Letícia Ramos vence BESPhoto 2014 com questões sobre a verdade nas imagens de ciência

Principal prémio de arte contemporânea em Portugal para trabalho de artista brasileira revelado ao final desta tarde de quarta-feira.

"Paisagem #1"
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"Paisagem #1" Letícia Ramos
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"Teletransporte" Letícia Ramos
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"Meteorito" Letícia Ramos
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"Díptico" Letícia Ramos
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"Díptico#2" Letícia Ramos
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Meteorito#3 Letícia Ramos
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Vostok#2 Letícia Ramos
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Vostok#1 Letícia Ramos
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Meteorito#2 Letícia Ramos
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Fenda Letícia Ramos
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Vostok Letícia Ramos

“É uma série de imagens onde não temos a noção de tempo. São imagens que potenciam dúvida”, descreveu ontem a artista ao receber o prémio no Museu Berardo. Não é uma tendência nova, mas o questionamento do carácter de “verdade” implícito na fotografia tem mostrado um enorme fulgor na obra de inúmeros artistas nos últimos anos. Letícia Ramos tem concentrado essa reflexão nas imagens produzidas pela ciência, tentando por um lado desconstruir aquilo que mostram supostamente como documento “puro”, inquestionável, e por outro trazer para o campo da criação artística a poética presente em muitas das realizações científicas, seja o metálico de uma voz a descrever a exploração de um espaço nunca visitado e longínquo, sejam as paisagens abstractas que se vão construindo (pelo desgaste físico) numa película de microfilme, depois de visto milhares de vezes.

“O meu interesse por esta relação entre imagem e ciência é de desconhecimento. Não quero conhecer, não quero saber muito da história científica que está por trás de cada uma das experiências ou imagens, justamente para continuar a ter a ilusão e a poética das imagens com esta natureza”, disse ao PÚBLICO na apresentação da exposição a artista brasileira (n. Santo Antônio da Patrulha, 1976), cujo trabalho aborda ainda questões relacionadas com a efemeridade e a transformação dos suportes fotográficos.

Ainda com o anúncio do prémio fresco (e depois de ter sido “raptada” pelo comendador Joe Berardo para fazer uma apresentação da exposição), Letícia Ramos declarou-se “surpreendida”. “Não esperava. Apresento os trabalhos de uma forma muito clássica - são fotografias em molduras, filme e cinema. A forma como mostro a exposição pode até ser considerada conservadora, mas o conteúdo é mais abstracto. Tentei trabalhar o discurso e não a forma. O prémio foi corajoso por distinguir algo que não é fácil, mas projectos que fazem reflexões sobre as imagens.” Apesar desta forma “clássica” de apresentar a exposição, a artista confessou algum receio que a mostra “não fosse entendida”. “Arrisquei muito, porque podia trazer um trabalho na linha do que tenho feito, com construção de câmaras... Mas resolvi ir um pouco mais além, não só para o prémio mas também para mim." Letícia sublinhou a importância de se sentir “desconfortável” com os temas e os meios que utiliza como matéria-prima de criação artística porque só assim, diz, “talvez consiga aproximar-se daquilo que considera ser o papel dos artistas”.

Viciada em noticiário sobre ciência (é uma das suas leituras diárias), Letícia Ramos inspirou-se justamente no título de uma notícia para dar nome à exposição que em Outubro viaja para o Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo. Em meados de 2012, quando produzia alguns dos trabalhos que vieram a fazer parte desta mostra, a artista (com formação em arquitectura, urbanismo e cinema) ficou fascinada com as primeiras imagens fotográficas de Marte que o robô Curiosity da NASA enviava para a Terra. "Pensei muito em Marte no momento em que construí a exposição porque é um lugar que alimentou a nossa imaginação durante muito tempo, onde imaginávamos que existiam pessoas verdes... As utopias à volta deste lugar foram sendo destruídas. O nome da exposição pode ser entendido como um protesto de todos esses cientistas românticos, como que a reafirmarem que sempre teremos um lugar para imaginar."

Letícia juntou esse fascínio pelo planeta vermelho ao do cinema (a frase é inspirada na célebre tirada de Casablanca “Teremos sempre Paris”) para a construir uma série de trabalhos dedicados ao imaginário da fotografia de ciência, onde o cinema tem um papel fundamental, através do filme Vostok, uma peça videográfica que relata uma viagem de exploração científica à Antárctida, que imita todas as condições da sala escura, onde é projectada uma “ficção científica”.

“Este filme também é um elogio ao cinema, por isso a sala tem as condições que tem, para dar essa experiência da ficção”, explicou Letícia Ramos no dia da inauguração da exposição em Lisboa que partilhou com os outros finalistas do prémio, José Pedro Cortes (Portugal) e Délio Jasse (Angola). Muitos dos que viram este filme, feito apenas com maquetes, perguntaram se a artista tinha filmado mesmo no gelo. Esta dúvida causada pelas imagens representa “uma vitória” para a artista já que muitas vezes aproximamo-nos das imagens da ciência através do cinema. E “quando elas aparecem no cinema consideramo-las mais verdadeiras do que a própria imagem científica original”. 

A forma consistente como Letícia Ramos tem explorado este lado dúbio da imagem foi apontada pelo júri no argumentário, que sublinhou um “compromisso constante” dos meios utilizados “com as diversas possibilidades ficcionais e poéticas”.

Do júri de premiação fizeram parte Elvira Dyangani Ose, curadora de arte internacional da Tate Modern de Londres, Luis Weinstein, fotógrafo e organizador do Festival Internacional de Fotografia de Valparaíso, e María Inés Rodríguez, diretora do CAPC, Musée d’Art Contemporain de Bordeaux.

O carácter processual e a investigação feita para a realização de cada projecto são fundamentais na obra de Letícia Ramos, que actualmente trabalha em Microfilme, projecto que ganhou uma bolsa de fotografia do Instituto Moreira Salles e da revisa de fotografia Zum.

No ano passado, o prémio foi atribuído a outro brasileiro, Pedro Motta, numa edição que inaugurou a parceria com o Instituto Tomie Ohtake.

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