VHILS: do futurismo de Hong Kong à memória industrial do Barreiro
Com Alexandre Farto viaja-se pelo mundo. Estamos num táxi em Hong Kong, onde apresenta nova exposição, e fala-nos de Paris, do Rio, de Xangai, de Moscovo, de Londres, de Bogóta, da Cidade do México ou de Los Angeles. E no entanto sente-se que nunca saímos da margem Sul de quando ele era puto.
Há pouco mais de duas décadas, quando miúdo, a viagem de barco do Seixal para Lisboa constituía uma aventura para ele. Atravessar o Tejo era aceder a outro mundo. O Seixal ainda possuía traços de ruralidade. Quando chegava ao Terreiro do Paço surpreendia-o o corrupio humano e nos Restauradores maravilhava-se com os néons no topo de alguns edifícios.
Na actualidade, aos 29 anos, tudo mudou para Alexandre Farto, ou seja VHILS. Nos últimos dez anos deixou o seu trabalho inscrito por todos os continentes, transformando-se num dos artistas portugueses de maior circulação internacional. O seu universo expandiu-se. Até o cosmos tem a sua assinatura, através de uma instalação na Estação Espacial Internacional. Mas o fascínio continua a ser o mesmo de sempre.
Cativa-o os contextos urbanos, as grandes transformações, a passagem do tempo, o antes e o depois, os modelos de desenvolvimento globais na sua relação dinâmica com as identidades locais ou as conexões de interdependência entre pessoas e o ambiente que as rodeia. É verdade que assistiu a tudo isso, no Seixal, onde nasceu, em Lisboa, onde se movimentou, em Londres, onde estudou, ou em tantas outras urbes por onde tem andado. Mas em Hong Kong dir-se-ia que todas essas dimensões são conduzidas ao extremo. É difícil imaginar outro território exposto a transmutações tão constantes e aceleradas como a ex-colónia britânica, que é desde 1997 uma Região Administrativa Especial da China.
Quando a Fundação de Arte Contemporânea de Hong Kong (HOCA) o convidou a desenvolver ali um projecto de intervenções no espaço público e a feitura de uma exposição, aceitou. “A HOCA já tinha desenvolvido projectos dentro do mesmo âmbito com outros artistas, como os franceses JR e Invader, e quando me propuseram o mesmo, fiquei satisfeito”, diz-nos ele. “Já tinha vindo várias vezes aqui em trabalho e sempre foi uma cidade que me interessou pelas dualidades, entre o caos urbano e o impacto da natureza, que é uma dimensão que as pessoas em geral não associam muito à vida aqui. Via-me exposto a tudo isto e inclusive a viver aqui. Já tinha trabalhado também em Xangai e a Ásia sempre me interessou.”
Repulsa e fascínio
Agora Hong Kong é uma espécie de segunda casa. E assim irá continuar a ser nos próximos anos. Há muitos projectos em marcha e a aposta asiática é para continuar. “O mundo da arte contemporânea aqui ainda não tem alicerces sólidos”, diz, “mas ao mesmo tempo sente-se que é um local receptivo, onde tudo é possível, e isso é também excitante.”
Falamos com ele no interior do seu estúdio em Hong Kong, na área de Aberdeen, longe do centro onde vive, numa zona ainda relativamente barata numa das cidades onde o preço médio por metro quadrado faz dela uma das mais caras do mundo. “Estás a ver aquelas obras?”, aponta, “estão ali a construir um estação de metro gigante. Quando estiver concluída toda esta zona vai sofrer uma enorme revolução, com muitos habitantes, inclusive alguns artistas locais, a terem de mudar-se para sítios bem mais baratos.”
É a lei do capital num dos principais centros financeiros do mundo. Hong Kong, cidade vertical, metrópole excessiva, onde é fácil encadearmo-nos pelo brilho dos néons, pelos viadutos, pelo imaginário futurista, pelo frenesim humano dia e noite, ou pelo poder que emanam alguns dos maiores edifícios do mundo, é também terreno de perplexidades. Atrás dos arranha-céus, nas vielas e becos, encontram-se os detritos do capitalismo, a comida que sobrou, as ratazanas que vagueiam, o papelão abandonado ou os espaços de refeições improvisados longe do figurino turístico.
