Comunismo e rock: a outra “guerra fria”

Para muitos milhares de cubanos, a longa “guerra fria” entre Havana e Washington terminou muito mais com o som poderoso e mobilizador dos Stones do que com Obama a cumprimentar cordialmente Raúl Castro.

O concerto dos Rolling Stones em Havana, com centenas de milhares de pessoas a assistir, acabou por ter um carácter tão histórico como o da visita do Presidente Barack Obama, após décadas de relações cortadas dos Estados Unidos com a Cuba de Fidel, “Che” Guevara e Raul Castro. Foi a primeira vez que os cubanos, tanto os mais velhos como os jovens, puderam assistir a um concerto com esta dimensão e fulgor, num país que sempre encarou de forma crítica, restritiva e censória a música dos Stones, dos Beatles e de muitos outros, mesmo tendo e conta que músicos como Carlos Santana e alguns mais chegaram a identificar-se com a figura do argentino “Che” Guevara, assassinado em Higuera, na Bolívia, em 1967 pela tropa de René Barrientos e pela CIA.

Ernesto “Che” Guevara, médico de profissão e guerrilheiro por opção, não gostava de rock e, quando, integrado como comandante das forças rebeldes comandadas por Fidel Castro, conquistou Santa Clara, já muito perto do dia 1 de Janeiro de 1959, data da entrada triunfal dos guerrilheiros da Sierra Maestra em Havana, após a fuga do corrupto Fulgencio Batista (que acabou por se exilar em Portugal), proibiu o jogo e também os bailes juvenis pela sua “frivolidade” em tempo de profundas mudanças sociais e políticas.

Em 1964/65, o rock foi proibido em Cuba, e os Beatles, na terra da “salsa”, chegaram a ser considerados “agentes do imperialismo”, crítica que pelo menos John Lennon, combativo como sempre, não teria deixado sem a resposta adequada. Entretanto, Beatles, Stones, Bob Dylan e muitos outros construíram obra e carreira, sem quererem saber dessas barreiras ideológicas que em alguns países os afastavam compulsivamente da juventude.

Em Cuba, os tempos passaram e um neto de “Che” Guevara, de seu nome Caisek Sanchez Guevara, tornado guitarrista, foi politicamente perseguido, acabando por abandonar o país. Deste modo, o comunismo e o rock viviam uma relação tensa e de grande crispação e desconfiança, o que levou a que na URSS e nos países da Europa do Leste que dependiam política e militarmente de Moscovo o rock, mesmo sem ser proibido, estivesse sujeito à intervenção da censura, fazendo proliferar o mercado negro em seu redor. Quem queria ouvir ouvia, mesmo que tivesse de pagar um preço avultado por esse prazer de excepção. Entre o cubanos que agora em Havana ajustaram contas com décadas de privação, viam-se pessoas comovidas que falavam de Satisfaction como se citassem uma velha oração proibida.

Na China de Mao Tsetung, a Revolução Cultural baniu a música rock, que claramente associou ao imperialismo e às suas mensagens. Na Indonésia, que matou e viu matar muitas dezenas de milhares de comunistas, o rock esteve proibido durante mais de três décadas, no Paquistão no final da década de 70 do século passado e no Afeganistão entre 1994 e 2001.

Ao ser assassinado com 39 anos em 1967, no meio da floresta boliviana, Che Guevara não gostava de rock e do que ele representava. Tinha idade e experiência bastantes para gostar, mas foi som e estilo a que nunca se afeiçoou, acabando por mudar tantos gostos e mentalidades como algum do melhor rock seu contemporâneo.

Nos Estados Unidos, na década de 80, a direita radical que teria, com Reagan na Casa Branca, o seu tempo de glória ergueu-se contra o rock e os perigos da sua mensagem, lançando o reaccionário selo “Parental Advisory Explicit Content”, que o mercado e a vida democrática acabaram por esvaziar de sentido e fazer cair no esquecimento.

Agora, depois de muito caminho andado e sem terem necessidade material ou artística de conquistar novos públicos e mercados, Mick Jagger e Keith Richards, ambos com 72 anos, deslumbraram Havana com a sonoridade inconfundível de uma banda que, com mais de 50 anos de vida, tem tanta pujança simbólica, mediática e mítica como o próprio Ernesto “Che” Guevara, cujo meio século da morte será celebrado no próximo ano.

Para muitos milhares de cubanos, a longa “guerra fria” entre Havana e Washington terminou muito mais com o som poderoso e mobilizador dos Stones do que com Obama a cumprimentar cordialmente Raúl Castro. Resta agora saber o que vai ficar de tudo isto e até que ponto Satisfaction poderá ajudar o poder político em Washington a fazer cessar décadas de embargo que, bem vistas as coisas, tanto contribuíram para manter no poder os irmãos Castro e o seu modelo de sociedade, agora já não vinculado a Moscovo, apesar das boas relações comerciais que se mantiveram após a queda do comunismo, depois do derrube do Muro de Berlim em 1989.

Neste mundo globalizado, o rock e o comunismo têm o seu tempo e a sua história, as suas mágoas e a sua memória. Cabe às gerações futuras determinar até que ponto o mundo continuará a rever-se nos seus vários legados e cicatrizes.

 

Escritor, jornalista e presidente da Sociedade Portuguesa de Autores

Sugerir correcção
Ler 2 comentários