Os LCD Soundsystem no fim de uma sequência perfeita em Paredes de Coura
A banda de James Murphy regressou para um concerto imaculado. Antes, dois concertos superlativos, o dos irados Sleaford Mods e o dos explosivos Thee Oh Sees. Três actuações com entrada directa na história do festival.
Paredes de Coura sem chuva não é verdadeiramente Paredes de Coura. Confirme-se, então, que em 2016 estamos a ter tudo a que temos direito no festival. A chuva chegou na madrugada de quinta-feira e manteve-se na manhã de sexta. Efeitos secundários, para além da surpresa nos campistas estreantes, foi o adiamento para sábado da sessão Vozes na Escrita que reunirá Adolfo Luxúria Canibal a Capicua. Umas horas de pluviosidade, moderada neste caso, são portanto o habitual. Menos normal será ter tido o privilégio de testemunhar o que aconteceu a 18 de Agosto de 2016 no palco principal do Vodafone Paredes de Coura, perante 24 mil espectadores, e que entrará directamente para a galeria de noites históricas do festival.
Dois ingleses, aparentemente tão pequenos no centro do palco, a tornarem-se grandiosos com a virulência, o humor, a forma tão punk com que expõem, sem subtilezas, a podridão do mundinho em que chafurdamos – chamam-se Sleaford Mods. Quatro americanos a dinamitarem todo o rock’n’roll de ontem para nos oferecerem um eterno presente – chamam-se Thee Oh Sees e são, sem grande hipótese de erro, a mais portentosa banda rock’n’roll a pisar o planeta neste momento. Oito músicos num palco recheado de parafernália, emoldurados por efeitos cénicos que intensificaram a experiência, a ofererecem-nos as canções que fizeram o nosso ontem, que foram um futuro que não se desvaneceu – eis os tão aguardados LCD Soundsystem de James Murphy a encerrarem a noite no palco principal com um concerto imaculado. Durante as seis horas que passaram entre o início do concerto dos Sleaford Mods e o fim do dos LCD Soundsystem, não haveria outro lugar no mundo em que quiséssemos estar. Tanta riqueza não podia ser desperdiçada.
Eram 18h e vivia-se aquela descontracção de tarde amena em ambiente bucólico. Pessoas deitadas a polvilhar a relva, aproveitando o sol que brilhava lá no alto. Um som que irrompe, o som aberto de uma guitarra de 12 cordas onde eram dedilhados acordes daquela Americana que há muito deixou de ser património exclusivo dos Estados Unidos – sentimo-la como nossa. Acompanhado por um baixista norueguês e pelo baterista português Gabriel Ferrandini – um ensaio prévio e vamos a isto –, Riley Walker transformou canções de Primrose Green, o álbum que o revelou, e do recentíssimo Golden Sings That Have Been Sung em ponto de partida para viagens instrumentais que se elevavam em dimensões cósmicas, bateria em rodopio, guitarra espiralando em volta do ritmo, antes de aterrarem novamente no alpendre com vista para a planície que sugere esta música onde convivem, à uma, John Martyn, o Tim Hardin dos desvios jazz, Alice Coltrane ou Ben Chasny.
Começámos por ter a música como palco de liberdade, como uma constante possibilidade de reinvenção. Tivemo-la depois, cortesia dos adoráveis Whitney, como cenário de delicioso sonho adolescente. A banda de Chicago, nascida das cinzas dos Smith Westerns, transforma a country em pop solar capaz de confortar o coração mais granítico, transporta os cantautores de década de 1970 para um novo tempo, este, com a delicadeza da voz do baterista/vocalista Julien Ehrlich. Beberam vinho pela garrafa, sorriram ao público conhecedor que os esperava, falaram directamente com os que lhes lançavam palavras nas primeiras filas. Serão, muito justamente, a nova banda preferida de muita gente. O dia que nos traria, mais tarde, o rock infernal dos bracarenses Bed Legs ou o gospel cruzado com neurose pós-punk dos Algiers arrancava da melhor maneira. O que se seguiria iria torná-lo nada menos do que memorável.
A orquestra infalível...
Nascem rodas de dança improvisadas aqui e ali entre a multidão. Frente ao palco, onde a relva já soçobrou perante a agitação de tantos pés a pisá-la tão furiosamente, ergue-se novamente uma nuvem de poeira, ali naquele espaço informalmente declarado como reserva para o mosh e o surf sobre o público. No palco, e já passámos da uma da madrugada, James Muprhy e a teclista Nancy Whang continuam a cantar a palavra chave dessa canção manifesto chamada Yeah – e é yeah, precisamente, o que cantam enquanto a banda, baterista Phil Mahoney à cabeça, mantém a cadência inabalável, repetitiva, do ritmo.
