Cinéfilos de todo o mundo, uni-vos!

Naum Kleiman, figura maior da internacional cinéfila, esteve em Portugal para falar de Eisenstein. Mas falou também da necessidade de continuar a explorar o território do cinema como um mundo em constante expansão e descoberta.

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Naum Ihilevich Kleiman: professor, arquivista, historiador, crítico, curador, passou por Portugal para apresentar no âmbito do programa Histórias do Cinema da Cinemateca um ciclo de sessões-conferência sobre a obra de Eisenstein Guilherme Marques

Imaginemos o cinema como uma espécie de “planeta”, de “mapa-mundo”, onde coexistem muitos “continentes”, que podem ser históricos ou geográficos. Entre os exploradores e guias que nos abrem as portas desse mapa-mundo, Naum Ihilevich Kleiman seria um dos mais significativos: professor, arquivista, historiador, crítico, curador, este moldavo de 78 anos, uma das figuras mais prestigiadas da internacional cinéfila contemporânea, está para a Rússia como Henri Langlois esteve para França ou João Bénard da Costa para Portugal.

Não é exagero. Kleiman foi entre 1967 e 1985 director da casa-museu Sergei Eisenstein em Moscovo, tendo participado no restauro de vários filmes do autor do Couraçado Potemkine e organizado a edição definitiva dos seus escritos. Esteve em seguida à frente do Museu do Cinema Russo, cargo do qual foi afastado em finais de 2014 pelo regime de Vladimir Putin, perante um coro de indignação global. Sorri enquanto fala ao Ipsilon, sentado na livraria da Cinemateca Portuguesa, do “alívio” que tem em já não ter de lidar com a burocracia estatal do Ministério da Cultura russo. “Estive 25 anos à frente dos arquivos Eisenstein, e depois outros 25 à frente do Museu do Cinema. Pediram-me para tomar conta do museu, e disse que sim, mas que só o faria por ano e meio. Mas as mudanças foram tão rápidas, e tão perigosas, que acabei por ir ficando. Como um pai protector e adulto que tinha de ficar para garantir que o Ministério não destruía nada. Agora sinto-me libertado...”

Essa “libertação” passou por Portugal na semana passada – onde apresentou, no âmbito do programa da Cinemateca Histórias do Cinema, um concorrido ciclo de sessões-conferência sobre a obra de Eisenstein (salas esgotadas, para grande surpresa do próprio Kleiman). Uma primeira visita ao nosso país que cumpriu, “demasiado tarde” nas suas palavras, uma promessa feita a… Manoel de Oliveira.

As duas margens de um rio
Em 1994, Kleiman e Oliveira encontraram-se no festival de São Francisco para receberem prémios de carreira, e viram juntos Whispering Pages (1993), a adaptação livre que Aleksandr Sokurov fez do Crime e Castigo de Fyodor Dostoievsky. “Um filme muito estranho, como a maioria dos filmes do Sokurov,” recorda o professor. “Logo ao princípio, Oliveira virou-se para mim e disse: «Este tipo sabe o que é o cinema». Foi a primeira frase que ouvi da sua boca. Ele tinha um ponto de vista muito honesto, muito moral, muito próximo da cultura russa clássica. Ora, Dostoievsky disse uma vez do [poeta Aleksandr] Pushkin que ele representava o melhor da cultura russa porque era um eco de todas as outras culturas… E Oliveira era assim: absolutamente único, representativo do vosso país, mas ao mesmo tempo um eco de muitas outras culturas.” Como Eisenstein, arriscamos? “Exactamente. Eram cineastas completamente diferentes no estilo, mas o estilo é apenas uma fachada. Vejo-os como duas margens diferentes de um mesmo rio.”

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Guilherme Marques

A visita de Kleiman a Portugal surge, curiosamente, poucas semanas antes do arranque de uma retrospectiva de cinema russo, organizado pela Leopardo de Paulo Branco, que se inicia em Fevereiro com Andrei Tarkovsky e seguirá (segundo a distribuidora) por Eisenstein, Dziga Vertov, Aleksandr Dovzhenko ou Marlen Khutsiev. É impossível não falar do cinema russo com Naum Kleiman sem abordar a sua reputação “prisioneira” do ideário marxista-leninista. É, no entanto, necessário separar a arte do seu contexto, como nos explica: “Eisenstein não era igual à ideologia do estalinismo: ele chegou à revolução não através do Marxismo, mas através da libertação da incrível estupidez czarista. O movimento leninista dos anos 1920 possibilitou a existência de um cinema mais liberal, de uma vanguarda que produziu obras-primas mais europeias, numa sociedade algo livre. E o contexto desse período revolucionário é muito maior do que a ideologia estalinista.”

Acima de tudo, Kleiman avisa que não se pode pensar no cinema russo como monolítico ou ideológico; antes como uma série de gradações e negociações. “Nada é preto e branco,” define. “A URSS teve vários períodos, mas mesmo quando as [autoridades] não queriam algo de excessivamente crítico [para com o sistema], mantinham o seu respeito pela arte. Havia uma independência criativa que era permitida. Eles compreendiam a importância da arte enquanto formação da alma, e não esperavam retorno financeiro ou ideológico imediato. Era possível encontrar um modo de expressar as coisas artisticamente. O cinema russo existia devido à protecção do estado.”

