Isabel Abreu é uma actriz desarmante. Poderíamos dizer que o é também sem o artíficio de um papel para defender, mas quando se agarra a uma personagem como se fosse uma escolha privada que por acaso habita o espaço público percebemos melhor as suas armas. A errância do seu percurso pelo teatro (esteve na Comuna, passou por espectáculos em quase todas as salas, fez Ibsen, Tchékhov, Strindberg...), pela televisão e pelo cinema tornaram-na um caso raro de mistério. Como se faz uma actriz assim? Como a apresentamos?
Sorriso franco, gestos largos, rosto marcado, olhos que se agigantam quando descobrem o seu prazer reflectido no prazer de quem a vê representar. Vimos como era emTrês Dedos Abaixo do Joelho (2012), em que ao lado de Gonçalo Waddington fazia atravessar pelo seu corpo a censura do Estado Novo. Foi a peça que, diz agora, a fez descobrir-se. Ainda o é, porque quanto mais circula, mais Isabel Abreu aprende as regras de um jogo de sedução que está sempre a começar.
A actriz de 36 anos regressa agora ao círculo de confiança da Mundo Perfeito, a companhia do encenador e dramaturgo Tiago Rodrigues, que a põe a fazer de Gustave Flaubert numa adaptação do romance — e do escândalo que foi na França burguesa de 1800 a sua publicação — Madame Bovary. A partir de amanhã e até dia 15 no palco do São Luiz, em Lisboa (ainda no âmbito do Alkantara Festival), eis Isabel Abreu a mostrar que fazer teatro tanto é aprender a aparecer como aprender a desaparecer.
Comecemos pelo início. Quando é que se decide que se quer ser actriz?
Aos 17 anos não tinha a consciência de uma carreira. Pertenço a uma geração para a qual a televisão não tinha a importância que tem hoje. Às vezes pergunto-me se valeu a pena recusar tanta coisa e querer ser coerente. Há mãos nas quais gostaria de me ter entregado e há pessoas com quem gostaria de ter trabalhado, mas nunca foi objectivo meu fazer a Emma Bovary, a Fedra ou a Menina Júlia. O que me interessa é ser espicaçada por encenadores que me vão por em causa, potenciar o que já existe, descobrir outras coisas e fazer-me passar por tantas experiências diferentes que a ideia de carreira só pode passar-me ao lado. Das poucas vezes que fiz uma opção não emocional foi um erro completo... Foi uma boa opção dizer que não a tantas telenovelas ou a publicidade? A verdade é que, vendo o estado em que a cultura está, nenhuma dessas opções teria tido uma repercussão ou feito diferença. Pairo sobre um limbo onde acredito que, se for honesta comigo e com os outros, pode ser que não entre num caminho solitário.
Mas alguma coisa aconteceu com o Três Dedos Abaixo do Joelho. Como se a mecânica da representação fosse posta em causa por uma actriz que parecia estar a descobrir qualquer coisa nova
[risos]. Os actores são actores de nicho. Os de repertório e os outros. Mas o Tiago [Rodrigues] veio abrir no meu percurso a possibilidade de ser, de um modo muito confortável, uma criadora, ou uma co-criadora em exposição permanente. Isso abriu-me a cabeça. E admito até que abriu a cabeça de algumas pessoas com preconceitos sobre o meu trabalho, que estava conotado com um teatro mais... [agita os braços e as palavras numa onomatopeia grotesca]. O Três Dedos Abaixo do Joelho era a antítese disso.
Isso foi perceptível a partir de que momento?
Não foi algo que tenha percebido durante os ensaios. Transformou-me como actriz, no meu modo de me expor e de me entregar, porque me veio dar uma base ao que já tinha intuituivamente e que me permite, todas as noites, acreditar que é possível estar presente, estar implicada, a criar ou a expor-me. Deu-me confiança para não ter medo de falhar e para assumir os erros nos olhos das pessoas que nos vêm ver. Criou um ser mais implicado. Criou uma actriz.
Deu-se o encontro do desejo de ser com a possibilidade de o ser.
É isso. É um prazer. O Madame Bovary tem o mesmo nível de exposição. É tocar num corpo que já conheces, é uma pele que já encontraste. Sinto que as pessoas confiam no que eu tenho para dar e no que estou a dar, que são duas coisas distintas. Depois do nascimento dos miúdos [Tiago, 12 anos, e Maria, nove] questionei muito esta minha forma de achar que tenho de estar sempre a cem por cento. Vivo a 500 quilómetros, ida e volta, de Lisboa. Houve semanas em que podia ter ido a Moscovo com todas as voltas que dei. A distância magoa-me violentamente, mas é a forma de eles não terem de lidar com este ser obsessivo-compulsivo. Não consigo trabalhar se não assim e não é o síndrome da melhor aluna...
