O museu que Siza desenhou para a pintura de Nadir Afonso
O Presidente da República inaugura segunda-feira em Chaves o Museu de Arte Contemporânea Nadir Afonso, um notável edifício projectado por Álvaro Siza para acolher a obra pioneira deste pintor e arquitecto flaviense que expôs com Vasarely e trabalhou com Le Corbusier e Niemeyer.
O novo Museu de Arte Contemporânea Nadir Afonso, em Chaves, cuja placa será descerrada esta segunda-feira à noite por Marcelo Rebelo de Sousa, vai acolher e dar visibilidade à gigantesca obra de Nadir Afonso (1920-2013), um pintor modernista que integrou a vanguarda parisiense do pós-guerra, foi um pioneiro da arte cinética, ajudou a introduzir a abstracção geométrica em Portugal e desenvolveu uma original teoria da arte.
Mas a pintura de Nadir Afonso, que o museu dá a ver numa grande exposição inaugural comissariada pelo historiador de arte Bernardo Pinto de Almeida, é apenas um dos motivos que justifica a visita a este novo equipamento flaviense. O outro é o próprio edifício, projectado por Álvaro Siza na margem direita do Tâmega, uma obra da qual o presidente da autarquia, o também arquitecto António Cabeleira, já disse que irá ser o segundo ícone de Chaves, depois da ponte romana construída há dois milénios.
A construção do museu, que custou oito milhões de euros e foi financiado a 85% por fundos europeus, iniciou-se em 2011 e ia a meio quando Nadir Afonso morreu, em Dezembro de 2013, aos 93 anos. O artista trabalhara praticamente até ao fim, e por isso mesmo o projecto de Siza inclui um belíssimo atelier, com luz natural e vista para o rio, que irá agora ter de servir outras funções.
“Acho que é um dos melhores edifícios do Siza; não sei se é o melhor, mas é dos que mais gosto”, disse há dias o outro prémio Pritzker português, Eduardo Souto Moura, a respeito deste edifício em betão branco, que ocupa uma área de 2.700 metros quadrados e está implantado num terreno cerca de seis vezes maior. Também o arquitecto e crítico de arquitectura Jorge Figueira vê no museu de Chaves uma das mais significativas obras recentes de Álvaro Siza, colocando-a “ao mesmo nível do edifício da Fundação Iberê Camargo, em Porto Alegre”. “É um Siza muito inspirado”, disse Figueira ao PÚBLICO.
O museu está instalado no lugar de Longras, numa zona de reserva agrícola e ecológica, o que obrigou a uma autorização especial do governo. A proximidade do Tâmega e a regular ocorrência de cheias, levou o arquitecto a elevar o edifício, o que lhe dá uma leveza particular. Um dos espaços mais notáveis do museu é sua ala sudeste, com uma janela contínua de mais de 40 metros sobre o rio, da qual se vêem os campos e os velhos muros de pedra parcialmente derruídos que restaram do tempo em que esta era uma zona de propriedades agrícolas.
“O edifício pertence à cidade, mas também àquela paisagem, é um edifício muito amável e cuidadoso, que tem toda a sabedoria e experiência de Siza, mas reinventada”, diz Jorge Figueira, que está certo de que o Museu de Arte Contemporânea Nadir Afonso “vai passar a ser um dos pontos-chave do itinerário de Siza em Portugal”.
A cerimónia desta noite marca o fim de um moroso processo lançado há quase década e meia, em 2002, quando o então presidente da Câmara de Chaves, o social-democrata João Baptista, acordou com Nadir Afonso a criação de uma fundação para acolher e divulgar a sua obra, tendo ficado logo então decidido que iriam convidar Álvaro Siza para construir a respectiva sede. A viúva do pintor, Laura Afonso, que hoje dirige a sua fundação, diz que Nadir gostou do projecto de Siza, mas “não interferiu em nada, nem no projecto nem na localização”, porque tinha sido arquitecto “e dizia que o mais lhe custava eram as interferências”.
E agora?
A Fundação Nadir Afonso é parceira da autarquia no Museu de Arte Contemporânea, tendo cedido gratuitamente uma centena de telas e centenas de estudos, incluindo esboços de pinturas, mas também esquissos de arquitectura, e ainda um importante conjunto de livros e um vasto arquivo documental.
