Fernando Guedes, o editor que levou a Verbo do Salazarismo até ao século XXI

Lançou a Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura, a célebre colecção Livros RTP e os livros da Anita. Morreu em Lisboa, aos 87 anos.

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O escritor e editor Fernando Guedes foi presidente da Federação de Editores Europeus dr

Um dos últimos grandes senhores da edição portuguesa, Fernando Guedes, fundador da Verbo, e também poeta e ensaísta, morreu este domingo em Lisboa, aos 87 anos. O seu funeral sai esta terça-feira de manhã, às 10h, da Igreja da Nossa Senhora do Carmo para o cemitério do Lumiar, em Lisboa.

Criada com o apoio de um sócio capitalista, Sebastião Alves, em 1958, mas dirigida desde o início, e durante meio século, por Fernando Guedes, a Verbo lançou a gigantesca Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura, publicou os cem livros da Biblioteca Básica Verbo – Livros RTP, um sucesso editorial de dimensões épicas nas vésperas do 25 de Abril, e trouxe para Portugal os livros de Anita ou os álbuns de Tintin, sem esquecer os livros de cozinha de Maria de Lurdes Modesto, que venderam centenas de milhares de exemplares.

Homem de direita e assumidamente católico – escreveu mesmo um livro comemorativo do cinquentenário das aparições de Fátima – Fátima Mundo de Esperança (1967) –, Fernando Guedes foi sempre um editor respeitado pelos seus pares, quer em Portugal quer no estrangeiro: presidiu antes do 25 de Abril a várias direcções do Grémio Nacional de Editores e Livreiros, e depois de 1974 foi também presidente da Associação Portuguesa de Editores e Livreiros (APEL), do Grupo de Editores de Livros da então Comunidade Económica Europeia, da Federação de Editores Europeus e, a partir de 1992, da União Internacional de Editores, da qual mantinha a presidência honorária.

Nascido no Porto em 1929, era já um poeta com vários livros publicados quando se abalançou a criar a Verbo, que dirigiu durante 50 anos, até à integração da editora no grupo Babel, em 2009. Reformou-se então da actividade editorial executiva, mas manteve o seu interesse de sempre pela história do livro, tendo publicado em 2012 Os Livreiros Franceses do Delfinado em Portugal no Século XVIII, edição muito aumentada de um trabalho que publicara no final dos anos 90. E o seu último título, lançado há apenas dois anos na Babel, T. S. Eliot e Ezra Pound: uma tentativa de aproximação às suas vidas e às suas obras, mostra bem a diversidade de interesses deste editor que foi também “um homem de grande cultura, e não apenas um negociante”, como nota o seu colega de ofício Carlos Veiga Ferreira, ex-responsável da Teorema e actual editor da Teodolito, uma chancela da Afrontamento.

Ainda estudou música, experimentou a crítica de arte e publicou um primeiro livro de poemas – Esfera (1948), com um belo grafismo concebido pelo seu amigo Fernando Lanhas – antes de rumar a Lisboa, em 1949, para estudar Ciências Económicas e Financeiras no Instituto Superior Técnico.

Ao longo dos anos 50, além de prosseguir a sua hoje um pouco esquecida obra poética, com títulos como O Poeta (1950) ou Vinte Canções Voltadas a Norte (1956), ambas com grafismo do arquitecto e artista plástico Fernando Lanhas, Fernando Guedes esteve ainda envolvido em revistas literárias como Távola Redonda, onde colabora com David Mourão-Ferreira ou António Manuel Couto Viana, e Graal. Logo após ter-se lançado na aventura da Verbo, dirige ainda a Tempo Presente. Numa longa entrevista a Sara Figueiredo Costa, publicada em 2012 com o título Fernando Guedes: O Decano dos Editores Portugueses (Booktailors), o editor explica que ao contrário das publicações anteriores, com uma colaboração ideologicamente mais ecléctica, a Tempo Presente “teve um posicionamento político indiscutível” e nasceu de um grupo de amigos que achava “um bocado irritante a oposição [ao Estado Novo] achar que a esquerda dominava tudo”. A revista, diz, “serviu fundamentalmente (…) para mostrar que à direita não havia só burros e até se podia fazer oposição ao regime”.

Autora do blogue Cadeirão Voltaire, Sara Figueiredo Costa conta que a escolha de Fernando Guedes para abrir uma colecção dedicada aos grandes editores portugueses foi “absolutamente consensual” – até agora, só saiu mais um volume, dedicado a Carlos Veiga Ferreira – e recorda como “momentos muito agradáveis” as várias sessões com o editor, “uma pessoa profundamente culta e com quem dava muito prazer falar, e que era o guardião de uma memória que já não estava acessível na área da edição”.

"Tudo isso está no fim"

Apesar da sua continuada intervenção como dirigente associativo do sector, da sua injustamente esquecida actividade como crítico de arte (foi um defensor da primeira geração de artistas abstractos portugueses) e da sua produção literária e ensaística – se a sua poesia nunca teve o reconhecimento da de alguns dos seus companheiros da Távola Redonda, como Ruy Cinatti, Mourão-Ferreira ou Couto Viana, é consensual a qualidade dos vários livros que dedicou à história da leitura e da edição e comercialização do livro em Portugal –, a grande obra de Fernando Guedes foi indiscutivelmente a própria Verbo.

