“Mari condensa toda a Mesopotâmia e imaginá-la destruída é muito triste”
Jean-Claude Margueron dedicou-se ao estudo da Mesopotâmia e dirigiu escavações na antiga Mari, na Síria, durante 25 anos. Apaixonou-se pelo deserto e pelo Eufrates na sua primeira viagem e nunca deixou de regressar. Nesta entrevista fala das cidades na Antiguidade e de como um ataque à arqueologia no Médio Oriente é um ataque universal, uma catástrofe.
De uma energia que parece inesgotável, Margueron, um dos mais respeitados académicos que se dedicam ao estudo das sociedades que gravitaram em torno dos rios Tigre e Eufrates, está hoje oficialmente reformado, mas isso não o impede de continuar a escrever sobre a Mesopotâmia e a ensinar na École Pratique des Hautes Études, em Paris.
No colóquio de Lisboa, o historiador falou dos lugares de poder na Mesopotâmia, de como são difíceis de identificar. E, para o fazer, foi lançando perguntas como “O que é um palácio?” e “O que é que o distingue de um templo se usa os mesmos dispositivos e se nele o rei se faz adorar como um deus?” Os lugares de poder, explicou, não são fáceis de definir em arqueologia, nem mesmo quando se cruza a informação que nos dá a arquitectura com fontes documentais, e na Mesopotâmia evoluem à medida que as próprias cidades se transformam, assim como o papel do rei enquanto líder político e militar.
Mari, a actual Tell Hariri síria, a 15 quilómetros da fronteira com o Iraque, foi uma importante metrópole do Eufrates médio e é escavada por arqueólogos franceses desde 1934. Foi o primeiro director de escavações, André Parrot, que levou pela primeira vez Jean-Claude Margueron para o Médio Oriente e para o deserto. Sabê-la hoje ameaçada pela guerra e em parte destruída é para o historiador francês “devastador”.
Como é que Mari aparece no seu percurso?
Eu tinha 13 anos e estava de férias numa pequena ilha, na praia. Havia mais duas famílias para além da minha e uma delas era a de André Parrot. Foi assim que o conheci e brinquei com os seus filhos. Fiquei a saber o que fazia pelas conversas dos adultos. A princípio, claro, ele não se interessou nada por mim, mesmo nada. Só passou a interessar-se quando percebeu que eu ia assistir às suas conferências e que tinha decidido fazer do Oriente a minha vida. Foi aí que Parrot me perguntou se estava interessado em acompanhá-lo na campanha seguinte de escavações. Bom, era uma aventura: viajar para descobrir o Oriente aos 19 era tudo o que eu queria. O meu pai só aceitou quando lhe expliquei que precisava de ir para ter a certeza de que era aquilo que queria fazer com a minha vida – e era.
Qual é a imagem que guarda dessa primeira viagem?
A da chegada. É um cenário impressionante, mesmo sem construções espectaculares em efeito. Houve um fascínio pelo sítio, mas também pelo Oriente, pelo deserto, pelo vale do Eufrates. Havia ali um mundo natural que, apesar de transformado, estava ainda muito próximo da Antiguidade. E havia também aquela imensa ruína capaz de produzir palácios, templos, estátuas… Uma cidade desaparecida que encerrava um mundo inteiro, toda uma sociedade.
O que é que faz dela uma cidade singular no contexto da Mesopotâmia? Muitos ouviram já falar de Babilónia mas serão poucos os que sabem o que é Mari ou onde fica…
A Babilónia é um monstro que não existe, um mito, ao passo que Mari é verdadeira, é uma cidade em que se pode fazer História. E eu sou um historiador, não vivo no mito. O que me interessa é saber como se vivia ali, nas margens do Eufrates, há cinco mil anos. O que me apaixona no trabalho que faço é a possibilidade de pôr em evidência as características da primeira sociedade urbana, da primeira civilização urbana. Antes de Mari isso não existe.
Mari é a primeira cidade?
Não, mas é uma das mais antigas. É difícil identificar a primeira, mas é do quarto milénio a.C., e Mari é do princípio do terceiro.
Porque é que o homem sentiu necessidade de construir cidades?