Mas se esta inauguração é o cumprimento de um projecto que começou a ser sonhado há 14 anos, é agora necessário decidir-se o que fazer com um museu desta qualidade e desta envergadura, que associa um importante pintor modernista a um arquitecto de grande prestígio internacional, como de resto se confirma pelos vários grupos de estudantes estrangeiros de arquitectura que, ainda antes de o edifício estar concluído, foram aparecendo em Chaves para apreciar in loco a obra em curso.
O protocolo assinado em Maio de 2015 com a Fundação Nadir Afonso atribui à autarquia a gestão do museu, mas esta não parece ter ainda decidido como vai ao certo geri-lo. A exposição inaugural de Nadir Afonso, que deverá ter uma duração que o responsável da Divisão Social e Cultural da autarquia, Carlos França, estima entre seis meses e um ano, dá à Câmara e à fundação alguma folga para preparar os próximos passos, mas neste momento não é sequer certo que o museu venha a dispor de um director artístico.
Sabe-se apenas que o museu pretende organizar mais exposições em torno da obra do seu patrono – a actual, intitulada Nadir Afonso: Chaves para Uma Obra, abarca apenas o período que vai dos primeiros trabalhos até meados dos anos 70 –, e que, no futuro, o edifício disporá de um núcleo permanente dedicado à pintura de Nadir Afonso, cuja selecção de obras irá sendo renovada. Pretende-se que os restantes espaços expositivos sirvam para acolher retrospectivas de outros artistas, mas não há ainda qualquer programação delineada.
“Ainda não está nada preto no branco: poderá haver uma parceria com Serralves ou com outra instituição, como podemos contratar um director artístico”, explicou Carlos França ao PÚBLICO. Se a segunda hipótese vier a concretizar-se, um candidato óbvio é o curador desta exposição, o historiador de arte e poeta Bernardo Pinto de Almeida, professor catedrático da Faculdade de Belas Artes do Porto.
Assumindo ao PÚBLICO que gostaria de dirigir o museu, caso dispusesse de “um mínimo de meios”, Bernardo Pinto de Almeida diz que já tem vindo mesmo a trabalhar com José Jiménez, ex-director geral do organismo que gere os museus nacionais espanhóis, para estudar modos de colaboração com instituições congéneres do outro lado da fronteira.
E além de novas exposições da pintura de Nadir, incluindo uma mostra centrada na série de telas que o artista dedicou durante décadas a cidades existentes e imaginárias, Pinto de Almeida tem já na cabeça alguns outros artistas que gostaria de expor em Chaves, do grego (radicado em Roma) Jannis Kounellis, nome fundamental da Arte Povera, passando pelo escultor Zulmiro de Carvalho, até artistas portugueses mais novos, como João Jacinto, Miguel Branco, Gil Heitor Cortesão ou Paulo Mendes.
Uma teoria da arte
Dirigindo-se a um grupo de jornalistas que participava, na passada quinta-feira, dia 30, numa visita guiada à exposição Nadir Afonso: Chaves para Uma Obra, então ainda em fase de montagem, Bernardo Pinto de Almeida defendeu que o pintor flaviense “é um desses casos absolutamente extraordinários da arte portuguesa e europeia do século XX em que um grande artista procura construir uma obra a partir de uma conceptualização teórica extremamente organizada”.
Com uma extensa produção teórica, iniciada com livros publicados em Paris e Nova Iorque, como La Sensibilité Plastique (1958), Les Mecanismes de la Création Artistique (1970) ou Aesthetic Synthesis (1974), Nadir Afonso foi desenvolvendo um pensamento estético original, inextricável da sua própria prática criativa, que propõe uma arte objectiva e exacta, regida por princípios matemáticos e geométricos que todos os grandes artistas intuem, mesmo que não tenham consciência deles.
Não por acaso, esta exposição de Nadir termina no final dos anos 70, quando a sua teoria da arte começa a consolidar-se e o artista acredita que está em condições de criar já não apenas por um acesso intuitivo a essa geometria essencial da natureza, mas a partir de fundamentos teóricos devidamente sistematizados. Nadir insistiu sempre muito nesta ideia de um artista em construção, que foi evoluindo ao longo de uma série de períodos imbricados uns nos outros, a que ele próprio atribui designações como barroco ou egípcio, ogival ou fractal.
