De todas as citações do livro do ex-assessor de Cavaco Silva, divulgadas pelos jornais, a mais surpreendente é a de que no final do mandato se “assistiu à desconstrução da figura de Cavaco Silva”. Parece a afirmação de um filósofo que analisou o edifício presidencial até às profundezas e por isso conhece os seus fundamentos – a arquitectura e a arqueologia da metafísica de Belém. Entre a caverna platónica das caves e o céu estrelado kantiano dos sótãos, o improvável assessor que não quer nada com a chamada “escola da suspeita” a que está associada a “desconstrução” ocupou o seu posto. Mas não podemos acreditar que a figura de Cavaco Silva ou de qualquer presidente passado ou por vir possam ser submetidas à “desconstrução”. Devemos concluir que Fernando Lima não faz a mínima ideia do que é tal coisa (nem isso o desclassifica ou o remete para os sótãos da cultura) e limitou-se a receber e difundir o eco de uma palavra que ganhou uma ressonância mundial e escapou completamente ao universo onde foi criada e ao seu criador, o filósofo francês Jacques Derrida, tendo-se tornado um extraordinário poncif, um lugar-comum: “Créer un poncif, voilà le génie”, escreveu Baudelaire, que aspirou tanto a criar um como a entrar para a Academia Francesa. Derrida foi por conseguinte um génio. Pôs toda a gente, até um assessor presidencial atacado por um spleen incurável, a utilizar a palavra “desconstrução”, ignorando os avisos de que ela não significa “destruição” nem “aniquilação”. A palavra “desconstrução” tornou-se uma praga sem controle. Como é que um filósofo como Derrida, que o New York Times, por altura da sua morte, em 2004, classificou como “um radical chic” e um “teórico abstruso”, conseguiu pôr toda a gente a recitar um poncif ? É um fenómeno inexplicável. Até Woody Allen realizou um filme, apresentado em 1997, a que chamou Deconstructing Harry, que é a história de um escritor de sucesso chamado Harry Block cujo papel é representado pelo próprio Woody Allen. Interrogado uma vez por um jornalista se tinha visto o filme, Derrida respondeu que sim, mas não tinha gostado, sobretudo do final, em que um estudante usa o termo “desconstrução” como um estereótipo, para vulgarizar a palavra. O mesmo fez Fernando Lima: ele podia ter pensado num outro neologismo do mesmo Derrida, a palavra “artefactualidade” (ou ainda uma outra: “actuavirtualidade”) para indicar que a actualidade jornalística é feita, activamente produzida e performativamente interpretada pelos dispositivos fictícios ou artificiais. Mas não, em vez de usar este neologismo que devia fazer parte do vocabulário de qualquer assessor de imprensa, mostrou-se permeável ao credo pagão da famigerada “desconstrução”. Nos sótãos de Belém, ele poderia ter aproveitado para ler alguns livros e artigos de Derrida. Por exemplo, Politiques de l’amitié; ou então Surtout pas de journalistes! Mas não, foi na onda da proliferação de uma palavra que até nos pode levar a pensar que Derrida, apesar de ser um “teórico abstruso”, é identificável de alguma maneira com aquilo a que já se chamou popsofia, ou seja, a filosofia pop. Mas a razão de a palavra se ter tornado um poncif é outra, muito menos frívola. Devemos interpretá-la como um importante sintoma do nosso tempo: abunda a “desconstrução” porque houve um deslocamento ou um deslize para outra zona de um certo vocabulário outrora muito utilizado. Toda a gente “desconstrói” porque já ninguém critica, nem refuta, nem desmistifica, nem desmitifica.
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