"Na guerra já não há respeito pelo fotojornalista como testemunha independente"
O fotojornalista do The New York Times e membro do júri do Prémio Estação Imagem Viana diz que está a tentar inventar-se depois de perder duas pernas na explosão de uma mina.
Nascido em Lisboa em 1966, o luso-sul-africano João Silva é um dos dois sobreviventes de um quarteto de fotojornalistas que acompanhou de perto o tumultuoso período de transição do apartheid para a democracia na África do Sul. Trabalhava então para o The Star, de Joanesburgo, e essa experiência na primeira década dos anos 90, que o levaria depois, pela Associated Press e, mais tarde, pelo The New York Times, a cobrir alguns dos mais graves conflitos do nosso tempo, descreveu-a, com o amigo Greg Marinovich, no livro The Bang Bang Club. A obra foi adaptada ao cinema em 2010, mas a notícia acabou por ser mesmo um incidente com uma mina, no Afeganistão que, por pouco, não fez dele, nesse ano, o 58.º jornalista morto em serviço. Com o corpo reconstruído após mais de 70 cirurgias, e apoiado em duas pernas biónicas, João Silva aceitou este ano fazer algo de que não gosta – avaliar o trabalho de outros fotógrafos, no júri do Prémio Estação Imagem, em Viana do Castelo, cidade onde dá uma conferência este sábado, às 16h30. Na quinta-feira, mergulhado nos trabalhos a concurso, dizia-se impressionado com a qualidade do fotojornalismo português. Entrevista com alguém que, como homem e fotógrafo, se assume como um produto da guerra.
No filme The Bang Bang Club, a sua personagem diz a dado momento que gostaria de ser enviado a todos os shit holes do mundo. Esteve em quase todos.
Não me lembro de ter dito isso. Isso foi lá colocado no filme, que é “uma treta”, por opção narrativa. Mas não fui a todos os “shit holes” do mundo, não conseguiria. Contudo, o meu objectivo foi sempre fotografar o mundo a mudar, porque, como puto, o meu mundo foi muito afectado pela guerra. Saí de Portugal muito pequenino e fui para Moçambique; poucos anos depois aconteceu o 25 de Abril e depois a independência de Moçambique. A guerra aproximou-se da capital e os meus pais mandaram-me para Portugal, e fui viver com o meu padrinho, que me foi lá buscar. Estive em Portugal mais de um ano e meio, até os meus pais se instalarem na África do Sul, e fui viver com eles já quase com nove anos. Agora, com sete anos ser separado dos pais, isso afectou-me. Numa das minhas memórias mais vívidas de Moçambique vejo-me a dormir vestido, para o caso de termos de ser retirados a meio da noite, e recordo os tiros que ouvia à distância. E, claro, há esse momento da separação, no aeroporto. Isso é tudo violento. Hoje percebo muito bem porque segui este trabalho. Demorei muito tempo a perceber. Nunca tinha feito a ligação, mas percebi que sou, e fui sempre, um produto da guerra. E agora sou um mutilado de guerra. Mas essa foi a minha escolha. Eu escolhi estar lá. Sabia que havia esse risco.
E a África do Sul para onde foi viver era também um país violento…
Nem era só isso. Não sabíamos falar a língua. E nós, como portugueses, também éramos olhados de lado, não éramos bem vindos nas comunidades africanas. Era um parodoxo, pois o Governo queria mais brancos, com o seu conhecimento e experiências, mas o povo mais simples não nos queria. Era um país xenófobo e continua a sê-lo. Mas isso é comum a outras experiências de emigração. Todos os emigrantes têm esses desafios.
Foi na África de Sul, e a cobrir os tumultosos anos da transição, que o seu trabalho começou a ser reconhecido e passou a trabalhar noutros cenários.
Eu nesse período já viajava. Estive na Somália, no Sudão e cobri Angola. Depois das eleições de 92, quando a guerra começou outra vez, fui acompanhando o conflito uma a duas vezes por ano, até à morte de Savimbi.
Ao longo da sua carreira trabalhou em vários cenários enquadrado em forças militares ocidentais. Nunca sentiu que pudesse estar a ser manipulado? Como é que se escapa a isso?