Considerando que o pintor de Chaves “não tem ainda na arte portuguesa a inscrição que a sua obra justifica”, o comissário da exposição situa-o entre esses poucos artistas e escritores que, em pleno Estado Novo, conseguiram reatar o projecto interrompido do modernismo português, que figuras como Amadeo Souza-Cardoso, Fernando Pessoa ou Sá-Carneiro tinham lançado no início do século, recuperando “essa urgência de experimentação” que marcara o fulgurante início do movimento.
Nascido em Chaves em 1920, Nadir Afonso começou a pintar em criança – a mais antiga peça desta exposição data dos seus 15 anos – e matricula-se em 1938 no curso de Arquitectura da Escola Superior de Belas-Artes do Porto. Pensava seguir pintura, mas no dia em que se foi inscrever um funcionário da escola tê-lo-á persuadido de que a Arquitectura era uma opção mais sensata.
Um núcleo importante da exposição Chaves para Uma Obra são as pouco vistas pinturas que Nadir criou nestes anos portuenses enquanto estudava arquitectura, mostrando a sua evolução para um surrealismo onde já se adivinhava a sua obsessão pela geometria.
Os anos de Paris
Em 1946 parte para Paris, uma cidade a tentar reconstruir-se após a devastação da guerra, e estuda Pintura, com uma bolsa do governo francês, trabalhando ao mesmo tempo como arquitecto no atelier de Le Corbusier, que lhe dispensava as manhãs para que pudesse pintar. Um dos sítios que Nadir usa para pintar é o atelier de Fernand Léger. Ao longo dos anos 50, a sua pintura evolui do período barroco, marcado pela transposição para o seu abstraccionismo geométrico das espirais e curvas das fachadas barrocas portuenses, para o período egípcio, inspirado nos frisos da antiga arquitectura egípcia.
No final de 1951, Nadir Afonso vai para o Brasil trabalhar com Óscar Niemeyer, tendo estado directamente envolvido no projecto do Parque de Ibirapuera, em S. Paulo, e regressa em 1954 a Paris. É nesta segunda metade dos anos 50 que se torna um membro de pleno direito do movimento da arte cinética, que se organiza em torno da galeria de Denise René, com artistas como Victor Vasarely, o pai da op-art, Auguste Herbin ou o dinamarquês Richard Mortensen. Em 1958, Nadir expõe no Salon des Realités Nouvelles, a grande exposição anual de arte abstracta, a sua máquina Espacillimité, presente nesta exposição de Chaves, um engenho no qual roda uma tela que não tem princípio nem fim, um conceito que inspira toda a sua pintura deste período, justamente baptizado Espacillimité.
A década termina com a sua primeira grande exposição antológica, na Maison des Beaux-Arts de Paris, em 1959, e nos anos 60, representa por duas vezes Portugal na Bienal de S. Paulo. A Gulbenkian organiza-lhe duas retrospectivas, uma em Paris e outra em Lisboa, nos anos 70, quando Nadir já tinha deixado definitivamente a arquitectura – vale a pena espreitar o núcleo de desenhos de arquitectura expostos em Chaves – e passara a dedicar-se apenas à pintura e às suas investigações teóricas, o que continuou a fazer praticamente até morrer. Nos últimos anos dividia-se entre Cascais e Chaves e continuava a ser um trabalhador incansável. Laura Afonso disse ao PÚBLICO que só no acervo da fundação há cerca de 12 mil estudos de Nadir.
Durante muito tempo mais exposto no estrangeiro do que em Portugal, Nadir Afonso ainda pôde assistir, no final da vida, a um renovado interesse pela sua obra. Em 2010 a sua pintura foi objecto de uma importante exposição co-organizada pelo Museu do Chiado e o Museu nacional Soares dos Reis, no Porto; em 2012 estreou-se o filme Nadir Afonso: O Tempo não Existe, de Jorge Campos, que já realizara em 2003 o documentário Nadir; e o pintor ainda assistiu à inauguração, em 2013, do Centro de Artes Nadir Afonso em Boticas, de onde era natural a sua mãe. Um movimento a que se poderia chamar de re-consagração, que agora culmina com a inauguração deste Museu de Arte Contemporânea Nadir Afonso em Chaves.