O novato Kendrick e o veterano Caetano marcam arranque do Nos Primavera Sound
O festival teve início na quinta-feira, no Parque da Cidade, no Porto, com grandes concertos de um rapper em ascensão chamado Kendrick Lamar e desse veterano eternamente jovem que é Caetano Veloso.
Entre o relvado plano junto ao palco e a inclinação depois dele estariam a maioria dos 22 mil presentes (números da organização) no arranque do Nos Primavera Sound. No primeiro dia, o destaque foi para um jovem rapper e para um veterano brasileiro, esse Caetano Veloso, que, aos 71 anos, mostrou manter-se fiel à antropofagia que primeiro o inspirou no Tropicalismo – Caetano mudou, rejuvenesceu com essa Banda Cê versada tanto em bossas como em roques; Caetano, voz tão perfeitamente afinada com a emoção, violão dedilhado com tanta leveza, é o mesmo de sempre, aquele que sempre deixou a sua assinatura em tudo o que tocou.
O Nos Primavera Sound de 2014 começara horas antes, durante a tarde, como um piquenique entre centenas de desconhecidos. Tínhamos a relva do Parque da Cidade decorada com as mantas amarelas quadriculadas oferecidas pela organização, e o público nelas sentado, em descontracção de fim de tarde, a ouvir Os da Cidade, a banda que junta António Zambujo e Miguel Araújo e que cantou música de ambos. Cantou tiros que saíram pela culatra, lambretas, histórias do Reader’s Digest ou romarias nas festas de Santa Eufémia. Tudo muito simples, muito informal, com piano ou acordeão e a harmónica a acompanhar as duas vozes principais, um certo sabor a Rio Grande de outra geração e, no conjunto, enquanto o público ia chegando e instalando-se no Parque da Cidade, tudo fluía de acordo com a languidez típica de início de festival. Muitas horas depois, já de madrugada, o cenário era totalmente diferente.
No outro palco em actividade no primeiro dia de Nos Primavera Sound, o palco Super Bock, os australianos Jagwar Ma carregavam no ritmo e nas propriedades psicadélicas do som para que, quando a madrugada já contava mais de duas horas, o muito povo resistente dançasse como se o Porto de 2014 fosse a “Madchester” dos Happy Mondays de finais da década de 1980 – e o público dançou e dançou, e aplaudiu a convidada das Warpaint, que se sentou à bateria na recta final.
Entre um (o primeiro concerto) e o outro (o último do arranque), constatou-se na quinta-feira que este é verdadeiramente um festival multinações. Ouvia-se muito castelhano e muito inglês, ouvia-se alemão e francês, ouvimos alguém que, enquanto Caetano Veloso liderava o público no cantar de um par de versos, sorria e tentava explicar num inglês arranhado que gostaria muito de cantar também, mas não conseguia reproduzir o que ouvia.
Confirmou-se também que a aposta em casas portuenses na zona de restauração é um sucesso – provaram-no as filas, caso felizmente raro no festival, para as bifanas da Conga ou para a sandes de pernil da Casa Guedes. Ou, por fim, que a presença em cartaz de nomes que, à primeira vista, estariam distantes da identidade do Primavera Sound não teve outro efeito secundário que não a adesão do público à música.
Kendrick Lamar surgiu acompanhado por uma banda tão talentosa quanto sábia da sua função (concentrar-se no groove e dar espaço às rimas) e deu um concerto irrepreensível. Foi metralhadora lírica impressionante e quedou-se na boca do palco, momento intimista perante milhares para libertar pedaços de autobiografia. Deixou que o flow se tornasse mais imponente quando à banda se juntaram orquestrações pré-gravadas, ou mais tenso quando surgiram samples de teclados fantasmagóricos. Do início ao fim de um concerto aparentemente curto, Lamar foi clássico intemporal e rapper do seu tempo, rimando entre batidas pesadas, movidas a sintetizadores, ou lado a lado com o calor do órgão Rhodes e de um baixo bojudo. Please don’t kill my vibe, uma das mais celebradas do concerto, tem título que é também retrato de uma impossibilidade. É impossível matar a vibe de Kendrick Lamar.