Para cobrir qualquer trabalho como fotojornalista tem de se ter um ponto de acesso, alguém que te deixa entrar. E nesse aspecto há sempre condicionalismos. É normal. E estar embedded faz parte do processo. Essa era a única forma de cobrir a guerra no Iraque ou no Afeganistão. Mas o processo de embedding norte-americano não te proíbe de fazer o teu trabalho. Podem não te levar onde queres ir, mas, se acontecer algo, podes fotografar sem limites. Há é regras: se alguém morrer à tua frente, tens de esperar que os familiares sejam notificados antes de poderes publicar as imagens. Claro que não poderes ver o que queres é uma forma de manipulação. Mas há poucas guerras onde podes circular à vontade e andar de um lado para o outro. Principalmente nas guerras modernas, entre o ISIS [Estado Islâmico] e o Ocidente. Agora somos todos inimigos. Na primeira vez que fui ao Afeganistão, em 1994, durante a guerra civil, eu passava de um campo do conflito para o outro, e ao fim do dia regressava a minha casa no centro de Cabul. Hoje em dia [isso] não é possível. Agora, com a Internet, ninguém precisa de nós para sermos testemunhas e dar a sua versão da história nos nossos países. Eles podem comunicar com o mundo. E, ainda por cima, com a Internet podem controlar a mensagem.
E isso mudou o papel dos jornalistas nos conflitos?
Mesmo em sítios onde o acesso é difícil, acho que é importante estar lá, porque o povo continua a sofrer, há os deslocados, a fome, e essa é uma realidade da guerra que tem de ser contada de qualquer forma, tenhas ou não acesso às zonas de combate. E isso muitas vezes implica compromissos. Temos de exercer o nosso papel de Fourth Estate [o quinto poder, em português]. Sem isso não temos valor, seremos apenas porta-vozes de governos que estão a destruir a vida das pessoas.
Na África do Sul, no seu trabalho na cobertura dos conflitos étnicos entre negros, nunca foi acusado de estar ao serviço da elite branca?
Isso às vezes aconteceu. Mas, no geral, detestávamos o apartheid e queríamos destruir aquele sistema. E, como jornalistas, naquele tempo, éramos vistos como uma ponte para esse objectivo. Houve situações em que fomos acusados de sermos espiões ou de trabalharmos para a polícia. Mas na maioria dos casos também fugíamos à polícia para conseguimos fazer o nosso trabalho e mostrar ao mundo o que se estava a passar na África do Sul. Tudo isso mudou. O que está a acontecer na África do Sul é uma guerra de classes. E nós, como jornalistas, com as nossas máquinas e os nossos carros, somos vistos como parte da outra classe. E em tempos recentes tem havido mais ataques a jornalistas do que nessa outra época. Os jornalistas estão a ser vistos como parte do problema e não como parte da solução. Nessa década de 1990 éramos vistos como parte da solução.
A sua vida profissional mudou após este o acidente no Afeganistão em 2010?
A minha vida mudou do ponto de vista emocional, pessoal. Do ponto de vista profissional, não. Sou um foot soldier – um soldado raso – que acredita na sua missão. Acredito na mensagem. O que fazemos na nossa vida é superimportante: sermos essa voz. Claro que há algo que mudou – a minha fotografia já não é como era, mas isso é mais um problema de mobilidade do que outra coisa.
Não ganhou nada nesse processo de adaptação?
Não. Perdi muito e estou a tentar recuperar. Estou a tentar inventar-me. Estás a ver como ele está [olha para o fotógrafo Martin Henrik, que o observa, quase de cócaras]. Eu não posso fazer isto. E isso muda a perspectiva, a forma como vês e como compões a fotografia. Mas não me tornei um Cartier Bresson só porque perdi as pernas. Estou a reclamar o que perdi. Ainda no ano passado fui a sete países, em trabalho. Este ano já estive em dois. Mas nunca vai ser a mesma coisa. Em todos os aspectos.
E o medo? Passou a ter medo?
Nada. Continuo a andar de mota, como antes. E mesmo no trabalho... Na África do Sul vou cobrir as manifestações, que se tornam violentas. E consigo fazer.
Continua a desafiar os seus limites físicos, como fazia antes?
Se calhar estou a desafiar os meus limites mentais. Não porque tenha medo, como referia, mas porque uma coisa que muda mesmo, quando isto acontece, é a forma como vemos o mundo e como relativizamos algumas coisas para dar mais importância a outras, como a família.
Segundo as estatísticas dos Repórteres sem Fronteiras, escapou de ser o 58.º jornalista morto em serviço naquele ano de 2010.
[Pára...fica uns segundos a olhar] Eu por acaso não conhecia esse número. Mas foi um período difícil. Em 2011 perdi vários amigos também e 2012 também não foi bom. E não perdi mais, porque entretanto muitos deles deixaram de ir para a Síria e outros países. Há uma série de lugares sem cobertura por parte dos jornalistas, precisamente por causa disso. Não é o medo de ser atingido – esse é um risco que conhecemos. Hoje, podes virar numa esquina e seres capturado por radicais, e estás feito. Não há respeito pelos fotojornalistas, nem pelo nosso papel como testemunhas independentes. Isso desapareceu.
