Tem sido sempre uma corrida contra o tempo, e agora mais do que nunca, porque já só há mais uma semana para ver a exposição que está a confirmar-se como “o acontecimento artístico do ano” em Roma. Trata-se da exposição comemorativa dos 400 anos da morte de Caravaggio (1571-1610), que está nas Escuderias do Quirinal, mesmo ao lado do palácio presidencial na capital italiana, só até ao próximo domingo. Quando a visitámos, há pouco mais de uma semana, o cartão de jornalista poupou-nos a uma longa fila de pessoas aguardando a sua vez durante horas sob o sol quente do Mediterrâneo. Mas não evitou que, já dentro da galeria, tivéssemos que fazer também longos compassos de espera atrás das pequenas multidões que se detinham frente a cada uma das pouco mais de vinte obras do grande pintor nascido em Milão. As filas têm sido, aliás, uma constante desde que a exposição foi inaugurada ano dia 20 de Fevereiro, quando já se acumulavam 50 mil reservas para ver Caravaggio. Mesmo que, pouco tempo antes, muitas obras do pintor tivessem sido também exibidas em Roma na exposição Caravaggio-Bacon, na Galeria Borghese (2 de Outubro de 2009 a 24 de Janeiro de 2010). O que é que este pintor que marcou a transição do maneirismo para o barroco tem de especial que atrai assim multidões? “É o pintor do diabo”, comentava um visitante perante o impressivo quadro David com a Cabeça de Golias (1610), esse mesmo em que, dizem os especialistas, o próprio Caravaggio se auto-retratou no rosto do gigante decapitado pelo jovem rei que conquistou Jerusalém. Nele, David manifesta mais compaixão do que júbilo pela morte do inimigo, cuja expressão está paralisada num esgar de dor. A tela David com a Cabeça de Golias - que, juntamente com A Anunciação (1608), fecha o percurso da exposição no Quirinal, na segunda das duas alas que ela ocupa - foi pintada no último ano de vida do pintor, que nessa altura e desde 1606 andava fugido pelo Sul da península itálica (com passagens por Nápoles, Malta e Sicília), tentando escapar a uma condenação à morte por ter assassinado um jovem numa rixa com arma branca. As armas, que Caravaggio manejava tão bem como o pincel, eram o outro instrumento que melhor expressava a energia deste homem iconoclasta e um pouco rufia, que viveu depressa, morreu jovem (aos 38 anos), mas que não terá tido um cadáver bonito, já que foi vitimado pela malária numa praia da Toscana - as reais circunstâncias da sua morte estão ainda por apurar de forma fidedigna. Roma e o cardeal Michelangelo Merisi, que ficaria conhecido por Caravaggio por ter vivido a infância na localidade com o mesmo nome, na região de Milão, em 1571, iniciou-se na pintura em oficinas da sua terra e depois em Veneza. Mas seria a sua fixação em Roma, em 1592, que viria a confirmar a sua vocação e a abrir horizontes para a sua arte e carreira. Na cidade dos Papas, desenvolve a sua aptidão e o seu interesse pela ilustração de temas do cristianismo junto de mestres como Lorenzo, “o Siciliano” e Antiveduto Grammatica, este um pintor maneirista protobarroco que haveria de marcar o percurso do jovem artista. Três anos depois de chegar a Roma, Caravaggio conhece o cardeal Francesco Maria del Monte (1549-1627), figura eminente da aristocracia eclesiástica e política, que se torna no seu mecenas. É ao longo da década de 90 que pinta uma série de quadros em que avultam Jogadores de Cartas (1594), Os Músicos (1595), Cabeça de Medusa (1597) e Cesta de Frutas (1599) - este último abrindo, juntamente com Rapaz com Cesta de Frutas (1593), a exposição no Quirinal. São obras que definem desde logo um novo estilo de utilização da cor, no jogo claro-escuro e numa inovadora utilização dramática da iluminação. “Caravaggio é um dos fundadores da pintura moderna”, diz Vítor Serrão, especialista em História da Arte e professor catedrático na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Em simultâneo com os trabalhos sobre esta temática secular, Caravaggio vai encenando também a mitologia cristã, dando expressão nova a inúmeras figuras e episódios do Velho e do Novo Testamento. A Anunciação, sucessivas representações de João Baptista, desde 1602 (quando o pinta ainda criança, corpo e sexo nus e expostos com um realismo até aí nunca ousado, até o representar na idade adulta e na sua decapitação a pedido de Salomé), e quadros como Judite e Holofernes, Adoração dos Pastores, Flagelação de Cristo, A Deposição e Conversão de Saulo (todos visíveis na exposição do Quirinal) são algumas das obras com que o pintor celebrou a iconografia católica. “Caravaggio acredita piamente nos valores cristãos”, nota Vítor Serrão, mas realça o