De mau a excelente
Não é incompatível dizer que Gonçalo M. Tavares é o melhor escritor português do século XXI e que também faz livros maus. Duas obras simultâneas provam-no
Foi no primeiro ano do século XXI que Gonçalo M. Tavares publicou o seu primeiro livro. Uma data provavelmente aleatória, mas que nos faz pensar quando confrontada com uma obra onde as noções de História e de tempo histórico estão muito vincadas. A ideia de “século”, aliás, está no âmago de um dos dois livros que acaba de publicar:Uma Menina Está Perdida no Seu Século à Procura do Pai. O outro é Os Velhos Também Querem Viver, escrito a partir de uma peça de Eurípides, Alceste, e já levado à cena por Cristina Carvalhal, numa produção da companhia O Cão Danado. O que Gonçalo M. Tavares faz, neste livro, é situar a história de Alceste e Admeto em Sarajevo, durante o cerco que o exército sérvio fez à cidade entre 1992 e 1996, mas nada além deste deslocamento geográfico da acção é digno de nota.
O enredo é o mesmo da peça original do autor grego contado pelas palavras de Tavares — e isto, diga-se, não torna esse enredo melhor. Sarajevo cercada é, aqui, um papel de parede, que poderia ser substituído por outro qualquer sem que isso alterasse a qualidade ou pertinência deste texto. Quando uma obra se limita a contar, por outras palavras, uma narrativa com dois mil anos, a sua relevância cultural ou literária parece-nos muito reduzida. Se em cena este Os Velhos Também Querem Viver terá dado um bom espectáculo é questão que não interessa à literatura. Enquanto livro, é fraco e inútil, mesmo que o conceito de utilidade em literatura seja inócuo e, em última instância, toda a literatura seja inútil.
Os Velhos Também Querem Viver é apenas mais um exemplo da carreira desequilibrada que Gonçalo M. Tavares está a construir. A escolha é legítima: há quem publique um livro a cada dez anos e quem publique aos dois e três por ano. Isto não faz dos primeiros melhores do que os segundos, nem vice-versa, mas expõe os segundos à forte de probabilidade de publicarem livros maus. Não é, de todo, incompatível dizer que Gonçalo M. Tavares é o melhor escritor português do século XXI e que a sua já extensa bibliografia tem vários livros maus. É apenas natural que alguém que começou a publicar há pouco mais de dez anos e já tem 33 livros não faça sempre obras-primas. Os Velhos Também Querem Viver é mais um dos volumes que aumentam a bibliografia em quantidade e não em qualidade. Felizmente para os leitores, Tavares publicou quase simultaneamente o romance Uma Menina Está Perdida no Seu Século à Procura do Pai que, não sendo uma obra-prima, é Gonçalo M. Tavares no género onde o seu talento flui mais harmoniosamente.
No final de cada livro publicado, há uma espécie de mapa para a extensa obra de Tavares, dividida em grupos — os mais conhecidos serão O Bairro (que inclui os livros dosSenhores) e O Reino (que inclui os romances que granjearam o reconhecimento e os prémios, como Jerusalém ou Aprender a Rezar na Era da Técnica). Se Os Velhos Também Querem Viver aparece no grupo de Estudos Clássicos, o romance Uma Menina Está Perdida... não aparece em nenhum grupo, como se não existisse nenhuma categoria onde encaixasse. Ainda assim, se tivéssemos forçosamente de arrumar este romance numa categoria pré-existente, a arrumação mais lógica seria no Reino, onde estão quatro romances que formam uma tetralogia bastante coesa em tom, universo e temática. Depois desses, que são os melhores livros do autor, Tavares não voltara a praticar o género. É certo que houve alguns piscares de olhos, como Uma Viagem à Índia — que até ganhou o Grande Prémio de Romance e Novela da APE —, mas nem esse nem nenhum outro livro publicado até agora eram romances.
Uma Menina Está Perdida... é um romance e vem confirmar que é este o habitat natural para a voz única de Gonçalo M. Tavares. Por muito conservadora que a ideia seja, o romance é o género que permite tudo, mantendo uma arrumação mínima com a espinha dorsal do género em si: isto é, a aquilo que faz de Uma Menina Está Perdida... um romance é o mesmo que faz com que Uma Viagem à Índia não o seja — é esse conjunto de regras e códigos literários de que o estilo de Tavares precisa, para não se perder no deslumbramento autofágico em que cai muita da sua produção mais fragmentária ou experimental.