Porque a vida se tornou mais complexa, exigia mais organização, e ele percebeu que, se queria que as suas construções durassem – falamos de construções em tijolo cru, difícil de preservar num território sujeito a cheias - era preciso criar um meio urbano harmonioso. E nesse meio urbano as cidades nascem com ruas radiais e canais que as atravessam ou canais periféricos. Mari é certamente uma das primeiras cidades em meio urbano.
O que é que isso quer dizer?
Quer dizer que não está sozinha, que funciona em rede com outras cidades ligadas por canais e rotas. Mari é uma grande cidade logo no momento da fundação [as escavações mostram três níveis de ocupação, mas sempre com cidades] porque ela controla a rota do cobre e de outros metais que vem da Anatólia e se dirige para a Babilónia. Ela assegura, para seu benefício, o transporte e até a transformação e venda destes materiais. Nela a metalurgia do cobre e do bronze é decisiva. Mari é um dos sítios que melhor nos permitem compreender a civilização do Próximo Oriente desta época.
E porquê?
Porque há muitas coisas bem conservadas. Além disso foi um lugar rico, com recursos, escavado de forma sistemática desde 1934 - houve mais de 40 campanhas em Mari. É claro que os arqueólogos não fizeram as coisas da mesma maneira…
A arqueologia no período colonial era orientada para o objecto…
Claro. No princípio escavou-se sem parar à procura de peças de grande espectacularidade e depois, na segunda metade do século XX, foi-se caminhando para uma arqueologia mais precisa, rigorosa, que fazia depender a linha de investigação das descobertas no terreno. Um exemplo: em 2000 descobri que as ruas eram feitas de uma combinação de materiais que permitia a absorção muito rápida da água das chuvas, impedindo a formação de poças e de lama. Mas fiz esta constatação escavando apenas uma rua. No ano seguinte, escavámos todas as que tínhamos já identificado à procura da mesma combinação de materiais, isto para que uma descoberta não se esgote nela mesma, para que sirva para ampliar o conhecimento.
Sendo tão importante, porque é que Mari é menos conhecida do que outras grandes cidades do vale do Tigre e do Eufrates? E aqui voltamos à Babilónia…
Não creio que seja. As pessoas não conhecem a verdadeira Babilónia, conhecem as diversas versões ficcionadas, mágicas…
Que Babilónia é essa?
Quando falamos da Babilónia há que considerar várias babilónias. Há a da Bíblia, com toda a sua ambiguidade, que a mostra ora como a grande cidade, ora como, desculpe o termo, a puta. Depois há o interesse que por ela demonstra Alexandre,
o Grande, que tinha a intenção de a transformar na capital do seu império, mostrando que, no tempo de Alexandre [356-323 a.C.], não é o mundo grego que aparece como modelo, e também não é o Egipto, é a Babilónia. E, por fim, o mito criado pelos arqueólogos alemães, que a vêem como um projecto de império.
Qual império?
Um império figurado. A Alemanha tinha de ter uma grande capital para mostrar em Berlim, como se de um programa político se tratasse e não de investigação científica. E a Babilónia foi essa capital [grande parte dos artefactos encontrados, incluindo a célebre Porta de Ishtar, estão no Museu Pergamon, na capital alemã]. Os arqueólogos alemães fizeram na Babilónia uma coisa única – escavaram em permanência durante 17 anos. Escavaram todos os dias até serem expulsos pelos ingleses. Hoje sabemos que este método é totalmente desaconselhado porque acaba por andar depressa demais, não deixa que o arqueólogo ganhe distância das descobertas e reflicta sobre elas. É uma abordagem totalmente imbecil.
