Não se pode falar inglês sem citar Shakespeare
Escritores britânicos realçam actualidade do dramaturgo e poeta inglês no momento em que arrancam dois anos de comemorações: dos 450 anos do nascimento aos 400 anos da sua morte, em 2016
“Shakespeare é omnipresente. Quase não se pode falar inglês sem o citar. Ele acrescentou mais de 2000 palavras à língua inglesa. Palavras e expressões como ‘incarnadine’ (colorir de encarnado), ‘assassination’ (assassínio), ‘sea change’ (mudança de marés), ‘lily livered’ (assustadiço), ‘aerial’ (aéreo), ‘bedazzled’ (ofuscado), mas também palavras que usamos todos os dias, como ‘fashionable’ (na moda), ‘mortifying’ (humilhante, degradante), ‘quarrelsome’ (brigão), ‘reclusive’ (isolado) ou até ‘puke’ (vomitar)”, diz a editora britânica Gail Rebuck, directora executiva da Penguin Random House no Reino Unido.
“Seja o que for que quisermos expressar, ele disse-o primeiro ou disse-o melhor”, defende aquela que é uma das mais poderosas mulheres no mundo editorial, e que fez a conferência de abertura do seminário Shakespeare - Our Contemporary?, organizado pelo British Council em Berlim, um dos primeiros eventos destas celebrações, que vão durar dois anos e que, no próximo sábado, levarão uma multidão a Stratford-upon-Avon, em Inglaterra, para participar numa festa e procissão até à igreja onde está sepultado o mais famoso poeta e dramaturgo inglês.
Quando se fala hoje de Shakespeare, não estamos só a falar de literatura. Estamos a falar de cultura em sentido lato e a realçar a sua universalidade, já que a sua obra atrai todas as culturas e tem sido recontada de inúmeras maneiras em diversas línguas. “A maioria das pessoas sabe frases de Shakespeare, mesmo que não saiba quem as escreveu. Os seus versos são lidos em funerais e casamentos. Os seus sonetos aparecem em cartões de S. Valentim...” Os políticos roubam-lhe frases, os escritores fazem títulos a partir dele, mas, lembra a editora, também foi evocado por um britânico que matou um prisioneiro no Afeganistão. “Para o bem ou para o mal, habita a nossa mente colectiva”, diz Gail Rebuck, lembrando que cada geração se foi inspirando no trabalho do Bardo. “Shakespeare tanto pode inspirar novas peças de teatro como novos livros”, conclui.
E por isso nasceu o projecto editorial The Hogarth Shakespeare, da Hogarth Press, chancela da Penguin Random House: uma série de romances que vão recontar as peças de Shakespeare. “O primeiro destes livros será publicado em 2016, no aniversário da morte de Shakespeare. Vamos ter O Mercador de Veneza repensado por Howard Jacobson. Não podia ter arranjado um par melhor — é uma ‘dream-team’. Aquela que é uma peça de teatro ambivalente e perturbadora, com o seu anti-herói judeu, foi escrita por Shakespeare antes do termo anti-semitismo existir. Vê-la ser examinada por um romancista fantástico como Howard, que fez do anti-semitismo um dos seus temas constantes, vai ser revelador”, diz Gail Rebuck.
Romancistas reinventam peças
Howard Jacobson, o escritor britânico que recebeu o prémio Man Booker em 2010 pelo romance A Questão Finkler (ed. Porto Editora), contou ao PÚBLICO que quando foi convidado para contribuir para o The Hogarth Shakespeare disse logo que lhe parecia um projecto entusiasmante e ficava muito feliz por participar. “Posso, por favor, escolher a peça Hamlet?”, perguntou-lhes. Responderam-lhe que sim, mas que preferiam que fizesse O Mercador de Veneza. Jacobson achou que era “um pouco previsível”, porque é judeu e muitos dos temas dos seus romances estão relacionados com isso: “Lá vamos nós, estou a ficar estereotipado!”