“É verdade”, concorda, falando de forma pausada dos paradoxos do nosso tempo, de olhos brilhantes generosos, longe do rosto fechado que muitas das suas fotos difundem, assumindo que mais do que carregar nas feridas, interessa-lhe criar espaços de reflexão. “Tendemos a olhar para a frente espelhada dos edifícios e esquecemos a sua sombra. Tem a ver com a imagem que se quer projectar e aquilo que se é realmente. Estas cidades podem ser extremamente eficientes aos mais diversos níveis, mas no longo prazo também podem promover o desenraizamento. Talvez seja o preço a pagar por essa noção de desenvolvimento, mas é bom que tenhamos consciência que quando se cria também se destrói inevitavelmente. E não sei se nestas cidades alvo de mudanças aceleradas essa noção existe.”
Tem uma relação dual com as grandes urbes, misto de repulsa e fascínio. E uma enorme vontade em compreender. É neste território que desde o final de 2014 tem vindo a operar. “É uma cidade que requer tempo”, justifica, “é por isso que decidi que tinha de fazer uma residência, apesar de este ano não ter estado aqui o tempo todo por causa de outras solicitações.”
Foi neste contexto que a semana passada inaugurou a exposição Debris, a sua maior depois de Dissecção, que esteve patente no Museu da Electricidade em Lisboa em 2014 e que viria a tornar-se num êxito de visitantes. Com curadoria da americana Lauren Every-Wortman, da Fundação HOCA, tem em Hong Kong apenas a jornada inicial, já que vai viajar pelo globo nos próximos anos – Portugal por enquanto está fora desse roteiro, mas ainda nada está finalizado. No dia em que falamos com Alexandre ainda estava de ressaca pelo esforço das últimas semanas.
Olhar a cidade de outra maneira
Foram vários dias quase sem dormir para que ele e os colaboradores tivessem tudo pronto na inauguração. Disposta no topo do Cais 4 da Estação de Barcos da cidade, a estrutura semi-descoberta que acolhe a exposição, da autoria do arquitecto António Pedro Louro, com design dos Pedrita, só foi ultimada quase em cima da hora. Para agravar a situação a cidade esteve submetida ao piores dias de Inverno das últimas décadas.
Mas há hora marcada nada falhou. Pensada para inaugurar na mesma altura em que se realiza a importante Art Basel de Hong Kong, um público transnacional acudiu ao evento, dividindo-se pelas salas da estrutura, numa experiência que tem pontos de ligação temáticos, mas também diferenças, ao nível das técnicas e dos materiais, com a retrospectiva de há dois anos.
Ao longo dos últimos anos tem desenvolvido uma linguagem singular, baseada na remoção de camadas das superfícies de paredes ou de outros materiais, utilizando ferramentas e técnicas não convencionais, estabelecendo reflexões simbólicas sobre as cidades, tentando dessa forma criar um diálogo entre as noções de identidade humana e espaço urbano.
À entrada de Debris o visitante é convidado a percorrer um túnel com vídeos de ecrãs de grandes dimensões a ladeá-lo. São imagens em câmara-lenta que suspendem o tempo. Enquanto os outros dispositivos exploram o ruído da comunicação visual da cidade, expressando a diluição do individuo na sua relação com o espaço, o vídeo convida o espectador a focar-se nos instantes do quotidiano que podem encerrar beleza. “Queria fazer qualquer coisa que funcionasse como contraponto ao frenesim de Hong Kong, que é uma cidade fotogénica, mas raramente olhada com distanciamento”, explica.
“Queria acalmar o passo, tornando o invisível, visível, com a câmara lenta, através da filmagens com Vasco Viana – que é o director de fotografia de João Salaviza – que também veio comigo.” Nos últimos tempos já havia experimentado algumas dessas técnicas nos videoclips (U2, Buraka, Carlão, Orelha Negra), quase como criasse fotos em movimento, mas ali esse efeito é ampliado num convite para olhar a cidade de outra maneira.
