Graças e desgraças do Curtas Vila do Conde
Gabriel Abrantes e Anabela Moreira exploram, com cambiantes e resultados diferentes, abordagens humorísticas nos seus filmes a concurso em Vila do Conde.
O cinema de autor que se faz em Portugal não é necessariamente conhecido pelo seu sentido de humor, mesmo que ele exista e por vezes até esteja bem visível – não é preciso ir a João César Monteiro, basta considerar a produção de Miguel Gomes. Mas a verdade é que, quando pensamos na produção que viaja por festivais, parece haver uma aposta redobrada na sisudez, como se o humor não fosse suficientemente sério para ser usado. O concurso nacional do Curtas Vila do Conde é um exemplo perfeito dessa sisudez, repleto como está de filmes cujo percurso público, para o bem e para o mal, se vai esgotar nos festivais de cinema, e que parecem aceitar sem problemas esse destino sisudo.
Honra lhe seja feita, Gabriel Abrantes, o prolífico artista plástico tornado cineasta que se tornou numa das figuras mais mediáticas do cinema independente actual, tem ido precisamente na direcção oposta e explorado em muita da sua obra mais recente a dimensão piadética, fazendo colidir de modo propositado a atmosfera rarefeita da “arte com A grande” e a boçalidade rasteira do humor adolescente. Mas não o havia ainda feito com a precisão e a inspiração do filme que trouxe este ano ao concurso do Curtas, A Brief History of Princess X, que não faz outra coisa senão explicar à saciedade esse encontro improvável entre o sublime e o rasca, usando como pretexto a escultura de Marie Bonaparte que Constantin Brancusi poliu até restar apenas uma espécie de falo cromado e polido. A Brief History of Princess X funciona porque, por uma vez, Abrantes conseguiu eliminar toda a ganga pesadona e a necessidade de explicar à exaustão o que anda a fazer, reduzindo o seu gag à duração exacta (sete minutos de filme) e imprimindo-lhe a ligeireza e a velocidade que são essenciais para o humor funcionar.
É por aí que Anabela Moreira perde O Dia do Meu Casamento, uma quase-curta quase-média de meia hora, rodada com um método de documentário que reconhecemos das recentes experiências da actriz com João Canijo no díptico É o Amor/Obrigação e em Portugal, um Dia de Cada Vez, com o seu quê de “imersivo” na verdade de um Portugal profundo ao qual nunca se dá o olhar que ele merece. Aos poucos, contudo, O Dia do Meu Casamento revela-se como uma ficção cheia de piscadelas de olho (basta ver que é a própria realizadora no papel da noiva e que o co-realizador João Canijo e o montador João Braz também por lá andam a fazer de actores), com esse olhar imersivo a ganhar um travo amargo e claustrofóbico.
Coisa estranha para um filme de uma dupla habituamente tão certeira como Moreira e Canijo, não se sente aqui ternura de espécie nenhuma por estas personagens presas na repetição de um ritual, num contrato social no qual não se acredita verdadeiramente. E desde o patinho com que a menina joga como se fosse um brinquedo ao vestido de noiva que de repente parece estar demasiado apertado, passando pela maçada dos retratos às conversas de chacha e circunstância, o humor que nasceria do reconhecimento de situações que já todos observámos torna-se, através da redundância e da repetição que esticam o filme aos 30 minutos, em bílis ou purga catártica de uma pequenez à qual continuamos atavicamente presos. E a graça que O Dia do Meu Casamento pudesse ter torna-se muito rapidamente numa desgraça.