Qual era a relação entre Mari e a Babilónia? Elas estão na mesma rota de comércio, mas com funções diferentes, imagino…
Essa é uma questão muito interessante. Mari situa-se na rota do Eufrates, vinda da Anatólia, numa zona de confluência absolutamente estratégia. Ora, o rio continua e, mais à frente, aparece a Babilónia, que também é construída sobre o Eufrates. Muitas pessoas pensam que a Babilónia é que era a grande cidade, e isto mesmo historiadores que trabalharam sobre Mari, mas que não vêem as coisas como eu as vejo. Ora, Mari não estava sob o controlo da Babilónia. Tenho a certeza, de acordo com informação histórico-geográfica, que no terceiro milénico a.C. Mari é dominante e a Babilónia só muito lentamente começa a ganhar espaço ao ponto de, no começo do segundo milénio a.C., fundar um império e esmagar Mari. Isto é feito com Hammurabi – quando ele desaparece, desaparece o império. É preciso esperar pelo primeiro milénio a.C., com Nabucodonosor e durante apenas 60 anos, para que a Babilónia se transforme de novo num império. Quando pensamos no assunto chegamos à conclusão que não é muito… É por isso que, quando reflicto sobre a natureza dos impérios, sobre os reis que por lá passaram e quanto tempo durou o seu domínio, não posso deixar de defender que é Mari que é superior à Babilónia, mesmo que tenha havido momentos em que a segunda foi incontestavelmente mais forte do que a primeira. Mari é, sem dúvida, a grande cidade do terceiro milénio da Mesopotâmia do Norte.
Nessa época temos de dividir a Mesopotâmia?
Sim, temos. A do Norte tem Mari como centro e a do Sul, depois de Uruk, tem Ur.
Há muitas diferenças entre o Norte e o Sul?
Grosso modo, os elementos fundamentais são os mesmos, com pequenas diferenças regionais. Ur é uma cidade circular como Mari, que tem canais como Mari, e que foi fundada sobre o comércio como Mari.
Se Mari era assim tão importante porque é que nunca foi o centro de um império, como a Babilónia?
Porque Mari baseia a sua força no comércio. A Babilónia é uma cidade fundada para criar uma junção onde os dois ramos da Mesopotâmia – os rios Tigre e Eufrates – estão o mais próximo possível antes de se separarem de novo. A Babilónia é construída aí para assegurar a ligação à rede do Tigre. É a esta função de cruzamento de geografias que a Babilónia vai buscar a sua força e não apenas ao comércio. E é esta posição de encruzilhada que dá à Babilónia um papel extremamente importante.
Escavou em Mari durante 25 anos. Qual foi a descoberta que mais o fascinou?
É muito difícil de dizer e eu explico porquê: eu não encontrei estátuas nem fundações mirabolantes, como Parrot, concentrei-me nos factos do dia-a-dia. Por causa da arquitectura, foquei-me nas habitações, nos palácios, nos templos, no conjunto das estruturas urbanas. Eu andei à procura da vida do quotidiano e não de episódios extraordinários. É claro que, se tivesse encontrado estátuas teria dito “muito bem” e não me passaria pela cabeça atirá-las ao Eufrates, mas não encontrei. Isto não significa que não tenha encontrado coisas apaixonantes…
Como por exemplo…
Há um momento particularmente importante – aquele em que percebi que as ruas de Mari eram feitas de um material que permitia escoar as águas. E isto há cinco mil anos. É preciso um pensamento coerente para pôr de pé uma cidade em arquitectura de terra em que isto acontece. E é preciso também um conhecimento técnico apuradíssimo. Foi quando comecei a relacionar uma série de elementos que me eram dados pela arquitectura que senti que tinha chegado à estrutura urbana de Mari. Não se tratava de identificar as ruas dispostas em estrela, embora isso fizesse parte, tratava-se de constatar que a cidade dependia de uma tecnologia extraordinária e, até à data, desconhecida. Foi uma descoberta incrível – não é tão
sexy como a estátua de uma divindade, mas traz-nos muito mais conhecimento.
Qual foi a principal dificuldade que encontrou ao trabalhar em Mari? A arquitectura em terra é muito difícil de conservar…
Uma das coisas mais difíceis foi garantir que o que era descoberto não se deteriorava, precisamente. Sabia o que Parrot tinha escavado e o que tinha encontrado, mas também queria fazer coisas novas.
Que coisas?
Uma leitura estatigráfica do terreno, que Parrot nunca fizera, por exemplo.
O que é que nos dá a estratigrafia?
Uma leitura das fases de ocupação daquele território. Se for bem feita, mostra-nos como é que a vida evoluiu naquele lugar, como se transformou.
Quando se fala da Mesopotâmia é muito comum vê-la descrita como uma terra de transformações e até de revoluções. A da escrita, a da administração, a do urbanismo… A partir de Mari, qual destas revoluções é mais evidente?