Uma solicitação presente também nos stencils perfurados como se fossem um filme impresso várias vezes. Nas construções de esferovite que dão conta da concentração urbana. Nas peças criadas a partir de objectos recuperados (cartazes de papel ou portas de madeira) ou nas serigrafias subvertidas e nas composições em metal. Há soluções que nos fazem contactar com os desperdícios da urbe e com os seus ciclos de destruição e criação, com a dissecação das superfícies materiais a desvendarem o rosto de pessoas, numa celebração da relação entre a metrópole e os seus habitantes.
Uma das peças mais simbólicas encontra-se no exterior, uma escultura de néons, com os edifícios da península de Kowloon em fundo. “Todos os materiais, bem como todas as reflexões desencadeadas, partiram daqui, neste espaço e tempo. Era inevitável utilizar os néons em algumas peças, porque fazem parte do imaginário daqui”, justifica, evocando os filmes de Wong Kar-wai dos anos1990 como tendo sido relevantes para ele.
Curiosamente os néons desse tempo estão em vias de extinção, substituídos por modelos padronizados. “Daqui a dez anos é provável que a técnica utilizada na feitura da peça que está no exterior já não exista. Os mestres que a trabalham estão sem trabalho hoje. Não foi nada fácil encontrar um, mas por fim lá conseguimos encontrar alguém que trabalhou naquilo a vida inteira e, apesar de algumas reticências iniciais, acabou por criar as tubagens e a partir daí conseguimos conceber tudo o resto.”
Quando se fala com ele fica nítido que o seu trabalho tem contornos colectivos. Raramente fala na primeira pessoa. A sua acção só é possível em regime de colaboração e ele sabe-o. Que o diga Tiago Silva, com ele em Hong Kong há um ano, acompanhando-o na aventura asiática.
“Tem sido uma experiência intensa vir para aqui abrir o estúdio, para criar as condições de feitura de tudo, e ao mesmo tempo preparar a exposição, contactando fábricas para a produção das peças, por exemplo”, descreve, assinalando que as dificuldades aconteceram quando foram solicitadas técnicas específicas, como na feitura dos néons. “É difícil que alguém que durante 50 anos fez o seu trabalho de determinada forma aceite ideias diferentes. Fazê-los acreditar não é fácil. Mas depois de aceitarem e verem os resultados ficam contentes e desejam voltar a colaborar connosco.”
No total terão participado na feitura da exposição cerca de 50 pessoas. Da estrutura de Alexandre, vindos de Portugal, em diversas fases, entre 15 a 20 pessoas. Na fase final estiveram quase todos presentes. “Havia muito trabalho e pouco tempo”, ri-se, embora mude de semblante quando lhe recordamos que, aos 29 anos, tem que pagar ordenados a muitos colaboradores permanentes, ao mesmo tempo que gere, com Pauline Foessel, a galeria de arte Underdogs em Lisboa, e há poucos meses criou a empresa Solid Dogma. É muita responsabilidade, provocamos.
“Sinto essa responsabilidade, mas tento relativiza-la, talvez porque até hoje as coisas têm corrido mais ou menos bem”, justifica. “Tenho consciência que existem pessoas que cresceram comigo e que não tiveram as mesmas oportunidades, nem a sorte de ter tido alguém como a Vera [Vera Cortês, da galeria do mesmo nome] que me ajudou no início. Foi por sentir isso que a galeria Underdogs nasceu. Senti que era minha responsabilidade dar oportunidade a outros artistas com percurso similar ao meu, dando-lhes visibilidade para se afirmarem.” Alguns fazem parte da sua equipa. Com todos há uma relação profissional, mas também afectiva. “Há quem tenha começo a pintar comigo e outros estão ao meu lado há muito tempo. A sustentabilidade disto tudo depende deles e confio em todos.”
