Jesus Cristo vê a fragilidade humana

Autor conhecido pela sua capacidade de chocar e dividir os favores dos públicos, o italiano Romeo Castellucci apresenta em Lisboa e Porto Sobre o Conceito do Rosto do Filho de Deus, peça em que, perante o olhar de Jesus Cristo, os excrementos são “metáfora do martírio humano”.

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FOTO: Klaus Lefebvre
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Não há como escapar ao olhar do filho de Deus. O olhar plácido e constante de Jesus Cristo no palco de Sobre o Conceito do Rosto do Filho de Deus, espectáculo do controverso criador teatral italiano Romeo Castellucci, tudo vê com a mesma brandura: um filho que limpa as fezes do pai, envelhecido até à incontinência e à mais humilhante dependência; os espectadores observando a cena entre pai e filho, num impiedoso e cru mergulho na decadência humana, correndo para a morte com a irónica pressa de que aquele corpo gasto já não é capaz; crianças que arremessam contra o retrato de Cristo (Salvator Mundi, obra de Antonello da Messina, datada de 1465) granadas de plástico. Esse olhar persiste até que, por fim, o rosto se desfaz e parece chorar lágrimas que – segundo corre em vários textos disseminados pela facilidade da internet e pelo conteúdo desta peça que Castellucci descreveu ao The Guardian como centrando-se sobre “o espírito da merda” – poderiam ser excrementos.

Romeo Castellucci confessa ao Ípsilon irritar-se com estas “imagens revoltantes” que lhe têm atribuído a ideia de colocar fezes a cair dos olhos de Cristo ou a serem atiradas pelas crianças. “Nada há de mais falso, deturpador, tendencioso”, queixa-se. “Quem afirma essas coisas gravíssimas responderá perante a própria consciência ter ofendido com essas imagens revoltantes.” As lágrimas são afinal feitas de tinta-da-china, como se fosse a própria tinta das sagradas escrituras a derreter, revelando um “lugar tornado vazio”; as granadas são as tais granadas de brincar que defende como “um gesto inocente levado a cabo por inocentes – a intenção é aquela das crianças que querem toda a atenção dos seus pais distraídos”.

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FOTO: Klaus Lefebvre

Claro que a inocência de Castellucci não atinge níveis estratosféricos. Embora rejeite o epíteto de provocador, não ignora as ondas de choque que em Paris, por exemplo, levaram a manifestações junto do Théâtre de la Ville levando à interrupção momentânea de Sobre o Conceito… em 2011. E sabe de cor esse manual da provocação ao tomar opções como colocar em palco um doente oncológico na pele de Marco António – cuja fala se fazia pelo orifício na garganta decorrente de uma traqueotomia – na sua encenação de Júlio César ou uma cantora lírica que, em Schwanengesang, perde o controlo do lieder de Schubert e desaba num desvario colérico, insultando o público.

A noção de provocação pode, afinal, confundir-se com algo tão simples quanto não virar as costas ao mundo e não o convocar em doses salubres e esterilizadas. “Nada há de provocatório”, diz-nos acerca do espectáculo que apresenta no São Luiz, Lisboa (6 a 8 de Maio), e no Rivoli, Porto (12 de Maio). “Tudo aquilo que se vê, se sente e se experimenta deriva da observação directa da realidade.” Se Castellucci não procura maquilhar tudo quanto possa ser incómodo na realidade, procura mesmo trazer esse confronto com aquilo que tentamos manter longe da vista, trazendo à tona tudo aquilo que fazemos por enterrar rapidamente debaixo de camadas e camadas de memórias menos nauseantes. Fá-lo, aqui, a cobro da religião, levando à letra o quinto mandamento, aquele que manda honrar pai e mãe. “Um filho”, descreve, “toma conta do próprio pai, do seu colapso físico e moral. Ele acredita neste mandamento e até ao fim arca com aquilo que parece ser a única herança do pai – as suas fezes. Tal como pai, também o filho parece perder a dignidade.” Daí que resuma o espectáculo como “uma reflexão sobre o mistério do fim” e em que os excrementos são uma “metáfora do martírio humano como condição última e real”.

O olhar de Jesus Cristo pode sempre abrir portas para leituras quase infindáveis: desde o estabelecimento de uma longa linhagem sacrificial em nome do pai – calvários muito distintos, evidentemente –, até essa ideia de observação constante, de reconhecimento dessa devoção ao pai, quer por absoluta vontade própria quer pela existência de um mandamento que a isso insta de forma directa.

A incerteza

Romeo Castellucci afirma que Sobre o Conceito… nasceu da presente “extrema solidão do rosto de Jesus”, querendo com isto dizer que, apesar da fortíssima representação do filho de Deus na História da Arte, “hoje este rosto desapareceu da arte, e esta ausência abre espaço para um tema vasto, que vai da sociedade à política e à relação de cada indivíduo com a própria religião”. Esse lugar de relação individual com a religião, num palco em que “o fim da vida e a decadência da beleza” se espraiam diante daquele Salvator Mundi de “olhar divino inefável e mudo, límpido e penetrante”, é fortemente sugerido pelo uso ambíguo que Castellucci faz da citação bíblica do Livro de Jó, salmo 23: “O senhor é o meu pastor (nada me faltará)”.

Ao italiano interessa sobretudo o salmo anterior, quando Jesus Cristo se sente abandonado na cruz, dizendo “Deus meus, Deus meus, porque me desamparaste? Por que te alongas do meu auxílio e das palavras do meu bramido?” Este Sobre o Conceito…, que Castellucci considera em absoluta coerência com “o espírito do Cristianismo que alimenta a dúvida, o conflito”, joga-se em permanência no campo da incerteza, como se tudo se avolumasse enquanto teste à fé (ou à sua ausência) e à condição humana, através de cenas e imagens que se justificam pela dificuldade em olhá-las, integrá-las e dar-lhes um sentido que não seja o da mera reacção epidérmica. Em última instância, Castellucci parece querer que cada um meça o estremecimento que tudo isto lhe causa, para que então analise o lugar que a religião (por mais esquecida ou distante) ocupa na sua vida de forma basilar – ao accionar um gatilho que é antes de mais visceral e emocional, só num segundo plano pode reclamar-se racional.

Reconhecendo que a sua obra é assombrada há 30 anos por “esta figura, completamente misteriosa” aos seus olhos que nos mira longamente durante o espectáculo, para Castellucci este é também mais um capítulo em que reforça a sua crença de que todo o teatro ocidental “encontra fundamento na beleza problemática da tragédia grega”. “É antifrástico”, conclui. “Utiliza elementos estranhos e violentos para veicular o significado contrário.” Ou seja, a violência quer remeter para a “necessidade do contacto humano”. No fundo, é isso que o seu teatro faz: dá um passo atrás, tornando-se quase inumano, para “mais bem compreender a fragilidade humana”.

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