Estado: Paredes de Coura está numa relação com Cage The Elephant
No dia que se imaginaria de ressaca depois da extraordinária série de concertos de quinta-feira, os americanos foram recebidos em Paredes de Coura como a maior banda do planeta. “O” concerto da noite pertenceu, porém, aos King Gizzard & The Lizard Wizard.
Entra apressado, com vontade de que a acção comece. “Este é o meu festival preferido em todo o mundo”, exlama o guitarrista Brad Shultz perante os gritos e aplausos e mais gritos do tanto público que aguardava os Cage The Elephant com a ansiedade sentida em concertos de estádio de outros tempos. Em 2014, os americanos subiram a palco no primeiro dia de Paredes de Coura, sem saber o que os esperava, e dali saíram de olhar esgazeado e sorrido espantado no rosto – “como é que isto nos foi acontecer?”. Dois anos depois, já sabem ao que vêm. Existe um lugar no mundo onde, aparentemente, os Cage The Elephant são a maior banda do mundo. Esse lugar é o Vodafone Paredes de Coura. Aqui se fizeram fenómeno, aqui foram recebidos como realeza rock na sexta-feira, penúltimo dia da edição 2016 do festival.
Depois da noite mais aguardada do festival, a dos extraordinários concertos de LCD Soundsystem, Thee Oh Sees e Sleaford Mods, imaginávamos que as seguintes fossem vividas em ressaca (sem dor, mas com ressaca). Imaginávamos mal. Criativamente, e em termos de arrojo musical, as comparações entre um dia e outro são desfavoráveis a sexta-feira. Mas a segunda e a terceira noites desta edição do festival estão equiparadas quanto à forma como Paredes de Coura recebeu os seus heróis privados (os Cage The Elephant) ou partilhados (os previsíveis e genéricos Vaccines do sucesso de estádio em terras britânicas).
Há uma rapariga a chorar copiosamente atrás de nós, lágrimas indiferentes à emoção das canções – chora nas baladas e chora nas rockalhadas. Há um guitarrista, Brad Shultz, que descerá vezes sem conta ao fosso para ser abraçado e beijado pelo público. Há esse público que parece saber as letras de todas as canções e que o demonstra cantando a plenos pulmões nos momentos em que o vocalista Matthew Shultz, irmão de Brad, se cala para ouvir o coro comunal. É oficial: Paredes de Coura está numa relaçao com os Cage The Elephant.
A banda do Kentucky é, na verdade, várias bandas ao mesmo tempo – constante é a energia olímpica do vocalista que não pára um segundo, que canta e corre palco fora como um Mick Jagger histriónico que se estivesse a borrifar para a coordenação dos movimentos com o ritmo da música. Numa canção, Aberdeen, deitam mão à distorção turbulenta dos Pixies, noutra, Ain’t no rest for the wicked, Brad encarna com convicção o tom e fraseado de Jack White. Num momento, pensemos em Cold cold cold, são uns Stones garageiros, no seguinte, aterremos no refrão de Telescope, arriscam aproximação a terrenos de David Bowie. Entre uns heterónimos e outros, surgem baladas rock guiadas por guitarra acústica para aquecer corações FM, como Cigarette daydreams. No final, os irmãos Schulz juntam-se ao crowdsurf em actividade intensa desde o início do concerto, a banda agradece comovida e prepara-se para seguir viagem – tinham um avião com destino à Polónia para apanhar em breve, explicou o teclista – até terras onde, arriscamos, serão apenas uma banda mais.
Até à eternidade
Ao longo de um dia em que a chuva não passou de ameaça matinal, ouvimos Kevin Morby, o ex-baixista dos Woods que trata com muito talento uma tradição americana que vai de Dylan a Cass McCombs. Vimos os Crocodiles, devotos do indie britânico da década de 1980, apesar da pinta rock’n’roll (e de serem americanos), porem toda a gente a cantar os parabéns ao baterista. Comprovámos, no palco Vodafone FM, como o público de Paredes de Coura está também numa óptima relação com a boa música (muita e muito variada) que faz o presente português (enchentes para First Breath After Coma e Sean Riley & The Slowriders). Viajámos com o psicadelismo shoegaze dos americano Psychic Hills e encontrámos refúgio sonhador com Jacco Gardner, holandês actualmente cidadão de Lisboa, e as suas canções feitas delicioso escapismo para um mundo de fantasia.
Antes de Cage The Elephant, no palco principal, estiveram os Vaccines, que perdida a chama inicial, são hoje banda corriqueira do cenário britânico, mais uns descendentes, “turbinados” para as massas, dos já longínquos Libertines. Antes deles, porém, chegaram dos antípodas uns inexplicavelmente baptizados King Gizzard & The Lizard Wizard que assinaram “o” concerto do penúltimo dia de festival.
Nonagon Infinity, o último álbum, foi criado para ser um disco virtualmente infinito: sem pausas entre canções e com a última a ligar-se directamente à primeira – utilizando a função repeat, poderíamos deixá-lo a tocar para toda a eternidade. Essa ideia foi transportada magistralmente para o palco de Paredes de Coura. Em palco são sete, incluindo dois bateristas, tal como os Thee Oh Sees no dia anterior (marca da edição 2016 do festival: dois bateristas equivalem a grandes concertos).
Os sete anunciam-se: “Nonagon infinity open the door”. As portas abriram-se realmente. Demorariam 25 minutos até que se registasse uma pausa naquele ritmo diabólico que leva a multidão no anfiteatro, quer os conhecedores, quer quem não fazia ideia de quem eram aqueles australianos, a reagir com headbanging feliz e dança descontrolada.
Músicos talentosos, mostram ao mesmo tempo precisão de cientista e abandono de poeta repentista. Uma viagem frenética que, num momento, nos oferece riffalhada Black Sabbath, no seguinte nos instala num salão de chá britânico na Cantuária (e eis o vocalista Stu McKenzie a sacar da flauta transversal). Quando damos por ela já fomos sujeitos à marcha hipnótica da motorika e não demorará muito até sermos teletransportados para os Estados Unidos do blues-rock movido a harmónica. Sem pausas, saltamos das canções de Nonagon Inifinity para as de I’m In Your Mind Fuzz. Sem pausas, enxertam-se pedaços de canções noutras que surgiram entretanto, qual sample orgânico criado por banda completa, e tudo se mistura num fluxo contínuo de som. Chegamos ao fim que é o princípio: “Nonagon infinity open the door”. Concerto rock’n’roll impressionante. Concerto como instalação primorosa. Da Austrália, com fervor, no penúltimo dia de Paredes de Coura.
Às duas de manhã, abriu-se a pista de dança com a banda de Moullinex, máquina rítmica afinadíssima, e o povo do festival reuniu-se no palco Vodafone FM. Comentariam, nas pausas que a música permitisse, tudo o que já se tinha passado em Paredes de Coura e antecipariam o que está para vir. O festival termina este sábado com CHVRCHES, Portugal. The Man ou Capitão Fausto como destaques.