Família francesa encontra um provável Caravaggio no sótão

Há juízos desencontrados sobre a autoria da obra, mas se for mesmo a segunda versão que Caravaggio pintou da cena bíblica de Judite a decapitar Holofernes, o quadro, descoberto por acaso, pode valer pelo menos 120 milhões de euros.

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Eric Turquin diante da pintura Judite e Holofernes atribuída a Caravaggio
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A primeira versão de Judite e Holofernes, fotografada em 1999 numa expoisção em Bilbau
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Maria Madalena em Êxtase, de Caravaggio, também descoberta em 2014

Uma pintura de grandes dimensões mostrando a cena bíblica em que Judite decapita o general assírio Holofernes, encontrada em 2014 no sótão de uma moradia familiar nos arredores de Toulouse, no sul de França, pode ser da autoria de Michelangelo Merisi (1571-1610), mais conhecido como Caravaggio. Numa conferência de imprensa realizada esta terça-feira em Paris, o especialista em arte antiga Eric Turquin, que passou os últimos dois anos a investigar o quadro, defendeu que se trata de um genuíno Caravaggio e estima o valor da tela em cerca de 120 milhões de euros.

Se tiver razão, 2014 ficará para a história da arte como o ano em que subitamente reapareceram duas pinturas de Caravaggio perdidas há séculos, esta Judite e Holofernes, que continuaria perdida se uma infiltração de água não tivesse levado os proprietários da casa onde se encontrava a explorar um sótão que nem sabiam que existia, e a Maria Madalena em Êxtase, encontrada numa colecção privada europeia, e que pode agora ser vista na exposição Caravaggio e o seu tempo: amigos, rivais e inimigos, inaugurada em Março no Museu de Arte Ocidental de Tóquio.

Se Eric Turquin, que dirige um prestigiado gabinete de investigação, identificação e avaliação de arte antiga, tiver razão, trata-se de uma tela de Caravaggio que se tinha evaporado sem deixar rasto há 400 anos. O artista, considerado um dos fundadores do barroco, pintou duas versões da cena em que Judite, uma viúva judia, decapita o general de Nabucodonosor. A única que se julgava ter sobrevivido, realizada em Roma nos últimos anos do século XVI, está actualmente conservada na Galeria Nacional de Arte Antiga do Palazzo Barberini, na capital italiana.

A primeira menção conhecida a outra versão do quadro aparece numa carta escrita em 1607 pelo pintor flamengo Frans Pourbus, o Jovem (1569-1622), que diz ter visto essa pintura no estúdio de Louis Finson (1580-1617), que era simultaneamente um artista, muito influenciado por Caravaggio, e um negociante de arte. O testamento de Finson, de 1617, parece confirmar o que diz Pourbus, já que alude a duas obras do mestre que estariam nas suas mãos: esta Judite e Holofernes e a Virgem do Rosário. Para complicar um pouco a história, o próprio Finson pintou uma Judite e Holofernes ao estilo de Caravaggio, hoje depositada no palácio napolitano Zevallos. Como pintou também uma cópia de Maria Madalena em Êxtase.

A mais relevante objecção à tese de Turquin de que a tela descoberta em Toulouse é mesmo um Caravaggio vem de uma especialista, Mina Gregori, que está justamente convencida de que se trata de um trabalho de Finson. Considerada uma das grandes autoridades mundiais em Caravaggio, o juízo desta discípula e continuadora de Roberto Longhi não pode ser ignorado, e Turquin, na conferência de imprensa, fez questão de salientar respeitosamente que a nonagenária Gregori não partilha a sua convicção.

Uma discordância que se torna ainda mais significativa se recordarmos que foi Gregori que autenticou a Maria Madalena em Êxtase aparecida em 2014. Chamada a ver a obra na casa dos seus proprietários, contaria mais tarde que a tela foi posta no chão e que, ao ajoelhar-se para a ver melhor, bastou-lhe olhar para as mãos de Maria Madalena para perceber que não era mais uma cópia de outro artista da época, a juntar às oito que já eram conhecidas. “Quando lhe vi as mãos, disse: ‘Sim, é mesmo ela. Finalmente!’”.

O que ninguém contesta é a qualidade da obra, que se encontra em condições de conservação surpreendentemente boas, pese embora uma pequena mancha no lado direito provocada pela infiltração no telhado de Toulouse. E a ministra francesa da Cultura, Audrey Azoulay, já classificou a pintura como “tesouro nacional”, o que, de acordo com a lei francesa, impede a sua exportação durante 30 meses, permitindo ao Estado tentar reunir a verba necessária para eventualmente a vir a adquirir.

A explicação mais plausível para o estranho destino que levou este possível Caravaggio a um sótão de Toulouse, onde se julga que estaria a ganhar pó há uns 150 anos, é a de que o quadro teria sido trazido para França por um antepassado dos seus proprietários que foi militar e andou muito pelo estrangeiro, participando, como oficial, nas campanhas napoleónicas.

E Turquin não duvida de que foi a violência do tópico retratado que levou a que a pintura fosse relegada para a obscuridade do sótão. “Não é o género de quadro que se queira ter pendurado na sala de estar”, argumenta.

“Esta iluminação peculiar, esta energia típica de Caravaggio, sem correcções, com mão segura, e também os materiais pictóricos, dizem que esta tela é genuína”, afirmou o especialista francês na conferência de imprensa. E se Mina Gregori torce o nariz à autenticidade deste alegado Caravaggio, o especialista francês conseguiu um apoio de peso vindo do antigo director do Museu de Nápoles, Nicola Spinosa, também ele um dos grandes especialistas mundiais na obra do pintor de origem milanesa. “É preciso reconhecer na tela em causa um verdadeiro original do mestre lombardo, identificável com uma certeza quase absoluta, mesmo que não tenhamos nenhuma prova tangível e irrefutável”, escreveu Spinosa no seu parecer sobre o quadro.

Turquin está convencido de que a tela terá sido provavelmente pintada por Caravaggio já no século XVII, por volta de 1604 ou 1605, mas as datas são meramente hipotéticas, como o é o valor de 120 milhões de euros estimado pelo avaliador, que antes de se estabelecer por conta própria trabalhou durante quase vinte anos na Sotheby’s, tendo dirigido o departamento de quadros antigos da leiloeira londrina. Turquin acredita que a sua avaliação é prudente e que o quadro poderá atingir bastante mais caso venha a ser leiloado.

“Dois Rembrandt foram comprados por 80 milhões, e são pinturas fantásticas, mas os Rembrandt são muito menos raros”, diz Turquin, lembrando que o seu catálogo de obras inclui entre 350 e 400 pinturas, ao passo que não sobreviveram mais de 50 a 60 obras de Caravaggio. “Se se perde um Rembrandt, é uma pena, mas há a esperança de que se tenha outra oportunidade para comprar um, mas se se falha um Caravaggio, exclui-se logo a possibilidade de uma segunda chance”, observa Turquin.

A controvérsia em torno da autenticidade do quadro deverá prosseguir nos próximos meses, mas se a intuição de Turquin e Spinosa estiver certa, trata-se provavelmente da mais importante pintura antiga descoberta nas últimas décadas.  

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