Divine Comedy, um facada sublime
Em 5 minutos e 16 segundos, To the rescue, a sexta canção de Foreverland, dos Divine Comedy, dá cabo de todo o coração que se lhe atravesse no caminho.
Não se escolhe um futebolista por um vídeo com fintas no Youtube, não se acaba uma relação à conta da sms errada. Mas como ultrapassar isto? Isto, esta facada sublime, este dedinho masoquista a titilar a ferida, isto, estes 5 minutos e 16 segundos que To the rescue, a sexta canção de Foreverland, o mais recente álbum dos Divine Comedy, demora a dar cabo de todo o coração que se lhe atravesse no caminho.
Como explicar isto? São só palavras, caramba, mas que palavras: lidas com calma, revelam uma das mais ponderadas reflexões sobre a coisa amorosa alguma vez posta em canção; enleadas nesta voluta de cordas com os metais em fundo, são mais que isso, tornam-se um arrebatador hino à fé no amor, sem abdicar da maturidade e da contenção.
Como ultrapassar isto? É um milagre por canção: não é a melodia, não são os arranjos, não são as palavras, é a absurda elegância com que o pragmatismo se vai despindo até restar apenas a fé no amor, é a precisão com que cada arranjo sublinha a melodia. Desde o break de bateria que abre a canção que sabemos que não temos chances, vamos ser arrastados para este pequeno mundo em que o amor é tantas traições, tantas desilusões, tantos recomeços, tantas tentativas. E nada aqui condescende – o que aquele break de bateria nos diz é que a vida não pára, estamos já em andamento e a guitarrinha entra em contra-tempo ao cravo, um assomo de metais e estamos no refrão pasmados com as cordas a subir e a recuar e a subir de novo, porque não haveria beleza em subir se às vezes não se descesse, até que atingimos o ponto monumental da canção: “But I’ll march behind you/ Wherever you may go/ And I’m more proud of you/ Than you can ever know “.
Depois da sucessão de espalhos no cimento, este assomo romântico é a estocada de florete, a queda no colchão da cama. To the rescue (toda tristeza, toda perda, toda esperança) quase abafa um disco escrito sob influência de Gainsbourg, elegante, clássico, perfumado, que segue a tradição da torch song – um disco de arranjos extraordinários, seja na combinação de sinos, palmas, banjo e cordas da Gainsbourgeana Napoleon Complex ou nas cordas monumentais de Catherine the Great.
E é injusto para as restantes canções que To the rescue seja tão extraordinária, porque o acordeão que passeia por The pact merece atenção, os coros de I joined the Foreign Legion (to forget) devem ser elogiados e, caramba, não há muitos discos que abarquem tantos géneros, que usem tamanha instrumentação e nunca percam o bom gosto. Perdoem isto: queria descrever cada uma das cantigas mas não consigo, não me apetece, já não tenho idade para tretas: Foreverland é um belo disco mas To the rescue é extraordinária e estou a pensar em separar-me só para gostar ainda mais dela. É como se no sistema que Foreverland compõe as restantes cantigas fossem pequenos planetas em torno do Sol que é To the rescue. Numa simples metáfora, se Foreverland fosse o Barcelona To the rescue era o Messi. Vai para o cânone, mas mais importante que isso: nunca mais sai dos nossos corações.