Os colaboradores reconhecem que é exigente, “mas também porque a fasquia é alta”, admite Tiago Silva, e acima de tudo tem capacidade de provocar nos outros o desejo de fazer acontecer. Horas mais tarde, depois da inauguração, vê-se toda a equipa em descompressão, num clube local, em ambiente festivo, dançando ao som de Branko (Buraka Som Sistema), convidado para a ocasião. Olhando para eles percebe-se a ligação fraterna, mas também a heterogeneidade. Uns estão mais próximos dos circuitos da arte contemporânea, outros do design, outros da rua e também da música.
“Sinto afinidades com gente muito diferente”, analisa. “Para o meu desenvolvimento como pessoa, no início, o hip-hop foi muito importante, até porque o princípio é o mesmo – desconstruir sons ou, no meu caso, imagens. E aí o Chullage [é dele parte da música ambiental da exposição] foi sempre uma referência – até pelo trabalho de associativismo que fizemos juntos há anos – da mesma forma que o Sam The Kid, o Halloween ou a Enchufada, pela forma como derrubaram barreiras.”
E continua: “Mas não distingo as pessoas. O Pedro Cabrita Reis também é uma referência, tal como o é, de maneira diferente, o João Machado que faz livros de arte incríveis, ou a imagem gráfica do Diogo Potes, ou os Pedrita, enfim, muita gente, de panoramas muito diferentes, que valorizo pelo trabalho, e não por serem daqui ou dali. Não me posso queixar: há muita gente a quem posso agradecer nestes anos todos, como ao Manuel Reis, que ainda não devia ter sequer idade para ir ao Lux”, ri-se, “e já ele me apoiava, ao permitir que fizesse vídeos com o Miguel Maurício.”
Hoje é um nome firmado da arte contemporânea, alvo de solicitações de galerias, museus ou bienais, sendo representado pela Vera Cortês, em Portugal, Magda Danysz, em Londres e Xangai, Steve Lazarides, em Londres, ou a Springmann em Berlim. Mas a vontade de intervir na rua mantém-se. “O espaço público vai interessar-me sempre.” Para ele o momento expositivo serve de súmula, de síntese, é a oportunidade de atribuir consistência ao trabalho desenvolvido. Mas antes existiu todo um processo de procura que passa pela rua e pelo contacto com as pessoas.
Ao longo do último ano e meio concretizou uma dúzia de intervenções nas ruas – como o retrato de uma operária fabril, cravado numa parede de uma fábrica têxtil em Tsuen Wan – e nas últimas semanas um dos icónicos eléctricos de um andar de Hong Kong foi intervencionado, transformando-se num objecto artístico em movimento. São acções planeadas, embora outras mais casuísticas sejam efectuadas a partir dos vazios legais.
O facto de intervir num local com signos de comunicação visuais tão fortes, quase até à sua abstracção, provoca-lhe impressões ambivalentes. Por um lado quando aceitou o desafio foi motivado por esse estímulo visual constante. “Por outro lado essa ideia de espaço público é aqui quase inexistente”, diz. “Não se vêm bancos para as pessoas se sentarem, por exemplo. O único critério parece ser o económico: quem tem dinheiro para pagar pode fazer o que lhe apetece. Por outro lado percebe-se que é uma cidade cheia de potencialidades, no sentido precisamente de interrogar como as identidades, o ser, se confundem tantas vezes com o ter.”
Em grande parte todo o corpo de trabalho surgiu a partir de conversas com os mais diferentes cidadãos, uma espécie de mosaico, necessariamente subjectivo, da sociedade de Hong Kong. “Foram realizadas cerca de 40 conversas”, haverá de explicar, enquanto muda algumas peças de lugar no seu estúdio, apontando para um balcão de cozinha, onde acabará por fazer café. “Foram muitas noites passadas aqui”, sorri, apontando para um micro-ondas e um pequeno fogão, alheando-se por momentos da conversa.
