Isto é uma narrativa: tal definição é óbvia para o leitor de Hotel, desde a primeira página. Muito fútil seria dizê-lo, não fora o caso de o romance afirmar reiteradamente, e retirando um enorme gáudio do jogo auto-reflexivo, essa sua condição. Explicitando-a, ele mostra também ao leitor que a concebe como uma maquinação diabólica, onde triunfam a amoralidade, a hilariante arrogância e a límpida alegria da mentira. Lá mais para o fim, haveremos de ler: “Exigir a sexualidade sem mentira é o mesmo que pensar a religião sem fé”. Mas já falaremos de coisas do sexo, pois essa é a matéria fundamental deste romance. Por agora, notemos que não lhe é estranha uma relação profunda, na qual insistiu Freud, entre o desejo e a narração.
Não é a única nem a mais forte razão para dizermos que os espectros de Freud habitam este Hotel. Digamos que ele nos oferece, simultaneamente, uma modulação da blasfémia, o riso olímpico e demente, o escândalo irreparável, o rumor subtil da prosa; e que põe a uma saudável distância as coisas edificantes e as mediocridades miméticas a que se entrega grande parte da ficção narrativa, ingénua e pálida, que por cá se faz e se festeja. Encontramos nele o jogo grandioso que atinge os cumes da ironia e do riso, mas também a síntese das ideias, o que nos faz pensar na liberdade e no universo heteróclito do romance do século XVIII. Hotel alberga tudo: tanto o jogo narrativo e os prodígios da construção e da imaginação como o discurso da teoria e das ideias; tanto se compraz no engenho argumentativo como na eloquência clássica; tanto é voltado para o baixo materialismo como para o pensamento especulativo. Na sua composição, ele é de uma total impureza, uma mistura de géneros: romance filosófico, gótico, de mistério, fantástico, de vampiros, erótico e pornográfico. A estes géneros tradicionais e codificados poderíamos ainda acrescentar outro do qual ele é — ousamos supor — o inventor: o romance de arquitectura.
Para o esclarecimento deste eclectismo, entremos na história: um homem chamado Joaquim Heliodoro (que se apresenta com abundantes pergaminhos onomásticos: Joaquim Heliodoro de Ataíde e Pinto Winzengerode de Mascarenhas Adrião Manoel de Menezes) investe na compra de um palacete o dinheiro que ganhou no Euromilhões e transforma-o num hotel singular, tanto nas regras como na arquitectura; um verdadeiro labirinto, feito para as pessoas se perderem lá dentro. Em suma: uma fantasia arquitectónica que remete, como será explicitado, para os carceri d’invenzione, as prisões desenhadas por Piranesi, no século XVIII, ou alude, outras vezes, aos castelos fantásticos da Baviera. Na torre que dá o nome ao hotel (baptizado Hotel da Torre das Infantas) mandou Joaquim Heliodoro construir uma passagem secreta, de modo a espreitar o interior da suite — que ele oferece às suas “convidadas” — sem ser visto e sem que se saiba que está a ver. Essa torre é a sua obra de arte total. Assim, o dono do hotel, figura misteriosa e vampiresca, com uma aparência física algo repulsiva, criou uma arquitectura para satisfazer o seu vício e os seus prazeres. Esse vício tem um nome: escopofilia. Consiste em desviar para o olhar toda a fonte de satisfação sexual. É aquilo a que se chama vulgarmente voyeurismo. Tudo o que move Joaquim Heliodoro é essa pulsão escópica (assim a designou Lacan). Inicialmente, ele parece um homem sinistro. Mas acaba por se revelar mais próximo da transgressão intelectualizada (como era a dos libertinos do século XVIII) do que do desregramento criminoso e demente. Um professor universitário húngaro, cliente do hotel, juntamente com a sua mulher (personagem fundamental nos cálculos do perverso) define-o como “uma coisa vampiresca ou à maneira de um flâneur. Baudelaire e Drácula? Sim, são parecidos, poetas sem ilusões”.
Sendo a arquitectura do hotel o elemento fundamental de toda a acção, indispensável seria que a sua descrição respondesse a desígnios tanto literários como de rigor técnico. E este aspecto, a descrição de uma arquitectura complicadíssima é uma das mais elevadas proezas da escrita deste romance. Sabendo nós que o seu autor é um historiador da arquitectura e da arte, podemos atribuir esta capacidade a um saber especializado e erudito. É certamente uma ferramenta importante num romance como este, mas o elevado artifício da descrição, tal como ela aqui se mostra, é muito mais do que isso: é uma arte de olhar e imaginar com rigor e acuidade, é fazer das palavras, essa matéria tão plástica e tão exigente, os óculos potentes com que se olha. Porque este é um romance de um autor-voyeur e que põe os leitores a responderem às solicitações de um pan-voyeurismo literário. Um dos mecanismos da máquina voyeurista total consiste em o narrador estar sempre a antecipar algo que há-de vir — por exemplo, “como se verá oportunamente” —, pondo o leitor na situação de quem espreita pelo buraco da fechadura. De resto, este romance é dotado de uma hiperliterariedade irónica e auto-consciente, sem afectações nem ingenuidades. Se levássemos a virtuosidade das descrições arquitectónicas à conta de um saber técnico (o que teria um resultado fastidioso, ao contrário do que aqui acontece), não saberíamos explicar porque é que a descrição de um pénis (que já não é um objecto arquitectónico) pode aqui obter resultados tão virtuosos como a descrição de uma escada em caracol: “O membro de Joaquim Heliodoro separava-se gloriosamente do seu corpo, saía dele com a beleza aliviada com que um rosto sai do fundo da água, de boca aberta a sorver o ar, de olhos abertos a encarar o céu (…). Quando puxava para trás o prepúcio, via o interior do seu próprio corpo no colo da glande, na pele e nas cartilagens esbranquiçadas, por vezes húmidas ou manchadas de esmegma.” Ao longo de quatro páginas, eis a descrição do “membro glorioso” de Joaquim Heliodoro. Mas estas passagens de descrição anatómica (encontramo-las também em Sade, com exaustiva minúcia) nada têm que ver com pornografia e muito menos com erotismo. Uma e outro decorrem sempre do gesto de espiar. O olho e toda a loucura do olhar — é o “membro divino” de que falava Baltazar Gracián, referência que nos conduz ao pensamento e ao universo barrocos que governam a arquitectura deste hotel e os êxtases escopofílicos que ela serve. Aqui, a racionalidade especulativa coincide com os prazeres especulares, isto é, que vêm dos espelhos e da visão. E o voyeurismo do dono do hotel não é senão a tradução no plano sexual do ocularcentrismo, isto é, da ordem visual que domina o pensamento filosófico e a razão científica.
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