Os LCD Soundsystem regressaram e regressaram em grande. Não só pelo cuidado aparato de palco – os flashes que encandeavam, a gigante bola de espelhos, as projecções nos ecrãs, que iam do vermelho-sol ocupando todo o espaço aos ícones criados em retro 8 bit –, não só pela grande expectativa criada desde que foi anunciado que a digressão de regresso passaria por Paredes de Coura, não só por andarem na estrada com uma trupe que, entre músicos, técnicos, agentes, amigos e familiares conta mais de 60 pessoas. Regressaram em grande porque, canção após canção do concerto iniciado às 00h20, a nostalgia inevitável conviveu lado a lado com a magnífica capacidade que Murphy e companhia têm de se mostrar tão urgentes como da primeira vez, de incendiar a pista de dança como nova revelação, de fazer pop com a sabedoria dos mestres.
Chegaram com Us vs them, início apropriadíssimo – “Us and them/ over and over again”. Saltaram para a Daft Punk is playing at my house que, com House of jealous lovers, obra dos Rapture produzida por James Murphy, fez do cowbell, durante uma década, o instrumento mais cool do planeta. À segunda canção de um concerto de duas horas, já não havia lugar a dúvidas: o baixo e a guitarra, a bateria e as percussões, os sintezadores analógicos e os órgãos, comandados pelo vocalista e líder, formam uma orquestra tecno, funk, disco, rock e pós-punk incapaz de falhar.
É música abolidora de fronteiras, música incrivelmente física, música comentário à própria música. É, neste concerto, uma sucessão de canções que reconhecemos às primeiras notas. Eles até cantam “so you wanted a hit?/ Well, maybe we don’t do hits”, mas o alinhamento é mesmo uma sucessão de êxitos que, no mundo do estrelato estereotipado, nunca o deveriam ter sido. Mas é assim, procurando outras sínteses e explorando novos caminhos, que o mundo, até o do estrelato estereotipado, pula e avança.
Ao longo de duas horas, ouvimos a sofreguidão pop de Tribulations – “but it feels alright/ as long as something's happening” –, uma explosiva Movement, encontro felicíssimo entre os Suicide e os The Fall, ouvimos um dos muitos galegos em Paredes de Coura exclamar “esta es la mejor” quando chegou Someone great. All my friends, inevitavelmente a última do concerto, pode ser o êxito dos êxitos dos LCD Soundsystem, mas, na verdade, todos têm a sua preferida: curiosamente Losing my edge, a canção editada em 2002 que definiu em som e letra a identidade da banda, pode ter sido o Big Bang dos LCD Soundsystem, mas teve em Coura recepção tépida, sinal de que os primeiros passos não têm naqueles que chegaram à banda depois deles o mesmo efeito que a obra posterior.
Ao longo do concerto, James Murphy manteve-se concentrado na sua função de vocalista e líder de orquestra. Estávamos a entrar no último terço quando recordou os anos passados desde que se estreou em Portugal, precisamente em Paredes de Coura. “Gostava de me lembrar há quantos anos. 12? 13?”. Foi em 2004 e nessa mesma noite, disso Murphy lembra-se bem, tocavam os Motörhead. A partir dali, aquele passou a ser concerto com dedicatória: “O resto do concerto é para o Lemmy!”, exclamou – os LCD Soundsystem, como a música de resto denuncia, prezam muito os seus heróis.
Ouviu-se a sempre comovente New York I love you, but you’re bringing me down, o melhor encontro entre Lou Reed e uma balada dos Beatles que jamais ouviremos, acompanhada da bonita visão do anfiteatro do festival iluminado pelas lâmpadas portáteis que têm sido distribuídas no recinto. Ouviu-se, por fim, All my friends, escolha óbvia, mas tão certeira quanto a que iniciara o concerto. Não houve encore. Não era necessário. Os LCD Soundsystem tinham-nos mostrado tudo o que desejámos ver. Extraordinária banda de palco, provaram que a música com que definiram o arranque do século XXI está hoje longe de ser mero refúgio nostálgico. Relógio ultrapassando as duas da madrugada, com os canadianos Suuns preparados para continuar a noite no palco secundário, encerrava-se aquela que será, podemos afirmá-lo sem hipótese de erro, a mais memorável sequência de concertos do Vodafone Paredes de Coura 2016.