Para pouco depois prosseguir, evocando outras experiências. No Brasil, no Morro da Providência, no Rio, em 2012, deparou-se com uma situação específica, onde se confrontavam interesses imobiliários e acções de despejo, por causa das Olimpíadas e do Mundial de futebol. As autoridades deslocaram habitantes do morro para fora da cidade, desmembrando as comunidades. “Propus-me identificar quem lá vivia, falei com elas e cravei os seus rostos no que restava das casas, o que acabou por levar o assunto para os media”, aponta. Foi uma maneira da população ter voz.
“Aqui o contexto para as conversas foi diferente, mas há fricções, decorrentes da transição para a China, com estudantes pró-democracia a manifestaram-se e há pouco tempo houve até um motim o que é raro na Ásia, onde por norma são contidos de forma musculada. Nessas conversas esses conflitos vieram ao de cima, percebendo-se que existe um questionamento identitário e angustia pela incerteza do futuro.”
Depois de Hong Kong a exposição vai viajar por vários países, havendo já interesse de espaços expositivos na Ásia, EUA e Europa para a receberem. “A ideia é ela circular por cidades, adaptando-se às mesmas, havendo um conjunto de peças permanentes e outras produzidas para cada contexto, com materiais ou imagens locais, confrontando histórias, camadas, pessoas e memórias.” No final da série de exposições haverá uma reflexão global à volta da cidade como organismo que se estende pelo mundo, percebendo linhas de uniformização, de apropriação local de lógicas globais ou de divergência, equacionando aspectos positivos e negativos.
“Os modelos de desenvolvimento das últimas décadas permitiram tirar muita gente da pobreza extrema, gente que viu as suas necessidades básicas colmatadas, mas ao mesmo tempo a maior parte das pessoas com quem falei aqui não faz ideia quem são os vizinhos. A ideia de comunidade é-lhes estranha, em nome de uma ideia de conforto. No meu trabalho tento confrontar, mostrar e revelar todos esses elementos que se interligam.”
Regressar às origens
Para além da circulação global de Debris tem outra certeza para os próximos tempos. Continuará a dividir-se entre Hong Kong e Portugal, onde mudou há poucos meses o seu estúdio para a zona industrial da Quimiparque, no Barreiro, deixando Lisboa, naquela que parece ser uma aposta estratégica.
“Acaba por ser também uma reacção ao efeito de gentrificação que se sente em Lisboa, mas é mais do que isso, porque acredito que foi sempre às periferias que Lisboa se foi inspirar. Nesse sentido chegou a altura de muitos, como eu, regressarem às origens. E no caso concreto do Barreiro parece existir um processo de consciencialização das entidades locais, através da Baía do Tejo, que é a entidade que gere toda aquela zona, do potencial que ali têm.”
Com alguma assiduidade fala-se de zonas como o Barreiro ou o Seixal – que curiosamente, soube-se esta semana, vão voltar a estar ligadas por uma ponte, que havia sido destruída há quase 50 anos – como tendo potencial de futuro. Existe memória, identidade, espaços com desejo de serem reconvertidos. Falta conectar, estimular, dar novos sentidos a lugares onde aconteceu a revolução industrial. Mas o filão está lá. “É isso, sim”, haverá de dizer-nos Alexandre, de olhos brilhantes, mas sem entrar em euforias, num jantar com outros membros da equipa. “Pode criar-se ali uma dinâmica interessante, com as escolas locais ou outros agentes que estão a desenvolver coisas estimulantes. Quero fazer parte dessa dinâmica, porque sinto que existe ali um poder de transformação que pode ser aliciante.”
Tal como em Hong Kong, provocamos, também no Barreiro trata-se de atribuir novos sentidos aos detritos e às memórias. “Sim”, medita ele, “em ambos os lados existe um horizonte onde tudo é possível, com o que isso tem de assustador e desafiante, embora a alavanca do Barreiro seja mais pesada.” Para já prefere não falar muito disso, mas em carteira tem uma intervenção pensada para o gigante espaço industrial. “É um projecto a longo prazo, que envolverá outros artistas, mas para já é preciso assentar.”