Na sua entrevista a Sara Figueiredo Costa, sente-se a nostalgia de alguém que vê desvanecer-se esse mundo em que os editores eram também os proprietários das empresas. “Posso publicar os livros que quiser da Langenscheidt, mas já não sei onde está o Andreas Langenscheidt. Quero dizer, sei muito bem, estou com ele quando vou à Alemanha, e, se ele vem a Portugal, vem a minha casa. Mas tudo isso está no fim, porque já não há donos de empresas."

E se Fernando Guedes é dos que nunca acreditaram na morte anunciada do livro impresso, é óbvio que não encarava com particular optimismo o recente fenómeno da concentração editorial: "Não foi uma explosão, foi uma implosão que liquidou toda a vida particular e privada de cada editora”, disse, descrevendo assim o cenário em 2012: “E agora pouco temos, tirando os dois monstros — isto sem nenhum sentido pejorativo —, a LeYa e a Porto Editora. A Babel pretende ser um terceiro grupo, mas ainda não sei se o será ou não (…) e não há mais nada."

Uma das primeiras iniciativas com algum impacto da Verbo foi a edição de A Arte Popular em Portugal, em fascículos depois reunidos em seis volumes, ainda hoje uma obra de referência, a que se seguiram a Grande Enciclopédia da Cozinha, de Maria de Lurdes Modesto, o primeiro de vários êxitos comerciais com a cozinheira e figura televisiva, e a Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura, lançada em 1963 e que veio a ter 40 tomos, descontados os volumes de actualização e anexos vários. “Acho que foi a menina dos olhos do meu avô”, disse ao PÚBLICO o neto do editor, João Paulo Guedes, quando lhe perguntámos qual a edição da Verbo de que Fernando Guedes mais se orgulharia.

Em 1965 sai Anita Dona de Casa, o primeiro livro de uma colecção juvenil, dirigida às meninas, que se tornou um dos ícones da editora, com as primeiras edições a serem ainda hoje procuradas nos alfarrabistas. Na entrevista a Sara Figueiredo Costa, o editor explica que se sentiu atraído pelas ilustrações [de Marcel Marlier] “convencionais, muito realistas” dos livros. E em 2012 como nos anos 60, continuava a não ligar nenhuma às críticas dos que denunciavam o alegado machismo da colecção, cuja protagonista era uma menina educada para se casar, ter filhos e ser dona de casa. “Era isso mesmo, e era, naquela fase, o que as miúdas queriam. A seguir é que, coitadas, se metem na sarilhada da vida, em que antigamente só estavam os homens”, diz o editor, assumindo-se como “perfeitamente quadrado”.

A última grande operação da Verbo antes do 25 de Abril é o lançamento, em 1970, da colecção Livros RTP, inaugurada com Maria Moisés, de Camilo Castelo Branco, e a monografia Cem Obras­-Primas da Pintura Europeia, redigida pelo próprio Fernando Guedes, embora o seu nome não apareça no livro. No seu conjunto, os cem volumes da colecção, com capas de Sebastião Rodrigues, venderam literalmente milhões de exemplares, e era frequente encontrá-los, por esses anos, geralmente acondicionados em estantes feitas por medida, em casas onde por vezes praticamente não existia mais nenhum livro.

Carlos Veiga Ferreira recorda que a associação de editores e livreiros da época chegou a ter seis mil sócios, porque a Verbo, conta, “só vendia os livros a quem fosse sócio”, o que levou “milhares de quiosques a associar-se”.

Com a revolução de 1974, o conhecido posicionamento ideológico de Fernando Guedes trouxe-lhe alguns dissabores e o editor, falsamente acusado de uma irregularidade administrativa, chegou a passar três noites na prisão. Mas pelo final da década, a Verbo, que em 1972 comprara a Ulisseia – com o excelente catálogo que ali criara Joaquim Figueiredo de Magalhães –, está de novo bastante activa, lançando várias bem-sucedidas colecções infantis e juvenis, como os livros de Petzi, a série 15 (15 Mulheres Célebres, 15 Aventuras no Espaço, etc.) ou a colecção pedagógica Eu Sei Tudo sobre

Mesmo antes do 25 de Abril, a Verbo tentara criar um clube do livro para concorrer com o Círculo de Leitores, um projecto que se desvaneceria nos anos do PREC, e no início dos anos 80 decide montar, e desta vez com sucesso, um serviço de venda por correspondência, a Verbo Postal.

Com altos e baixos, a editora foi-se aguentando nas décadas seguintes, mas quando entrou no século XXI já iam longe os anos de ouro da casa, e em 2009 a empresa foi vendida ao grupo Babel. E Fernando Guedes, que em 1998 foi agraciado por Jorge Sampaio com a Ordem do Infante D. Henrique, ainda viveu o suficiente para ter tido tempo de se decepcionar com os resultados desse negócio. Em 2012, confessava a Sara Figueiredo Costa: “Esperemos que ainda consigam dar a volta, porque o caminho é capaz de ter muitos espinhos, mas acho que a Verbo merecia ter uma vida mais brilhante."

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