E Caetano Veloso? Quanto a ele, há muito que não há segredos quanto às suas qualidades. Subiu ao palco horas depois de Rodrigo Amarante, autor desse belíssimo álbum intitulado Cavalo, nos ter embalado com o seu sorriso melancólico e com a voz doce que ouvimos nas canções que são bossa mas não propriamente, que são balada que, nas mãos de Matt Elliot, seria fúnebre mas que, nas suas, encontram sempre um raio de luz aconchegante. Canções que, quando a banda cresce em volume e carrega na electricidade, são algo de Beatles visto pelos olhos de um cantautor brasileiro, cidadão do mundo que responde em canção ao português, inglês e francês. Doçura, o concerto de Rodrigo Amarante.
Bastante diferente do aparato eighties de Sky Ferreira, fenómeno recente que teve cortejo de fãs, muito ruidosos, na boca de cena, mas que, apesar da curiosa pose blasé (óculos escuros colocados, lenta deambulação pelo palco), não consegue fazer de canções como Heavy metal heart ou Love in stereo mais do que um artifício pouco credível – a presença é apelativa, o synth-pop é descartável.
Cortejo de fãs também para acolher as Haim, as três irmãs americanas cujo álbum de estreia, Days Are Gone, as transformou num sucesso transversal. Em disco, chovem comparações ao soft-rock dos Fleetwood Mac de finais de 1970 e ao R&B da actualidade. Em palco, surgem como banda entusiasmadíssima em ser um delírio rock’n’roll com solos de guitarra à discrição, coros tão gritados quanto afinados e percussão acessória (um bombo, um timbalão) martelada com fervor. Claro que canções como If I could change your mind ou Falling, peças da melhor linha de produção anos 80 que os anos 80 não inventaram, surgem para nos mostrar o coração pop das Haim, mas foram elas mesmas que incluíram também no alinhamento, e ainda no início do concerto, uma versão dos Fleetwood Mac originais, os do blues, os de Peter Green – e, do nada, ouvimos as três irmãs e banda acompanhante oferecer-nos uma versão infernizada de Oh well. Um contraste interessante, este entre as Haim pop de estúdio e as Haim rockers ao vivo. Isso constatámo-lo depois. Depois de os Spoon terem tocado o seu rock escorreito, clássico, quando o sol ainda brilhava entre as nuvens. Depois de Caetano.
Caetano como Shiva
Em palco, telas com figuras geométricas simples. Antes da entrada da banda, apresentação à antiga: uma voz que lê a ficha técnica, dos músicos aos roadies. Pode ser coisa de velha guarda esta introdução. Se o for, é a única coisa velha guarda que tem este Caetano. Quem o tivesse visto no concerto no Coliseu de Lisboa, em Abril, não seria totalmente surpreendido pelo concerto no Nos Primavera Sound. Ainda assim, arriscamos que, tendo-o ou não visto na digressão de Abraçaço, sabendo ou não o que iria fazer em palco, seria impossível resistir à sua vitalidade, sensibilidade e capacidade de transformação.
Começou por elogiar a sua bossa com A bossa nova é foda (canção combate, canção tensão), lançou o andamento ora dolente, ora convulso, de Abraçaço e, no final dela, músicos alinhados atrás do líder, Caetano transformou-se em Shiva de oito braços ondulando. Caetano multiforme. É o homem do samba-rock e do tropicalismo psicadélico, é este que canta a “triste Bahia” que gravou na década de 1970, este que dispara “você prova que o ciúme é só o estrume do amor” e a canção chama-se Funk melódico, mas tem guitarra cortante que parece saída de uma cave pós-punk nova-iorquina.
Ao início, em nosso redor, subsistiam algumas bolsas de alheamento. Caetano não chegava a todos. Conquistou-os passo a passo. Aquela voz rica, cheia, acompanhada de piano e guitarra em Alguém cantando; o Leãozinho que, apesar de tão gasto, conseguiu manter ali o charme; o homem que, em palco, dança em passos lentos e graciosos; que pede ao público que repita um refrão uma, duas, três vezes (e o público repete); e que lhe canta, já no encore, “a tristeza é senhora, desde que o samba é samba é assim”.
Tristeza assim é tudo menos triste, pensamos quando, um par de canções depois, Caetano Veloso e Banda Cê fazem uma vénia de agradecimento e despedida.
O Nos Primavera Sound continua sexta-feira, com concertos de Pixies, Warpaint, Television e Mogwai. Termina sábado com The National, St. Vincent, Charles Bradley e Ty Segall como alguns dos destaques.