Quem também está agora ali sediada é a Solid Dogma, a entidade criada em conjunto com o designer de branding Pedro Pires, que ali montou o seu atelier, concebido pelos Pedrita. A empresa constituída por artistas e profissionais da comunicação, é uma consequência de querer separar a prática artística com solicitações de cariz mais comercial onde estão também envolvidos artistas. “A ideia surgiu depois de perceber que em projectos de teor comercial os artistas estavam sempre no fundo da escala”, explica. “Aqui o desafio é tentar aliar o mundo comercial com o artístico, o que não é fácil, fazendo a ponte entre artistas e marcas, de forma a que as ideias artísticas sejam protegidas, criando diálogo entre diversas partes."
Nos últimos anos expôs-se muito, participou em inúmeras iniciativas, esteve muito em foco e naturalmente também começaram a surgir alguns anticorpos. “É inevitável, não é?”, encolhe ele os ombros, dizendo que não existe muito a fazer sobre o assunto, quando lhe recordamos algumas críticas pela aceitação da condecoração (de Cavaleiro da Ordem Militar de Sant’ Iago da Espada), no 10 de Julho do ano passado, atribuída pelo então presidente Cavaco Silva, apesar de a ter dedicado à “geração desprezada”, à “luta do bairro de Santa Filomena” e a “todas as periferias deste país.”
E depois existem as marcas de sucesso. Os U2 convidaram-no para realizar um vídeo, a Forbes identificou-o como um dos artistas mais bem sucedidos do mundo com menos de 30 anos e a imprensa estrangeira sediada em Portugal considerou-o personalidade de 2015. Ele, que é conhecido pela humildade entre os que com ele privam, volta a encolher os ombros.
“Os apoios que tive ao longo dos anos foram meramente de carácter institucional, nada mais. De resto, devo muito ao meu país, mas pelo Estado Social e pela educação que me proporcionou, nada mais. O que é muito. E é por lhe dever muito que desejo que o meu trabalho fale por mim, através da vida das pessoas e das situações com as quais me vou confrontando. Há meia dúzia de anos ninguém do meio da arte urbana de rua era valorizado. Nem sequer existiam estruturas para os enquadrar e torna-los sustentáveis como qualquer outro artista. Se puder contribuir com a minha quota-parte fico satisfeito. O resto não me interessa mito.”
É isso. Com Alexandre viaja-se pelo mundo. Pelo nosso e pelo dele. Estamos num táxi em Hong Kong e ele fala-nos dos bairros de Paris, do Rio, de Xangai, de Moscovo, de Londres, de Rabo de Peixe, de Bogóta, da Cidade do México, de Los Angeles ou de Sidney, enfim, horizontes que conheceu por ali ter deixado obra na última década, e no entanto sente-se que nunca saímos verdadeiramente do Seixal de quando era puto.
Olha lá para fora, cai uma chuva miudinha, é final de tarde, mas podia ser qualquer outra hora, porque a excitação de corpos, guarda-chuvas, luzes e edifícios seria o mesmo, e regressa a casa: “Lembro-me da zona onde vivia ser ainda muito rural, com meia dúzia de prédios, e de assistir ao boom da construção a seguir à entrada na CEE, transformando rapidamente o espaço à volta da casa dos meus pais, numa processo de transformação que acaba por conter semelhanças, pelo menos em termos de processo, ao de Hong Kong. Isso fascina-me e paradoxalmente foi o que me fez vir para aqui.”
O que é interessante é que ele próprio passou por um processo semelhante. A mudança, para ele, foi muito rápida. Um dia estava a atravessar o Tejo, no outro continentes. “O que aconteceu nos últimos dez anos é uma surpresa”, exclama. “Claro que posso racionalizar e olhar para trás para algumas decisões, mas nem sequer ambicionava ser artista. Sabia que queria pintar, mas não que iria ser a principal coisa que faria da vida. Nunca sonhei com isto. Para mim passar o rio já era um acontecimento.”
O ÍPSILON viajou a convite da Fundação HOCA