Mas chegou à conclusão de que seria um óptimo desafio. “O Mercador de Veneza é uma peça que levanta questões interessantes sobre o anti-semitismo que Shakespeare via à sua volta e que era um lugar-comum na Europa, particularmente em Inglaterra, onde escreveu. Não considero que seja uma peça anti-semita. É impossível imaginar que Shakespeare tenha sido anti-semita, porque o anti-semitismo é uma forma de estupidez e ele não era estúpido em relação a nada”, disse Jacobson ao PÚBLICO.
Como são muitas as discussões em relação à natureza da personagem Shylock, achou que seria muito interessante enfrentar esse desafio. “Não faço a mínima ideia como o vou fazer porque ainda não comecei, mas tenho um ano para o fazer.”
Macbeth convertido em policial
Quando falámos com Howard Jacobson, nenhum dos escritores que já tinham sido contratados para o projecto estava com Hamlet. O escritor norueguês de policiais Jo Nesbø escolheu Macbeth porque, tal como contou Gail Rebuck, achou que a peça pode ser vista como “um thriller sobre a luta de poder” — o que não está muito longe da sua área. A escritora britânica Jeanette Winterson escolheu O Conto de Inverno, a norte-americana Anne Tyler irá adaptar A Fera Amansada, a canadiana Margaret Atwood ficará com A Tempestade e Tracy Chevalier com Otelo.
Não há regras definidas sobre como deverá ser o trabalho destes escritores: têm liberdade para contar de novo a história, para a criticarem, para pegarem em alguma coisa que a peça lhes sugira.
Ladrão que rouba a ladrão...
A Howard Jacobson, é a primeira vez que lhe encomendam um romance. Se fosse noutra altura, em que ele fosse mais novo, teria dito que não, mas agora que se sente mais confiante, aos 71 anos, é “doido o suficiente” para aceitar a tarefa. Os direitos dos livros já estão comprados por editores alemães e espanhóis e serão depois vendidos para todo o mundo.
Gail Rebuck recorda que aquilo que Shakespeare fez a outros — pois foi buscar enredos às Holinshed’s Chronicles ou a Plutarco, por exemplo — outros fizeram a ele. Tem sido reinventado no cinema, na ópera, no ballet, na animação (como em Shakespeare: The Animated Tales, da BBC) ou até no iPad, com a aplicação The Sonnets by William Shakespeare, criada pela Touch Press.
“Todos os esforços que se fazem para pôr Shakespeare de outra maneira são óptimos, mas são ideias de editores. E os editores têm estas ideias por um motivo que Shakespeare respeitaria: querem ganhar algum dinheiro. Isso é bom. O que acontece com Shakespeare, tal como com outros grandes escritores, como Charles Dickens ou Jane Austen, é que eles sobrevivem a tudo o que lhes fazemos”, declara ao PÚBLICO o académico britânico John Mullan, que foi o anfitrião e moderador deste seminário em Berlim e é especialista em literatura do século XVIII e XIX.
Este crítico literário, que é também o responsável pelo clube do livro do jornal britânico The Guardian, defende que os escritores sobrevivem às adaptações para séries de televisão, sobrevivem às modernizações, à reescrita. “Não penso que a reescrita da sua obra seja a razão por que Shakespeare está hoje nas conversas ou na cabeça das pessoas ou até nas suas experiências. É um sintoma, não uma causa. Há coisas mais importantes que mantêm Shakespeare vivo.”
Na Grã-Bretanha, por exemplo, parece-lhe que é muito importante que todos os alunos que estudam Literatura Inglesa tenham de estudar a sua obra. “Ele não precisa de ajuda porque a sua escrita é universal e mantém-se tão fresca como sempre foi. No entanto, também é verdade que envolve algum grau de dificuldade: Shakespeare não escreve romances, não usa sempre palavras simples, tem uma sintaxe fabulosa e metáforas. E se é recompensador apesar da sua dificuldade, a dificuldade é uma coisa que às vezes as pessoas evitam”, lembra John Mullan.