A ideia, muito simples, que aqui se defende é a de que a voz de Tavares — o recurso a uma argumentação científica, ao pensamento lógico, o fascínio por números, datas e ideias abstractas transformadas em acções, muitas vezes no limiar da loucura — ganha força quando inserida numa narrativa, numa trama, num enredo mais convencional construído em volta de personagens fortes, como são as duas principais deste romance: Marius e Hanna. Ele foge de algo que nunca é revelado; ela é “uma deficiente” de 14 anos, portadora de trissomia 21, que procura o pai. Marius, o homem em fuga, encontra Hanna, a menina que procura, e decide ajudá-la, talvez porque empreender a demanda de Hanna ajude a empreender a fuga de Marius.
Hanna tem uma caixa cheia de fichas com uma espécie de curso de aprendizagem para portadores de trissomia 21 e é a partir destas fichas que se lança um questionamento do que é ser humano e de como muitos daqueles objectivos de aprendizagem são igualmente difíceis de atingir para pessoas ditas “normais”. Este exercício, esta exploração do comportamento através de um guia por etapas, com passos muito específicos, é um recurso típico da obra de Tavares, e aqui, inserido na história, funciona de forma perfeita.
Para encerrar a argumentação do romance como o género onde Tavares melhor se exprime podemos imaginar um livro feito a partir destas fichas de aprendizagem, com pequenos textos comentando e analisando cada passo do curso de comportamento: eis algo que facilmente poderia figurar na obra do autor. Seria interessante? Seria. Seria explorado com mais profundidade num livro dedicado apenas a isso? Seria. Seria uma leitura mais interessante do que este romance? Temos dúvidas. O que Tavares ganha no romance é uma estrutura sequencial que, ao mesmo tempo que mantém o leitor interessado no desenrolar da acção, vai fornecendo os pequenos episódios e comentários característicos da sua forma de ver o mundo — ou da sua forma de o explorar ficcionalmente. E é desses episódios que vive este Uma Menina Está Perdida...: episódios e personagens secundárias que elevam a um patamar superior uma trama que, de outra forma, seria apenas banal.
A questão do tempo e a noção de século, por exemplo, mencionadas atrás, são exploradas num capítulo intitulado Sete Séculos XX, em que uma personagem secundária conta da existência de sete judeus cuja função é serem uma memória de todos os acontecimentos do século, para que se uma qualquer catástrofe civilizacional apagasse todos os registos históricos a memória desses eventos não desaparecesse. Ainda dentro da temática judaica, há um episódio assombroso, não apenas pela ideia em si, mas também pela forma seca e despida de justificação com que nos é contado: seguindo uma recomendação, Marius e Hanna instalam-se num hotel em Berlim. Quando lhes é atribuído um quarto, a placa que vem com a chave não tem um número, mas um nome: Auschwitz. Todos os quartos têm, em vez de números, nomes de campos de concentração. Quando Marius pergunta porque fazem aquilo, a dona do hotel responde: “Porque podemos. Somos judeus.”
Estes encontros e as subsequentes conversas inusitadas que Marius e Hanna vão tendo (Hanna sempre como espectadora não-interveniente) são o verdadeiro enredo do livro, já que a busca pelo pai da menina é apenas a desculpa que os faz andar de um ponto para o outro. Uma Menina Está Perdida... é, por isso, um daqueles romances que se podiam quase dividir em contos. Não é o desfecho da história que interessa, mas sim as histórias mais pequenas contidas no livro. Mas é este artifício, este fio narrativo que liga todos os episódios, que o torna uma obra maior. Sem querer fazer o elogio do facilitismo, é muito mais agradável ser levado a reflectir por personagens dentro de uma trama do que por ideias apresentadas isoladamente. Muito do que há nesta obra já fora explorado, noutras formas, noutros livros, mas é no romance que Tavares melhor passa a sua visão, porque o romance permite a identificação do leitor, favorece a empatia com a acção e com os factos narrados: exactamente aquilo que acontecia com os quatro romances da série O Reino. Neste, fora dessa série e, aparentemente, de todas, o único defeito é uma perda de ritmo na segunda metade, motivada também pelo recurso ao reaparecimento de personagens secundárias. A pluralidade de géneros e de formas é um direito; a opinião também: que Gonçalo M. Tavares regresse muitas vezes ao romance.