Essa consciência vem de onde?
[pausa] Não sei. Acho que tem a ver com a educação. O meu pai morreu quando eu tinha oito anos, mas a presença que teve na minha educação foi muito forte. O rigor que ele tinha para consigo, tinha-o comigo, que era a filha mais velha. Tinha de lhe mostrar o estojo da escola todos os dias e se não estivesse organizado tinha uma repreensão. Não gosto de usar a infância como exemplo, mas há coisas que te marcam. Eu entrei ilegal para a escola porque não tinha a idade certa, mas como era uma terra pequena e os meus pais eram os senhores doutores deixaram-me entrar. Só na quarta classe pude fazer um exame que corrigisse a matrícula. Eu sentia que tinha de provar àquela professora, que ainda vinha do Estado Novo, naquela escola super exigente onde ainda se usavam réguas e canas da índia, que merecia estar sentada naquela cadeira ao lado de meninos mais velhos do que eu. Isso ainda existe agora. Essa necessidade de prova.
É uma ética pessoal?
Eu não demonstro, mas sou muito insegura. E sou obsessiva. Lembro-me de um espectáculo na Malaposta, quando comecei a trabalhar, em que numa improvisação eu decorei o texto que tinha para dizer no espectáculo. E a Ana Nave, que estava a encenar, perguntou-me se eu achava que ia conseguir fazer isso durante dois meses. Quando tenho que decorar um texto, fico cheia de ansiedade se já tiver decorado dez páginas mas ainda não tiver conseguido decorar a última linha. Não me sinto bem, sinto que estou a falhar.
É essa a resposta pessoal que dá à noção de emancipação?
[Pausa] Sim. E talvez isso explique por que razão me fascinou a Madame Bovary. A maturidade com que hoje a leio permite-me entender a abordagem do Flaubert. Sem a minha história de vida, sem o meu percurso, não a saberia entender. E não me sinto minimizada por não ter lido o romance aos 20 anos e por ter achado, à primeira página, que me aborrecia. Ainda bem, porque tenho a frescura de o ter acabado de ler e de descobrir que hoje não posso condenar as paixões, as relações e a angústia daquela mulher. Mas há uma passagem que me incomoda. Depois de bater na filha, ela mente. Porque o faz? Se não mentisse eu perceberia que estava desorientada e era uma coisa de impulso. Mas há um princípio de racionalidade que a faz acreditar que, se mentir, se salvara si própria. Se ela nascesse hoje, a sua insatisfação seria permanente, era uma inadaptada.
As escolhas que fez são também modo de reagir a uma inadaptação. Como se, antes da imagem pública, houvesse uma responsabilidade pessoal.
É mais do que isso. Não consigo fazer teatro e televisão ao mesmo tempo. Não consigo sequer estar a ensaiar duas peças ao mesmo tempo. Não acredito que consiga estar nas coisas da mesma maneira. Admiro imenso quem o consegue fazer, mas eu percebi cedo que não conseguia porque não tenho essa capacidade de desligar os botões. Se me sinto insegura não vou para lado nenhum. Trabalho muito mal na insegurança. Nunca estive num grupo. Fui saltando de mão em mão até esta terra de ninguém onde me vão buscar quando precisam de mim. Não sou uma impulsionadora de projectos, sou alguém a quem se recorre.
Para pedir o quê?
[pausa] Modéstia à parte, sinto que o que ofereço é uma confiança generosa para com quem me dirige, independentemente de quem seja. Não quer dizer que não se criem empatias, ou que não se potencie qualquer coisa com um encenador que não existe com outro, ou que haja aqueles que não me interessam. Eu fiz opções, mas este percurso é uma meia-dádiva sem interesses. Às vezes a pergunta é mais em que mãos te vais colocar. Eu não sou uma actriz de impulsos, que vá à procura. São as pessoas que vêm ter comigo. Nunca construí uma imagem e isso também serve para a representação. Quando deixas de lado a capacidade de te surpreenderes, quando deixas de ver o lado humano de quem está a interpretar, quando é tudo artilhado, pensado e estruturado, deixa de me interessar. Tem tudo a ver com o que dás. Lembro-me de estar na Comuna e de um actor dizer que ficava muito incomodado comigo porque se via muito essa exposição. Mas como é que se trabalha sem ser dando tudo?