O Pessoa prosador que o poeta escondeu

A Assírio & Alvim acaba de publicar A Estrada do Esquecimento e Outros Contos, mais um volume de prosas ficcionais de Pessoa organizado por Ana Maria Freitas.

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Estatua de Fernando Pessoa no Chiado, em Lisboa Miguel Manso

Incluído numa lista de títulos que Pessoa redigiu num caderno de 1914, o ano em que deflagrou o primeiro conflito mundial, A Estrada do Esquecimento é, com Trincheira e O Sargento Falso, um dos três contos deste volume que têm por tema a guerra, um tópico que também o poeta ortónimo evocará no célebre poema O Menino da Sua Mãe. Esta é também a época em que Pessoa, Sá-Carneiro e companhia lançam o Orpheu, ecléctico mostruário de um sensacionismo que Pessoa vinha teorizando desde 1913. E é curioso notar que o narrador de A Estrada do Esquecimento, após sublinhar a ilegibilidade da noite, acrescenta: “Apenas por atalhos das sensações podíamos confiar na existência do céu, em cima, e da terra, em baixo”.

Mas não é apenas pelos seus previsíveis contactos com outras dimensões da obra pessoana que estes contos justificam a nossa atenção. Muitos deles, mesmo na sua condição quase sempre fragmentária, são textos fascinantes. E não deixa de ser um pouco desconcertante, se tivermos em conta as incontáveis reedições e releituras que outras partes da assustadora produção pessoana têm merecido, que este núcleo ficcional tenha tardado tanto a emergir do ainda considerável espólio inédito.

Ana Maria Freitas adianta algumas possíveis explicações para esta relativa desatenção ao Pessoa ficcionista: “Por um lado, há o peso da poesia, e só a mais conhecida chegava para ele ser um autor fabuloso, e depois temos O Livro do Desassossego, um livro sem enredo, sem princípio, meio ou fim, mas que é uma obra fantástica”, diz a pessoana. Por outro lado, acrescenta, “estes textos estavam muito dispersos, era uma confusão de documentos, folhas que pertenciam ao mesmo conto tinham ido parar a envelopes diferentes”. Acresce que se trata quase sempre de prosas das quais só se conhecem versões manuscritas, e só depois de um moroso trabalho de decifração é que é possível avaliar a sua relevância ou determinar se são, de facto, narrativas ficcionais.

E poder-se-ia ainda acrescentar que, sendo o fragmento e o inacabado imagens de marca (talvez involuntárias) de Fernando Pessoa, bem como a sua pulsão para organizar minuciosos planos e esquemas que nunca cumpria, ou a sua tendência para ir atribuindo um mesmo texto ou projecto a sucessivos nomes de autor, quando não a escrevê-lo em várias línguas, todas estas características parecem agudizar-se no ficcionista. Uma das curiosidades deste volume de contos, que a Assírio & Alvim lançará na Casa Fernando Pessoa no próximo dia 9, é que alguns são tão breves que Pessoa, digamos assim, não conseguiu evitar completá-los. Um deles, de um divertido nonsense, chama-se Fábula Imoral e é tão breve que se pode aqui transcrever na íntegra:

“– Sim, disse o homem louro, foi a melhor mulher que conheci.

Calei-me, que era o que estava; há opiniões que são como os presentes que não demos – não podem dar-se (como as mulheres bonitas).

– Era morena? Perguntei enfim, esgotados os efeitos do silêncio, e porque sou psicólogo.

– Não, era minha mulher, respondeu o homem sempre louro.

– Muito obrigado, disse eu.

E continuámos forrados em silêncio, ambos satisfeitos com a vida.

(Esta é uma fábula. O homem louro, porém, levou consigo a moralidade quando se levantou. Quando o encontrar, e ele ainda a ostentar, ditá-la-ei a V. Exas.).”

A divulgação desta faceta de Pessoa, cujas raízes remontam às histórias que escrevia para os jornais que se entretinha a inventar na adolescência, tem interessado vários investigadores, mas é de inteira justiça realçar o trabalho sistemático que Ana Maria Freitas vem desenvolvendo ao longo dos últimos anos. Depois de Quaresma, Decifrador: As Novelas Policiárias (Assírio & Alvim, 2008), que deu a conhecer vários textos até então inéditos de um núcleo da obra pessoana a que o próprio autor conferiu sempre particular importância – e que melhorou ainda significativamente a organização e fixação do que já fora publicado –, a autora publicaria em 2012 o volume O Mendigo e Outros Contos, onde reunia uma primeira escolha de doze contos inéditos.

Na sua aparente diversidade – do protagonista um tanto caeiriano de O Mendigo, que se vê a si próprio como “um atónito”, à mulher que, no surpreendente Maridos, explica ao juiz por que matou o cônjuge –, os contos deste volume anterior talvez formassem, ainda assim, uma unidade mais óbvia. “Quase todos”, observa Ana Maria Freitas, “têm uma qualidade estática”, que a autora relaciona com “essa ideia do drama estático” que Pessoa explorou no texto O Marinheiro, não por acaso publicado no primeiro número de Orpheu. “Não há enredo, não há uma sequência de episódios, não são contos com princípio, meio e fim”, diz. E em muitos deles, como a autora escreve no prefácio a O Mendigo e Outros Contos, Pessoa “dá um tratamento ficcional a questões filosóficas, metafísicas ou científicas”. Vários lidam ainda com “alterações de consciência” e “dimensões alternativas”, tópicos que podem indiciar, admite Ana Maria Freitas, um “diálogo literário” com a ficção do seu amigo Mário de Sá-Carneiro.

Mesmo cabendo latamente no rótulo de “contos intelectuais”, um dos vários títulos genéricos que Pessoa deu às suas ficções nos infindáveis esquemas e índices que ia concebendo, A Estrada do Esquecimento e Outros Contos é um conjunto mais diversificado, quer na muito variável extensão das histórias, quer no seu grau de incompletude, quer ainda na multiplicidade de registos e tópicos.

A par da guerra, outro tema recorrente neste livro é, surpreendentemente, a figura de Cristo. “São quase sempre contos sobre as fraquezas de Cristo, o seu descontentamento com aquilo que conseguiu”, precisa Ana Maria Freitas. Um Cristo demasiado humano, portanto, como o do oitavo poema do Guardador de Rebanhos, mas sem a inocência da infância.

 

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