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Cuca nas mãos de Gustavo

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Diziam-lhe muito uma coisa: que parecia uma criança a viver num mundo de fantasia, a alimentar inutilmente esperanças numa hipótese irreal. Ou que estava em vão à espera de um príncipe encantado, destinada a acabar sozinha, abandonada e sem ninguém a querer. Após a excitação inicial gerada pela proposta de Gustavo Santaolalla - o homem dos Bajofondo Tango Club e autor das oscarizadas bandas sonoras de "Babel" e "Brokeback Mountain" -, o entusiasmo à beira da histeria dera lugar a uma descrença desmaiada. Rapidamente correra a notícia de que Santaolalla queria gravar o disco de estreia de Cuca Roseta, mas os adiamentos sucessivos e a fé inabalável da fadista na palavra do músico argentino pareciam condená-la à mesma vida suspensa das mulheres que perdiam os homens na guerra e nunca recebiam uma notificação oficial, acordando todos os dias com a esperança de ver umas botas escalavradas a entrar pela porta.

Cuca não desarmou, ficou presa à palavra de Santaolalla e rejeitou todas as muitas propostas que lhe foram chegando às mãos, de editoras portuguesas, francesas, holandesas. À sua volta, os entusiastas iniciais foram tombando aos poucos, até só ela permanecer de pé. "Não sei se não devias aceitar esta" foi-se tornando um coro cada vez mais numeroso e sonoro. E a cada recusa de Cuca, lá se avolumavam mais mãos a esconder a boca comentando que "Coitada, ela lá ficou a achar que o Santaolalla ia gravar com ela e vai ficar eternamente a sonhar". Foi-se sempre agarrando à troca de emails entre os dois, em que ele lhe explicava as razões de mais um adiamento - agora uma digressão com os Bajofondo, agora o disco da Nelly Furtado, depois a banda sonora do filme "Biutiful", em seguida o disco de Cristóbal Repetto, com os negócios de vinhos e a família à mistura. Até que à nona desmarcação, a certeza de Cuca, não caindo, rachou de alto a baixo. "Onde é que havia tempo para ele ter o capricho de vir gravar com uma miudinha e pagar tudo do bolso dele?", perguntou-se.

Email, de Cuca Roseta para Gustavo Santaolalla: "Chega, não vou ficar mais à espera. Ou andamos com isto para a frente, já estou nisto quase há quatro anos, ou desisto e vou trabalhar com outra pessoa ou fazer outra coisa". O susto funcionou como uma mola na cadeira de produtor do argentino. Pouco depois, entravam finalmente em estúdio. E Cuca - que abdicara de ser psicóloga a pedido expresso de Santaolalla - respirava finalmente de alívio. Afinal, este príncipe, encantado por ela, era a sério.

Uma escala

No meio de uma agenda impossível, Gustavo Santaolalla conseguiu enfiar três dias de escala, vindo de Barcelona e a caminho de Los Angeles, para gravar a fadista em Lisboa. Depois de uma tão longa espera, os três dias ecoaram em Mário Pacheco - o guitarrista que apadrinhou Cuca e a acolheu no seu Clube de Fado - como mais uma loucura da sua protegida. Mas na vida de um homem que quase não dorme e para quem dois meses de estúdio soam mais a férias do que a trabalho, três dias eram suficientes. "Deu para gravar e ainda sobrou tempo", ri-se Cuca.

"Psicológica e emocionalmente foi uma violência, porque eram quatro vezes seguidas a gravar o mesmo fado e sempre como se fosse a primeira, com a mesma verdade". Mas é desse repente que vive "Cuca Roseta".

Finalmente, desde que numa passagem por Lisboa Santaolalla fora atraído para Alfama pelo nome de Argentina Santos (se foi a coincidência do nome da fadista com o do seu país ou apenas a sua fama cantadoira, não sabemos) e acabou no Clube de Fado a deslumbrar-se com Cuca, o namoro artístico entre os dois era finalmente consumado. E de tal forma que o homem lhe fez já juras de fidelidade eterna, confessando-lhe que gostava que gravassem juntos para o resto da vida. "Eu quero o talento dele em todo o meu crescimento", solta Cuca, não menos rendida.

A reverência para com a reputação de Santaolalla levou a que muitos dessem carta-branca ao músico para fazer do fado aquilo que quisesse, como se as suas mexidas na canção lisboeta precisassem de uma autorização prévia de uma comissão de honra. Mas à mesa com Cuca, a tenra idade da fadista não fez dela palco para experiências desabridas.

"Posso gravar contigo", foi avisando a cantora, "mas quero gravar fado, o mais tradicional possível". Gustavo não podia estar mais de acordo, defendendo a intocabilidade da raiz e a ideia de que a novidade estaria sempre presente pelo facto de Cuca ouvir rock e outras músicas, ter um passado ligado à pop, vestir-se e ter uma imagem distinta da maioria das fadistas, escrever as suas letras e ter composto até um original para o disco. Daí que Santaolalla tenha mexido no fado com pinças, respeitoso, percebendo igualmente a irritação a tomar forma na cara de Cuca sempre que alguém sugeria um bandoneón ou algo do género. "Ele é sempre assim", diz ela. "É sempre pelo puro, pelo cru, pelo simples".

Se Cuca conseguiu manter o fado inviolado no seu primeiro disco, depois veremos se, a manter-se a colaboração com Santaolalla, terá teimosia suficiente para resistir à ideia do músico argentino. "Tu vais cantar todo o tipo de músicas", diz-lhe ele a toda a hora. "Se calhar nem sequer vais ficar no fado", disse-lhe uma vez. Ela irrita-se e responde que já experimentou todas as outras, e só o fado a convoca por inteiro para cada interpretação. Mas a verdade é que até aos 18 anos nunca tinha havido fado na sua vida.

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