facto, absolutamente inovador para a época, de o fazer na linha do “cristianismo primitivo, mais ecuménico e mais democrático”. Interessa-lhe mostrar “o drama humano” através de “gente vulgar” e, para isso, Caravaggio recorre à gente da rua e à margem da sociedade - bêbados, prostitutas, delinquentes e outros membros do bas-fond - para serem modelo dessas cenas religiosas. É uma pintura que faz “um aprofundamento radical do realismo”, que assume a (sua) contemporaneidade e que contrasta com a pintura efabulativa italiana da época, acrescenta Vítor Serrão. O império da carne Também Paulo Cunha e Silva, conselheiro cultural da Embaixada Portuguesa junto do Palácio do Quirinal, realça esta “marca carnal” na pintura de Caravaggio. E explica que foi essa característica que, de certo modo, justificou a associação da obra do pintor barroco com a do britânico Francis Bacon (1909-1992), na exposição realizada no final do ano passado no Palácio Borghese. Caravaggio-Bacon sugere-nos “um confronto óbvio, desde logo por aquilo a que poderíamos chamar o império da carne que os dois dominam”, mas também pela presença, na obra de ambos, daquilo a que o médico, professor e diplomata designa como “uma ontologia do vulgar”. Paulo Cunha e Silva refere-se também ao recurso que tanto Caravaggio como o pintor britânico do século XX fazem a modelos da marginalidade social para essa “promoção da carne”. “Este convívio com a marginalidade que os dois praticavam à saciedade levou-os a transformar o vulgar num novo ser, numa nova entidade”, acrescenta o conselheiro cultural e ex-presidente do Instituto das Artes. E defende que, na exposição que antecedeu a do Quirinal, foi óbvio que Bacon “perdeu” no confronto com Caravaggio, no sentido em que este “cria um império positivo”, ao passo que o britânico cria “um império negativo”. “Para os dois, a carne é central, mas Caravaggio sacraliza-a e Bacon bestializa-a”, explicita Paulo Cunha e Silva, não querendo, com isso, significar que o italiano seja melhor que o autor da série em torno do Papa Inocêncio X. Não pondo em causa a importância da exposição em exibição em Roma - que é a mais extensiva alguma vez realizada sobre a obra do pintor, que continua a ser alvo de muita discussão, nomeadamente no que diz respeito à autenticação dos seus quadros -, Paulo Cunha e Silva considera, contudo, que o melhor lugar para ver a obra de Caravaggio é nas igrejas. “Trata-se de um autor muito site specific”, diz, referindo-se às múltiplas obras que o milanês pintou correspondendo a encomendas para lugares específicos. Este facto constitui, curiosamente, uma boa alternativa para quem não conseguir visitar, até ao próximo domingo, a exposição do 4.º centenário da morte de Caravaggio (que passa no dia 18 de Julho, e que está também a ser assinalado com outras exposições espalhadas por Itália, e inúmeras iniciativas de investigação sobre aspectos ainda obscuros da sua biografia e obra). É que a capital italiana continua a dispor de um “roteiro Caravaggio” invejável, por entre igrejas, palácios e museus. Algumas dessas obras estão actualmente na exposição do Quirinal (que reúne quadros vindos de instituições de todo o mundo, de Nova Iorque a Berlim, de Dublin a Florença, do Texas ao Vaticano). Mas quem não puder arranjar tempo (ou bilhete) para visitá-la, poderá, bem junto à Praça Navona no centro histórico de Roma, entrar na Basílica de Santo Agostinho e aí admirar, calmamente, a Madonna dos Peregrinos (ou do Loreto). Ou, mesmo ao lado, na Igreja de S. Luís dos Franceses, ver o tríptico com que Caravaggio decorou uma das capelas, entre 1599-1602, uma encomenda que lhe foi proporcionada pela intervenção do Cardeal Del Monte. A Vocação, Martírio e São Mateus e o Anjo são, juntamente com a Madonna, obras que expressam bem aquilo que é a quinta-essência da arte de Caravaggio: o realismo e a verdade com que impregnou os seus quadros (onde os anjos têm sexo). Na Madonna dos Peregrinos, o pormenor que nos surge em primeiro plano é o dos pés nus, sujos e gretados de um homem ajoelhado aos pés da Virgem com Jesus ao colo, também ela uma mulher do mundo real, e usando um manto vermelho - quando a cor da iconografia tradicional da representação da Virgem era o azul... E também a utilização das cores vivas e do claro-escuro - os feixes de luz como elemento de dramatização da cena, seja o Anjo a deitar a mão a São Mateus prostrado no chão, seja Cristo a fazer o chamamento do futuro Evangelista quando este se encontrava a jogar numa mesa de taberna... Essa luz que fez Caravaggio vencer a sua corrida contra o tempo.
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