... e a tempestade perfeita
Uma sequência que começou com a entrada em palco de James Williamson e Andrew Fearn, britânicos quarentões nascidos nos arredores de Nottingham. É deles a música mais surpreendente, excitante e actuante a sair de Inglaterra neste momento. Em palco, estão nos antípodas dos LCD Soundsystem. Muito resumidamente, o que acontece num concerto do duo é isto: Andrew carrega no play do seu computador portátil e afasta-se para trás uns passos, meneando a cabeça e segurando numa garrafa de cerveja enquanto a base sonora pré-gravada salta das colunas. A seu lado, James Williamson ataca o microfone e vocifera o seu canto misto de linguajar irritado, spoken word e canto propriamente dito. É só isto. Mas isto é resumo que nada explica – se fosse “só” isto, não estaria já o público aglomerado em grande número para os receber, não o ouvíriamos gritar “Sleaford mods” como refrão encorajador no final de cada canção, não se veria esse mesmo público dançar agitado como em concerto punk em Jobseeker ou Tied up in Nottz.
Os Sleaford Mods detestam o aparato, que consideram velho e gasto, das bandas rock convencionais – daí o laptop, o microfone e nada mais. Os Sleaford Mods são tipos muito zangados com uma infinitude de coisas. Os Sleaford Mods são dois tipos com o coração no sítio certo. Um deles cria as produções onde linhas de baixo metálicas e batidas cruas, primitivas, montam o cenário em que as canções, habitadas de um mal-estar urbano que é totalmente o nosso tempo, se desenvolvem. O outro é o homem que pragueja e verseja numa torrente interminável de palavras, o homem cujas veias incham no pescoço enquanto a fúria cresce, esse que dança em espasmos e que ajeita o cabelo em modo tique nervoso, antes de se lançar novamente ao microfone para denunciar a falta de empatia em que sobrevivemos e a triste negação da individualidade de cada um, quando todos somos transformados em número da predadora máquina capitalista moderna – mas também uma vasta galeria de cunts que vão desde estrelas rock armadas ao pingarelho, gerações de zombies obcecadas com tweets e um qualquer idiota num qualquer pub. Entre uma outra canção, irá apresentar-nos a Little England: “Ela não vos quer dizer olá, porque se acha melhor do que vocês. Sempre se achou melhor do que vocês. Eu e o Andrew queremos pedir desculpa pela ‘Inglaterra pequenina’” – a do "Brexit", presumimos.
Nunca os Sleaford Mods tinham tocado perante tamanha multidão, confessaram. E nunca tamanha multidão terá visto concerto tão reduzido em meios e tão inspirador no impacto que provoca. Os Sleaford Mods do laptop e da voz enfurecida não são banda inesperada, são banda importante. Tal como o são, neste ou em qualquer outro tempo, a banda que se lhes seguiu. Thee Oh Sees é o seu nome, nasceram em São Francisco e são liderados por um guitarrista e vocalista, John Dwyer, que, apesar das várias mudanças de formação que impôs à banda ao longo da sua carreira, manteve sempre intacta uma vitalidade e uma energia a que é impossível ficar indiferente.
Temos um guitarrista, dois bateristas e um baixista em linha na frente do palco. E temos, durante uma hora, uma torrente interminável de som, um rock’n’roll voraz, em velocidade supersónica, onde se encontra, choca e chocalha toda uma genealogia de garage-rockers, de heróis do psicadelismo, do punk, do surf-rock. Não que pensemos nisso enquanto John Dwyer, feito corpo com a guitarra, a empunha como sniper, como caçador apontando à presa, como bailarino sem regras reagindo aos sons que cria. Os dois bateristas, infatigáveis, mantém-se constantes no mesmo ritmo, que é tornado ainda mais poderoso pela duplicação. No palco, não há descanso. Frente a ele, ninguém descansa igualmente – já não é pó o que vemos, é uma tempestade perfeita a acontecer perante nós.
Ouvimos canções de Floating Coffin, de Putrifiers II, do último A Weird Exits, acabado de lançar. Na verdade, porém, não interessa verdadeiramente que canções ouvimos. Retemos aquela guitarra que ruge e que silva, aquela voz que parece saída de um road-movie sci-fi em que o velocímetro nunca baixará dos 200 quilómetros por hora. Retemos uma das mais extraordinárias bandas do nosso tempo, exposta num anfiteatro boquiaberto perante aquilo que via perante si. Tínhamos visto os Sleaford Mods, preparávamo-nos para ver os LCD Soundsystem. Afortunados fomos por ter estado em Paredes de Coura neste 18 de Agosto de 2016.
O festival prossegue esta sexta-feira com King Gizzard And The Lizard Wizard ou Cage The Elephant e termina no sábado com The CHVRCHES como cabeças-de-cartaz. Os Thee Oh Sees vão voltar a Portugal em breve, para estar no festival Reverence Valada, nas margens do Tejo, a 8 de Setembro.