A guerra não tem um campo de batalha reconhecível? Isso muda também as suas expectativas de trabalho? E os riscos?
Para trabalharmos, precisamos de uma rede de segurança. E isso desapareceu. O salvo-conduto que nos era dado pela profissão não existe mais. E há algo pior: esses grupos preferem raptar jornalistas a soldados, porque como jornalista tens valor. Podem pedir um resgate à empresa.
E não há também esta sensibilidade do Ocidente? Um civil comum raptado quase não é notícia. E quem rapta sabe que o efeito da mensagem do terror é muito maior se o envolvido é um jornalista, não lhe parece?
Para eles, tem mais impacto. Um soldado morto é uma linha num jornal. Eu perdi as pernas e todos querem falar comigo. E eu sempre senti isso. Estive num hospital militar ao lado de rapazes de 18, 19 anos, mutilados, e os jornalistas vinham só para falar comigo. Chegou a um momento em que parei. Ninguém se interessa por estes putos? Todo este interesse em mim porquê?
Numa entrevista, em 2013, dizia que como fotógrafo – e acrescentaríamos, de guerra –documentava o heroísmo dos outros. E, no entanto, a seguir ao dia 23 de Outubro de 2010 foi olhado (e fotografado e entrevistado) como um herói de guerra. Sentiu-se tratado como tal?
Sim, e estava desconfortável com isso. A América é um país muito patriótico, e em Washington DC, quando andava na rua de calções, com as minhas próteses à vista, muita gente me vinha agradecer o serviço ao país, pensando que era soldado. Dizia-lhes que era jornalista, e as pessoas insistiam, agradecendo por ter estado ao lado dos rapazes, na guerra. Cansei-me de tal forma que a determinado momento desisti de tentar explicar.
O jornalista tornou-se parte de um certo star system. Ganhou valor-notícia?
Sim, e isso agora ainda é pior com as redes sociais, o Instagram e o Facebook. Cada um de nós está a ver o seu próprio filme, no qual somos protagonistas. E falamos mais sobre o jornalista que vai a um sítio do que sobre o povo que lá está a sofrer. Isto sempre me fez confusão. E nunca foi assim.
Nesse processo de relativização a que se referia há pouco, mudou algo na distância a que se mantém dos acontecimentos e dos seus protagonistas?
Não. Para o tipo de fotografia que quero fazer tem de haver contacto. Tenho de sentir o suor. Não somos moscas na parede, nem máquinas a vigiar o mundo. Somos seres humanos a olhar para outros seres humanos. E por causa disso é que somos afectados também. A máquina não é um filtro. Quando fiquei ferido, continuei a fotografar. Sempre soube que não havia um escudo mágico a proteger-me do que acontecia à volta.
Esteve toda a sua vida profissional muito perto da morte. Nunca se sentiu a perder a sensibilidade perante a dor dos outros?
Não.
E como é se sobrevive a isso? E como é que se trabalha?
É preciso manter essa sensibilidade activa. Tens de sentir o que aquelas pessoas sentem para fazer um bom trabalho e para tocares as pessoas que estão longe e não têm nem contacto, nem noção dessas realidades. As tuas imagens só falam o que têm de falar, só afectam o resto do mundo, se tentares sentir o mesmo (ainda que não consigas sentir, de facto, o mesmo). Mas tens de sentir empatia. E isso pode ser difícil, afecta-nos, e pode levar até ao suicídio, como aconteceu com amigos meus, infelizmente. Eu, graças a Deus, sempre fui forte. Quanto tenho algo em mente, vou até ao limite.
Aceitou fazer parte do júri do Prémio Estação Imagem Viana e está a avaliar os trabalhos a concurso. Viu algo que o impressionasse?
Não gosto de fazer parte de júris, sou avesso a avaliar o trabalho dos meus companheiros, apesar de ter muitos convites para o fazer. Aqui aceitei por se tratar de Portugal. Gosto muito de Portugal, e venho aqui sempre que posso, pois tenho o meu padrinho, que é muito importante para mim. Conhecia mal o trabalho dos fotojornalistas portugueses, e, não comentando nada em específico, só posso dizer que vi coisas muito boas, ao nível de um World Press Photo. Trabalha-se com enorme qualidade em Portugal.