor pelo próprio Gulbenkian, muito diferente dos que tinha comprado até aí; 1958, a fundação compra obras mostradas na “I Exposição de Artes Plásticas”, promovida pela própria Gulbenkian no ano anterior; nos anos 1960, há as compras de arte pop britânica, feitas através de conselheiros do British Council, ao mesmo tempo que é encomendado mobiliário e obras de arte para decorar a sede; 1983, é inaugurado o edifício para a Colecção Moderna com muitas novas obras a entrarem na colecção.

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Uma das intervenções de Fernanda Fragateiro em aço inoxidável num banco de jardim desenhado pelo arquitecto paisagista Gonçalo Ribeiro Telles Rui Gaudêncio

Na exposição, aliás, não há distinção entre colecção formal, privada e institucional, e se vemos coisas compradas para a residência de Gulbenkian em Paris, há igualmente mobiliário desenhado para a sede por designers portugueses no século XX.

Penelope Curtis é da opinião que muitas das relações que quiseram estabelecer podem ser apreendidas pelos visitantes e Linhas do Tempo não é só para as pessoas do mundo da história da arte. Se na altura da visita para os jornalistas ainda faltavam os textos explicativos, estes vão permitir, afirma, apreciar a exposição de muitas formas: “Pode-se entrar e pensar apenas que é bonito. É muito colorida, muito decorativa e trabalhámos muito para encontrar formas fáceis de olhar para ela. Por exemplo, decoração floral, decoração simétrica, algumas das esculturas de 1960 cruzadas com o mobiliário da mesma época.”

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Leonor Nazaré em frente a uma das intervenções de Fernanda Fragateiro no jardim Rui Gaudêncio

A nosso pedido, a directora destaca a combinação das esculturas de Houdon que veio do átrio para aqui e de Gargallo. “Apolo e São João são ambas figuras alegóricas, fantásticos, porque têm uma semelhança formal. Têm dois metros de altura e são duas grandes esculturas simbólicas. E, de certa maneira, partilham uma data, na criação e aquisição.”

A exposição pode ser vista de trás para a frente e, no seu final, os anos 2000, está uma escultura de José Pedro Croft, resultado de uma encomenda feita ao artista pela Gulbenkian há dez anos, no cinquentenário da fundação. A instalação Paisagem Interior foi também uma instalação no átrio do museu.

O que nos traz de volta à pergunta da directora: como é que se fazem exposições para comemorar aniversários? O que podemos também perguntar é se o resultado desta investigação, que estuda as relações possíveis entre as duas colecções Gulbenkian agora que foram unidas, devia ter sido uma exposição? 

 As relações “atemporais” e “intemporais”, como lhes chamou Leonor Nazaré, entre o contemporâneo e a Colecção do Fundador, parecem mais interessante e subtis na exposição Convidados de Verão. Mesmo que se possa contrapor que as peças apresentadas não são resultado do “gosto” Gulbenkian, à excepção das nove intervenções de Fernanda Fragateiro no jardim, em que a artista cobriu os bancos desenhados em cimento por Gonçalo Ribeiro Teles com uma pele de aço inoxidável. Os bancos reflectem agora a paisagem desenhada pelo arquitecto paisagista.

A verdade é que o gosto do coleccionador Gulbenkian, ou uma exposição que reflicta sobre isso, pode facilmente cair em armadilhas quando, como termo de comparação, há uma Colecção Moderna. Se é difícil escapar ao espírito comemorativo dos aniversários, o Gulbenkian “moderno” do início do século, como defendem os comissários em relação às artes decorativas, pode não ser uma coisa muito óbvia para quem visita a exposição. “Ele é moderno no início do século XX quando começa a comprar jóias a Lalique ou nos anos 20 quando reformula a sua casa, a nível técnico, com a introdução do elevador, e estético, quando encomenda uma casa-de-banho a Lalique e faz compras a Brandt”, diz João Carvalho Dias.

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Escultura de Miguel Branco, na sala do Antigo Egipto Rui Gaudêncio

De volta ao museu Gulbenkian, e depois de passarmos ainda por uma peça como Instabilidade, de Miguel Palma, que faz tremer uma jarra de porcelana através de um dispositivo mecânico, chegamos às últimas salas da galeria do século XIX, onde quatro esculturas de bronze saíram das vitrinas que as guardavam, entre as quais obras de Rodin e de Carpeaux, aponta João Carvalho Dias. É também magia de Penelope Curtis e da sua equipa, mas agora não se trata de uma intervenção no âmbito da exposição Convidados de Verão. “Gradualmente, de uma forma suave, vamos fazendo mudanças.” Até Dezembro, por exemplo, vai desaparecer o linho cor de areia que forra as paredes que passarão a estar pintadas , para as obras se poderem mover facilmente sem deixar marcas.

A próxima grande mudança nas colecções Gulbenkian segue dentro de dias, com uma nova série de apresentações da Colecção Moderna. A primeira está marcada para 8 de Julho e chama-se Portugal em Flagrante.

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