Tom McCarthy, o autor de C (ed. Presença), romance finalista do prémio Man Booker em 2010, defende a contemporaneidade de Shakespeare. “Se quisermos perceber o que se passa com Edward Snowden e a NSA (Agência de Segurança Nacional), o que temos de fazer é ler Hamlet”, diz ao PÚBLICO num intervalo das conferências. “É uma peça sobre vigilância, controle e poder, espionagem e resistência.” E acrescenta: “A primeira coisa que Hamlet faz quando o fantasma lhe diz para assassinar o tio é dizer que precisa de escrever. Passa o resto da peça a escrever cartas, a reescrever uma peça, a reescrever cartas. Parece que o único meio com que Shakespeare, o dramaturgo, está preocupado é com a escrita.” Defende que todas as metáforas na peça são sobre escrever, arquivar e gravar. “Ele é um brilhante utilizador dos meios de que dispõe. Hamlet é um hacker e é um escritor.”
Durante a sua conferência, Tom McCarthy pediu desculpa ao auditório por detestar pensar na obra de Shakespeare em termos de teatro. “Para mim, Shakespeare é um escritor, a sua obra é sobre as possibilidades da linguagem. E quando eu a vejo no palco de um teatro, fica reduzida a uma pessoa a gritar. É como alguém que diz que para percebermos Joyce temos de o ler alto; isso é absolutamente errado.” Pouco antes, também Howard Jacobson tinha dito que, para ele, fazia muito mais sentido ler Shakespeare do que vê-lo. “Ao ler Shakespeare, crio um teatro na minha mente e depois vou vê-lo no palco e está tudo estragado”.
Um génio que levava emprestado
Todos referem que Shakespeare é um escritor muito pouco original no sentido de que muitas das suas peças já tinham sido escritas por alguém: havia um Hamlet antes de Hamlet, um Rei Lear antes do Rei Lear, um Macbeth antes de Macbeth... “Ele não tinha medo de fazer aquilo a que hoje chamamos ‘plagiar’, usava excertos de Ovídio, Horácio, Lucrécio. Abria o arquivo da cultura clássica, reescrevia e moldava-o de maneira a que ali se visse modernidade”, explicou, depois da conferência, Tom McCarthy ao PÚBLICO. Ainda hoje Shakespeare é um “maravilhoso modelo”, não só servindo de fonte de material, mas também como um modelo para como se deve escrever em língua inglesa. “É essa a revolucionária não-originalidade do seu génio”, defende .
E para dar exemplos da maneira como Shakespeare tem sido aproveitado, McCarthy refere a obra de Jean Genet, de Mallarmé, e ainda A Piada Infinita do norte-americano David Foster Wallace. “É um bom exemplo recente de alguém que reinventou e retrabalhou Hamlet”, diz, lembrando que A Piada Infinita (Infinite Jest) é retirado do discurso que Hamlet faz no cemitério quando segura a caveira do bobo da corte, Yorick (“I knew him, Horatio; a fellow of infinite jest, of most excellent fancy”), e que o herói do livro de David Foster Wallace é também uma espécie de triste príncipe que nunca herdará o trono.
Esta cena de Hamlet parece exercer um grande fascínio sobre todos. Howard Jacobson, cujo primeiro livro, de 1978, foi escrito a meias com Wilbur Sanders e se chamava Shakespeare’s Magnanimity: Four Tragic Heroes, Their Friends and Families (Chatto & Windus), leu na sua sessão em Berlim esse mesmo excerto da peça. “Acho que ninguém consegue orquestrar ideias como Shakespeare o faz. Não sabemos o que Shakespeare pensa — uma das razões por que ele é amado em todos os lugares é porque não tem ideologias, não tem política, não tem filosofia —, mas ele encena os mais importantes pensamentos e não há nada que possamos pensar que seja mais importante do que a morte”, destaca Howard Jacobson. “Se vocês quiserem saber do que trata Shakespeare: é de morte e sexo e é de ciúme. Ninguém escreve melhor sobre o ciúme do que ele. O ciúme é uma espécie de morte. O que Shakespeare nos diz é que, como pessoas sérias, temos obrigação de ser mórbidos. Temos obrigação de pensar na morte o tempo todo, porque é o único tema.”