Foi esse apoio estatal que deu a realizadores como Tarkovsky ou Khutsiev a possibilidade de filmar, remontar, abandonar, recomeçar, mesmo quando enfrentavam problemas “ideológicos”. Kleiman cita aquele que considera um dos cineastas russos mais importantes da década de 1960, Mikhail Kalik. “Adeus, Rapazes (1963) é uma obra-prima absolutamente ao nível de Truffaut. Ele estivera três anos na prisão, mas depois permitiram-lhe fazer filmes, e em seguida emigrou para Israel. Aí, tentou rodar um projecto para o qual tivera três meses de preparação e prevera um ano de rodagem, mas disseram-lhe «não, não, rodas três meses e preparas um ano». E percebeu que, ao contrário do sistema russo, não era arte que se estava a tentar fazer. Eisenstein teve a ilusão de que seria mais livre em Hollywood do que na União Soviética, mas percebeu que se ficasse lá apenas rodaria melodramas ou super-produções, e não o seu próprio cinema.”

A redução da criação artística à pura monetização é, para Kleiman, um dos “erros do século XX”. “A arte tornou-se num produto, que tem de dar dinheiro e lucro. Já não falamos de arte, falamos de gestão e perdemos de vista a questão educacional,” diz. “A tragédia é que não temos uma educação de imagem, e temos culpa, enquanto críticos, enquanto professores, de não pensarmos especificamente em modos de atrair pessoas para o cinema. Ou estamos orientados para os cinéfilos, num sítio como a Cinemateca, ou usamos a publicidade para o cinema de massas, e não há nada no meio. É um erro. É importante que o público seja educado para perceber que o cinema não tem um único estilo. Uma cinemateca é um lugar para aprender a possibilidade do cinema, um mapa, um consultor que nos ajuda a perceber para onde podemos ir, o que podemos encontrar.”

É por isso que Kleiman vê com bons olhos a cinefilia que está a nascer na internet, construindo de modo quase auto-didacta os seus próprios mapas. “A distribuição comercial está morta e enterrada, a televisão é uma vulgaridade onde não há nada para ver. A internet é um pouco como o sistema de cine-clubes e bibliotecas que tínhamos na Rússia, só que sem mapa. E dá-nos a possibilidade de mostrar às pessoas as coisas de modo muito mais eficaz, porque numa aldeiazinha remota vai haver um miúdo que vai ter acesso a filmes importantes e vai querer fazer cinema.”

É por isso que a Europa é para Kleiman um destino inevitável da Rússia: “Fomos um país fechado durante muito tempo. E muito poucos conseguiram viajar e compreender as ligações entre a cultura russa e a cultura mundial. Precisamos de tempo para estar num país para podermos sentir a diferença. Dostoievsky viajou muito, mas como se concentrava nas mesas de jogo passava muitas vezes ao lado dos países onde estava. Já Nikolai Gogol esteve em Roma, e a sua visão crítica da Rússia vem de conhecer a vida em Itália. O poeta Fyodor Tyutchev adoptou o pensamento transcendentalista alemão, o romancista Ivan Bunin escreveu livros maravilhosos sobre a Rússia porque morava em França...”

Também por isso, o cinema russo não existe num vácuo e reflecte o mundo e a história à sua volta. “Eisenstein não vinha dos melodramas do século XIX mas sim dos mistérios medievais. Conhecer os autos e os mistérios permite compreender melhor a dramaturgia de Eisenstein – Outubro, por exemplo, é ao mesmo tempo um milagre medieval e uma máscara. Tal como Dante não era apenas um poeta medieval mas uma espécie de síntese da cultura italiana, também Eisenstein estava à vontade no Japão ou na China porque encontrou um elemento universal da arte.”

A hora de conversa vai longa; podíamos ficar a ouvir Kleiman falar, coisa que ele muito gosta de fazer desde os seus tempos de estudo na célebre escola de cinema moscovita VGIK, mas há uma conferência para preparar. Ganhou-se um contador de histórias, perdeu-se um cineasta? “Ao fim de três anos de curso, fui ser assistente numa produção e percebi uma coisa: num plateau é preciso ser-se ditador e eu não consigo…”, sorri. “Entretanto conheci Pera Atasheva, a viúva de Eisenstein, e comecei a estudar os seus livros, desenhos, e tornou-se mais importante para mim mostrar esse tesouro ao mundo do que fazer filmes.”

E, agora que o Museu do Cinema de Moscovo a que Kleiman deu tanto foi colocado em animação suspensa pelas autoridades políticas, o que vai ficar? “O Museu existia antes de mim,” diz Naum Kleiman, “e consegui convencer a minha equipa a ficar, porque os directores vão e vêm mas o trabalho fica. Pense numa mangueira de jardim, e no fluxo de água que a alimenta. Se a mangueira abre um buraco e você o tapa, a pressão da água arranjará maneira de escapar por algum lado. A Rússia é esse fluxo de água: é uma cultura que não se pode conter.”

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