É muito difícil de responder. Temos sempre tendência a sobrevalorizar as descobertas que fazemos, sem as relativizar por comparação às dos outros. Um exemplo: quando encontrei o grande espaço central do palácio da primeira cidade de Mari [Ville 1], uma sala com 16 metros de lado que deveria ter sido coberta sem que tivesse quaisquer colunas, uma proeza técnica assinalável, fiquei estupefacto e disse para comigo mesmo: “Esta gente de Mari era, efectivamente, a melhor…” Acreditava, nessa altura, e cheguei a escrevê-lo, que ninguém noutro ponto da Mesopotâmia tinha sido capaz de tal coisa. Pois enganei-me redondamente. Pouco tempo depois, analisei as plantas de uma outra cidade – Kish [fundada por volta de 2500 a.C., a pouco mais de 10 quilómetros da Babilónia] – e percebi que, para a mesma época, este centro na Mesopotâmia central também tinha espaços cobertos com 16 metros de largo. Mari não estava sozinha, era simplesmente o reflexo de um saber fazer generalizado, e isto muda tudo porque compreendemos que estamos perante um fenómeno de civilização e não perante algo excepcional.
É por isso que Mari representa uma grande oportunidade para um arqueólogo - permite-nos ler o que a civilização mesopotâmica teve de melhor, embora nada nela seja único. Quanto à escrita, em Mari não sabemos praticamente nada a não ser que, certamente, houve logo desde o início. Não encontrámos textos muito antigos mas eu defendo que, se Mari foi desde logo uma cidade comercial, não podia existir sem escrita. Deu-nos muitos documentos, mas nada específico. Mas foi em Mari que pude ver, pela primeira vez, como nascia uma cidade na Mesopotâmia.
Como?
Quando analisei a morfologia da cidade cheguei à conclusão que tinha sido criada artificialmente e que não tinha começado, como alguns historiadores pensavam até aí, como uma pequena aldeia. Eu escavei muito e não encontrei aldeia nenhuma. E aí comecei a interrogar-me: Será que Mari é caso único? Apercebi-me, então, que quando temos uma cidade circular como Mari é impossível que seja construída sobre as ruínas de uma aldeia.
Porquê?
É preciso ter um plano horizontal limpo em que possamos traçar uma rede de linhas que nos permitam formar um círculo. É preciso um projecto definido. Há quem não acredite nesta teoria, mas eu defendo que, caso tenha havido algo anterior a Mari, foi arrasado para que a cidade como a conhecemos fosse construída.
Mari e as outras cidades semelhantes também não poderiam ter sido construídas sem um programa hidrológico preciso – era preciso eliminar com regularidade as águas da chuva. A cidade era atravessada por um canal que recebia estas águas e as fazia desaparecer. Todo o urbanismo na Mesopotâmia se apoia neste princípio. Ninguém conseguiria construir uma cidade em arquitectura de terra sobre ruínas em arquitectura de terra e sem que houvesse um sistema eficaz de eliminação das águas das chuvas.
É por causa de conclusões como esta que diz que a cidade é riquíssima…
Sim, claro. É riquíssima em informação. Foi com ela que aprendi quais são os elementos fundamentais que faziam uma cidade na Mesopotâmia – e uma cidade na Mesopotâmia é uma primeira cidade em todo o mundo. Não são os palácios, não são os templos, é o conjunto, o projecto urbanístico, o pensamento que permite que ele nasça.
Fala em primeiras cidades… A Mesopotâmia tem muito mais a ver connosco do que o Egipto, em que não conhecemos a organização urbana, mas a maioria das pessoas ignora a sua importância para a civilização ocidental e tem um certo fascínio pela herança egípcia…
É um erro dos nossos antepassados e dos nossos historiadores [risos]. É claro que o Egipto é fascinante por causa do esoterismo: há os mortos, as pinturas riquíssimas nos túmulos… Mas, quando ouvimos a maioria das pessoas falar do Egipto, é com grande exotismo, como se fosse um mundo muitíssimo diferente do nosso. É uma visão totalmente falsa. O Egipto é mais do que o Livro dos Mortos e é preciso pensá-lo como um todo. A Mesopotâmia é tão ou mais importante do que o Egipto, mas menos conhecida. Bom, se teve alguma fama, foi com Alexandre e a Babilónia e essa, como já vimos, é uma visão desviante…
Como podemos, então, defini-la em bom rigor?