Elogio da obsessão
Uma das coisas que mais agradam a Jacobson nesta peça e na obra de Shakespeare em geral é que ela nos faz perceber que, se não formos obsessivos, de uma maneira ou de outra, não estamos inteiramente vivos. A frase que mais o marcou em Hamlet é quando Hamlet diz à caveira de Yorick: “Estás triste? Ora vai ao quarto da minha bela e diz-lhe que mesmo que se cubra com uma polegada de pintura há-de vir a dar nisto! Vê se a consegues fazer rir assim...” Esta frase tornou-se o seu credo. “Às vezes apelidam-me de ‘escritor cómico’ — de cada vez que o fazem fico muito zangado, só permito que eu próprio me catalogue assim —, mas como escritor cómico digo-vos que esse é o grande desafio da comédia: ‘Vê se a consegues fazer rir assim...’ Para que serve a comédia? O que Shakespeare nos diz é que a comédia tem de construir o seu lugar perante a morte. Tu és um bobo tão bom Yorick, faz lá uma piada disto.”
O título do seminário, Shakespeare - Nosso Contemporâneo?, foi roubado ao livro de Jan Kott de 1961, que apenas não tinha o ponto de interrogação no fim. O ensaísta defendia que em meados do século XX se compreendia melhor Shakespeare, porque “o Rei Lear era como se fosse Samuel Beckett antes do seu tempo”, explica ao PÚBLICO John Mullan, que quis tentar também perceber o que é que em Shakespeare já não nos é familiar. “Havia uma espécie de arrogância de interpretação contra a qual eu queria ir, de que tudo em Shakespeare que achamos poderoso é porque o reconhecemos, o que nem sequer é o caso. E realmente a discussão no seminário, acho eu, mostrou-nos isso. Os escritores falaram de coisas que eles consideram estranhas ou difíceis ou até enfadonhas, coisas de que não é fácil gostar-se em Shakespeare.”
Muitos disseram de diferentes formas que Shakespeare era melhor lido do que visto. Apesar de também dizerem que por vezes não percebem a linguagem. “Talvez uma das explicações práticas para isso é que, apesar da linguagem ser difícil, é um difícil recompensador. É complicado e subtil. É preciso lê-lo e passar algum tempo a tentar desvendá-lo. No teatro, ele voa à nossa frente. Acho que as pessoas querem dizer isso.”
John Mullan não concorda e dá muita importância ao dramaturgo: “Morreu com a maior parte das peças por publicar, e mesmo aquelas que foram publicadas em vida, todas as provas mostram que ele não participou nisso. O dinheiro que ganhava vinha do teatro e não dos livros. No entanto, há um livro com que ele se preocupou muito: o dos sonetos. Queria que chegasse aos leitores.”
Muito à frente do seu tempo
A. S. Byatt, autora de Possessão, Uma História de Amor (ed. Sextante), que recebeu o prémio Booker em 1991, vê na contemporaneidade de Shakespeare um paradoxo. “Não gosto quando ele é tornado contemporâneo ou quando sinto que está a ser usado por outras pessoas”, explica na conferência. “O que também sinto é que ele não é contemporâneo dele próprio, porque está muito à frente.”
Tal como já disse um famoso crítico inglês, Samuel Johnson, Shakespeare é um escritor universal porque “olha para romanos e reis, mas só pensa em homens”. O anfitrião, John Mullan, conta que recentemente esteve em Verona, onde se passa Romeu e Julieta. Shakespeare nunca lá foi, “mas a Verona dele é tão poderosa que em Verona se pode ir visitar a varanda da Julieta. E isto é incrível. Talvez seja um exemplo da sua universalidade. Ele cria lugares que todos nós podemos habitar. Claro que haverá académicos que podem encontrar uma série de coisas que são muito importantes e interessantes e que estão nas notas de rodapé sobre as palavras, as histórias, toda uma série de coisas, mas na verdade o que temos de saber está na peça.”
O PÚBLICO viajou a convite do British Council