O mundo inteiro em Nápoles
No último romance da sua tetralogia Elena Ferrante explora ainda mais o lugar de origem e concretiza a sua ideia de amizade feminina enquanto território duplamente afectivo e competitivo.
A última notícia sobre o universo de Elena Ferrante anunciava o fim do anonimato da autora. Será? O mito foi criado e alimenta-se dele mesmo. Finda a saga napolitana, não se anunciam mais títulos inéditos da escritora que alicerçou a sua obra na sua liberdade de não divulgar quem é. Uma mulher, natural de Nápoles, sessenta e poucos anos, mãe, com grande conhecimento das literatura clássica grega e romana. São as pistas que foi deixando. Para já, de concreto, só isto: “Treze letras, nem mais nem menos”, como declarou em entrevista ao Ípsilon — uma das poucas que deu — acerca de uma identidade autoral que quer manter secundária em relação ao que escreve. Essa é, no entanto, apenas a manifestação de um desejo cuja materialização é impossível de provar. Tudo em Ferrante se construiu à volta desse segredo. Ao ler as suas histórias de mulheres confrontadas com o abandono, divididas entre a obrigação e a liberdade de escolha, entre o lugar a que se sentem pertencer e aquele onde sonham estar, entre a idealização do amor e o embate com um quotidiano pouco romântico, ao entrar numa intimidade tão violenta, brutal, ambígua, os leitores espreitam a biografia da autora. Lê-la tornou-se uma tentativa de a vislumbrar, mesmo para quem isso seja difícil de admitir e concorde com o que ela também disse, que é a obra que importa e não a biografia.
Talvez. Mas intui-se que há muito de autobiografia nos quatro romances que publicou sob o título A Amiga Genial, bem como nas três novelas que os antecederam. Na saga — também conhecida como como a tetralogia de Nápoles — ou nas narrativas breves reunidas em Portugal no volume Crónicas do Mal de Amor, a sensação é a de estarmos perante várias formas de contar uma mesma história e, nesse modo de contar sentirmo-nos parte dela, perturbantemente cúmplices nessa história onde cabe o universo de emoções que formam a complexidade de existir no século XX e início do XXI num país do mundo ocidental.
É dizer muito? É, mas não é exagero quando se fala da obra de Ferrante, de que agora se publica em Portugal A História da Menina Perdida, o quarto e último título da série napolitana. Depois da infância, adolescência e primeiros anos da idade adulta, estamos na maturidade de Elena Greco — Lenú — a narradora, e de Raffaella Cerullo — Lila ou Lina—, a amiga por quem sente tanta admiração e afecto, ciúme e rivalidade, uma amizade “magnífica e tenebrosa” e que um dia desapareceu, querendo apagar qualquer traço da sua própria existência. O cenário de tudo isso é Nápoles, um barro pobre de Nápoles que funcionava como uma mordaça, uma amarra. Mesmo que Lenú tenha saído, fugindo de um destino tido como natural, mas que via como condenação, instigada a ter sucesso pela amiga Lila que tanto a elogia como a humilha. Lila era a rapariga de quem se esperava tudo. Astuta, inteligente, aventureira, sem objectivo. Lenú, a estudiosa, metódica, insegura, decidida a ser escritora. Lila nunca quis ir. Lenú nunca quis outra coisa. Saiu, voltou com sucesso, mas foi-se definindo tanto em oposição a Nápoles como a Lila, num processo de permanente atracção e repulsa, dividida entre a escrita e a maternidade, entre a ambição individual e o que se espera de uma mulher. Ou entre querer ser alguém e nunca conseguir separar-se do laço umbilical face ao bairro, a Lila. Escreve sobre um e sobre outra e vai-se definindo. E esta saga será essa escrita, fantasia e realidade num jogo que ultrapassa a própria literatura, mas que na literatura surge assim: “Eu própria não consigo acreditar. Terminei esta história que me parecia que nunca mais terminava. Terminei-a e reli-a pacientemente, não tanto para melhorar a qualidade da escrita, como para verificar se pelo menos numa ou noutra linha era possível encontrar a prova de que Lila entrara no meu texto e resolvera dar o seu contributo para a sua redenção.”
É a partir da narrativa desta amizade que o mundo se enforma. A última metade do século XX num país marcado por lutas sociais e políticas, pelo crime de rua e a corrupção das elites, entre a modernidade e a tradição religiosa. “Dera-me uma mania de realidade, e, embora evitando identificá-lo descrevera o bairro”, diz Lenú sobre o romance que resultou d seu regresso ao sítio que lhe serve de metáfora de quase tudo. Ao passar para o livro, o bairro tornava-se ficção e ela sentia libertar-se dele. Assistimos a construção de uma identidade individual, íntima, criativa. “Existe uma presunção em quem está destinado às artes e sobretudo à literatura: trabalhamos como se tivéssemos recebido um encargo, mas na realidade ninguém nos encarregou de nada…”, pensa a Lenú que olha de forma distante para o que fez, como olha para o bairro que deixou. Longe, “tornou-se mais simples reflectir sobre Nápoles, escrever sobre ela e fazer com que escrevessem sobre ela com lucidez. Amava a minha cidade, mas arranquei do peito a sua defesa por obrigação. Convenci-me, aliás, de que o desconforto em que o amor mais cedo ou mais tarde acabava era uma lente para olhar para todo o Ocidente”.
A amizade de Lenú e Lila é uma história íntima e política. Nela, o leitor está na posse de todos os elementos para saber da dificuldade de julgar, tomar partido. A sua pele é a mesma das personagens, de cada uma delas densamente concebida. O processo de auto-reconhecimento é perturbante. Somos sempre nós em qualquer personagem, por mais que ela nos repugne. Também por isso a escrita de Ferrante é uma vertigem.
E passaram menos de dois anos desde que a Relógio d’Água começou a publicar esta escritora italiana misteriosa e já temos a obra completa. Antes, em 2004, a D. Quixote editara Os Dias do Abandono (original de 2002), agora incluído no volume Crónicas do Mal de Amor, mas o título passou despercebido. Para este ano, a editora anuncia o livro infanto-juvenil, A Praia da Noite (original de 2007), e a actualização de Fragmentos, que reúne ensaios e entrevistas da autora.