A Mesopotâmia é um istmo – de um lado tem o Mediterrâneo e do outro o Golfo Arábico-Pérsico. Depois tem os rios Tigre e Eufrates, que vêm da Anatólia para desaguarem no golfo. Foram os dois rios, com a possibilidade de transporte que oferecem, que criaram as condições para o desenvolvimento da civilização mesopotâmica. Ela começa a formar-se no fim do neolítico, grosso modo no sexto/quinto milénio a.C., mas existe realmente a partir do quarto milénio a.C., com Uruk e, sem dúvida, as primeiras cidades. Estas cidades nascem do comércio e não vivem sozinhas.
A civilização mesopotâmica funda-se pelo transporte de mercadorias através de uma rede hidrológica. Progressivamente o istmo transforma-se num espaço de trocas e de transformação de mercadorias do Norte para o Sul e também no sentido inverso. Foi a água que fez tudo isto graças a um esforço de domesticação dos rios, um trabalho longo e gigantesco.
É muito interessante que nos venham dizer que a filosofia grega criou tudo… Nada mais falso! É certo que os gregos vieram depois e trouxeram essa mesma filosofia e tantas outras coisas que admiro, mas não podemos dizer que o mundo ocidental nasceu na Grécia. É um erro histórico fenomenal – a história do Ocidente começa na Mesopotâmia.
É por isso que a destruição a que hoje se assiste nos vídeos propaganda do autoproclamado Estado Islâmico - a acreditarmos que ela de facto ocorreu – é tão preocupante…
Fico estupefacto. Sabemos que eles não vão destruir tudo, mas que já destruíram coisas que deveríamos ter sido capazes de proteger. Agora o mais urgente é documentar: fazer vídeos, trabalhos teóricos e de conservação no que ainda existe. Temos um projecto para fazer um levantamento rigoroso em imagens do palácio de Mari. Quero que se torne vivo na imaginação das pessoas. Não sei como proteger Mari ou outros sítios arqueológicos de futuros ataques sem ser através de dispositivos que nos permitam eternizá-los na nossa cabeça. Se não somos capazes de os conservar no terreno – infelizmente não somos e os últimos tempos têm mostrado isso – temos de os conservar na memória.
Não há outra maneira?
Se há não sei qual é. Temos de continuar a trabalhar sobre Mari e sobre todas estas cidades fabulosas de uma civilização também ela fabulosa. É preciso perpetuar tudo o que é histórico e rigoroso, é preciso não insistir nos mitos nem nos fantasmas.
Mari também foi incluída nestes raides de destruição dos extremistas islâmicos? Não vi qualquer notícia a respeito…
Vi imagens de satélite de Mari – é de bater com a cabeça nas paredes… Pensar que algumas das pessoas que trabalharam connosco nas escavações, que viram o cuidado com que lidámos com cada peça, com cada descoberta, estão agora entre os que foram capazes de arrasar estruturas em Mari é muito doloroso. Inaceitável. Ali está condensada toda a Mesopotâmia e é por isso que imaginá-la destruída é simplesmente muito triste, devastador. Ainda não vimos aparecer objectos no mercado, mas isso não é estranho porque nas escavações dos últimos anos não encontrámos praticamente nenhuns artefactos. Mas estes sítios são uma tentação permanente. E com quatro anos de guerra... É uma catástrofe.
O que é que falta descobrir em Mari?
Tanta, tanta coisa. Mari foi a minha vida, mas deixei muito por encontrar. Gostaria que a próxima geração tivesse uma atitude responsável e que não escavasse para encontrar objectos, mas para encontrar uma civilização. A terra tem muitas memórias, mas lembra-se apenas de excertos – a terra não guarda o todo.
Chamei ao meu último livro Cidades Invisíveis precisamente porque eu não posso escavar e encontrar uma cidade inteira, mas posso identificar vestígios, pistas. E é sobre estes traços que eu posso construir as minhas interpretações, as minhas cidades.