As luvas brancas que Pilar del Río traz calçadas enquanto arruma a biblioteca na Casa dos Bicos, em Lisboa, foram usadas por José Saramago numa cerimónia honoris causa. Nestes dias têm ajudado a presidenta da Fundação Saramago a transportar caixas, pendurar quadros e organizar papéis neste edifício quinhentista da Rua dos Bacalhoeiros, que durante os próximos seis anos vai albergar a sede da instituição fundada pelo Nobel da literatura português.
"Saramago usou-as durante uma cerimónia de um doutoramento honoris causa. Espero que a universidade não se importe... Ele não se importaria, porque estão a ser usadas para a sua obra", diz a viúva do escritor durante uma vista de jornalistas à casa que, em 2008, foi cedida à Fundação Saramago pela Câmara Municipal de Lisboa (CML) por dez anos. Ali decorrem os últimos preparativos para a abertura ao público, marcada para hoje.
A cerimónia oficial de inauguração realiza-se às 11h30, com a participação do presidente da CML, António Costa. Por constrangimentos de espaço, é destinada apenas a convidados e à comunicação social, mas a Fundação José Saramago abrirá as portas ao público à tarde, entre as 14h e as 16h.
Na cerimónia será apresentado um vídeo em que o autor de "História do Cerco de Lisboa" fala dos objectivos da fundação. Além dos discursos oficiais, falará o espanhol Fernando Gómez Aguilera, comissário da exposição "José Saramago. A Semente e os Frutos", que ocupa o primeiro andar da nova Casa dos Bicos, cujas obras de readaptação foram feitas pela dupla de arquitectos Manuel Vicente e João Santa-Rita.
A Casa dos Bicos, que tem uma importante jazida arqueológica a nível subterrâneo, abrirá todos os dias úteis das 10h às 18h e, aos sábados, das 10h às 14h. Em Junho, a entrada é grátis, depois passa a ser paga: o bilhete custará três euros para os portugueses e "entre cinco e seis euros" para os estrangeiros. A fundação vai viver dos direitos de autor da obra do escritor, que morreu a 18 de Junho de 2010, e do trabalho que se for fazendo nesta instituição, que assume como norma de conduta, nas suas actividades, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, e que tem por missão dar particular atenção aos problemas do meio ambiente e do aquecimento global do planeta.
"Não temos qualquer outro apoio oficial e os tempos estão difíceis para conseguir mecenato. Por isso, o público vai ter de pagar entrada", explica Pilar del Río.
Parte da biblioteca pessoal de Saramago está agora guardada neste edifício, e será possível aceder ao resto dos seus livros (o essencial continua na sua biblioteca em Lanzarote), a partir de equipamento electrónico. A Casa dos Bicos tem ainda disponíveis áreas de trabalho para investigadores que estejam a estudar e a organizar o espólio. No terceiro andar, além da biblioteca e do auditório existe um espaço dedicado ao político e ex-primeiro-ministro português Vasco Gonçalves (1922-2005).
A presidenta da fundação explica ao PÚBLICO que não irão existir outros espaços "porque José Saramago já não está cá para decidir, e também não caberiam mais". Saramago e Vasco Gonçalves eram amigos e o escritor respeitava muito o político e não queria que a sua biblioteca se dispersasse depois da sua morte. "Colaboraram juntos algum tempo, e José considerava-o um ser humano de uma qualidade extraordinária. Ele não queria que a biblioteca de Vasco Gonçalves - ainda por cima são os seus livros anotados - se dispersasse por respeito a um homem fundamental na revolução democrática e que foi muito mal interpretado por interesses muito concretos", afirma Pilar del Río.
No primeiro andar, Ana Saramago Matos, neta do escritor, está ocupada com os acabamentos da exposição "José Saramago: a Semente e os Frutos", que hoje abre ao público e que nasce da mostra "A Consistência dos Sonhos", que em 2008 esteve no Palácio de Ajuda em Lisboa, e também teve a curadoria de Fernando Gómez Aguilera, presidente da Fundação César Manrique, em Lanzarote. Essa exposição foi agora adaptada e ajustada ao espaço de exposições da Casa dos Bicos. A Semente retrata o início do percurso literário de Saramago, desde as suas origens na aldeia ribatejana da Azinhaga, com a evocação dos avós Josefa e Jerónimo, passando pelos anos de escrita jornalística e de militância cívica e política.
A máscara de BeethovenJosé Saramago costumava dizer que não se pode fazer nada sem se ter lido. Por isso a exposição inicia-se com as traduções que fez ao longo da sua vida, entre as quais a da obra "Ana Karenine". Os "frutos" referidos no título da exposição estão patentes nos manuscritos, nos livros em diferentes línguas e na consagração trazida pelo Nobel de 1998. A máscara branca de Beethoven de que se fala em Claraboia (Caminho) está pendurada na parede. Quando tinha vinte e tal anos, José Saramago passou por uma montra e viu uma máscara de Beethoven e não a comprou porque era cara. "O que é incrível é que aos setenta e tal anos Saramago foi a Bona, à cidade natal de Beethoven, encontrou a tal máscara e comprou-a", conta Pilar aos jornalistas entre as vitrinas com cadernos de notas, agendas em que o escritor organizava o dia-a-dia, cartas e fotografias com amigos de todo o mundo. Pode ver-se ainda a reconstituição do primeiro escritório onde Saramago escreveu, que era também um dos núcleos da exposição na Ajuda, e há equipamento de áudio com entrevistas, discursos e ainda vídeos. Tal como acontece na casa-museu em Lanzarote, a Casa dos Bicos tem uma loja onde os visitantes podem comprar livros de José Saramago em várias línguas e artigos com a marca da instituição.
A Fundação Saramago na Casa dos Bicos quer ser um centro emissor de ideias, debates, polémicas. "José Saramago dizia que escrevia para desassossegar. Nós estamos aqui para desassossegar também. Aquilo que as pessoas têm de encontrar aqui, e que temos de ser capazes de lhes dar, é o espírito de Saramago: nos papéis ou nos objectos que vão ver, mas também na dinâmica de trabalho e na programação que se faz", conclui Pilar del Río.
Notícia corrigida no dia 14/06 às 12h32, A Casa dos Bicos é um edifício quinhentista e não seiscentista