Branko: dos Buraka para o mundo
Depois dos Buraka Som Sistema terem declarado um interregno, eis que um dos seus membros, João Barbosa, ou seja Branko, lança o álbum Atlas. Uma cartografia afectiva de cinco cidades, através de uma sonoridade sensualmente dançante.
A festa de lançamento do álbum, em Portugal, está marcada para o dia 10, na ZDB, em Lisboa. Mas antes, já esta sexta, é em São Paulo que a celebração acontecerá (podendo ser visionada, em directo, pelas 22h00, aqui).
Faz sentido. É que a cidade brasileira é, em conjunto com Nova Iorque, Amesterdão, Cidade do Cabo e Lisboa, o alicerce para cinco pequenos documentários produzidos para a Internet, e para este álbum, que foi sendo gravado nessas urbes, com recurso a mais de uma vintena de convidados.
O conceito era captar um pouco da realidade cultural e musical mais subterrânea de cada uma dessas cidades, e a partir dessa matéria desenvolver um vocabulário próprio. Se os Buraka são adrenalina, nervo e sexo, Branko é mais sensualidade e envolvência. É música para dançar, mas também para balancear, evocação de um qualquer ambiente tropical que encadeia, mas que nos deixa vislumbrar todas as suas formas com clareza.
“A ideia do disco é mostrar que existem linguagens musicais conotadas com diferentes cidades que acabam por expor sotaques, visões e modos de fazer muito diversos, embora ao mesmo tempo também façam parte da mesma linguagem global”, diz-nos ele. “O objectivo era mesclar tudo isso. Os temas não começaram e acabaram numa cidade, foram tendo vidas em locais diferentes. Por exemplo: o brasileiro MC Bin Laden não canta sobre uma batida de baile funk, que é a sua linguagem de base.”
Em díspares cidades, rodeado de músicos e cantores, Branko repescou fragmentos sonoros e vocais e depois completou a sua leitura dos mesmos, misturando-os em dez canções. “É como se tivesse montado um puzzle; talvez por isso, em algumas situações, senti-me mais um curador do que músico ou produtor. Há versos que inicialmente estavam pensados para o tema X e acabaram no tema Y, porque fazia sentido que isso acontecesse.”
Esta sexta, em São Paulo, haverá um Boiler Room, onde para além de Branko vão estar presentes os brasileiros MC Bin Laden ou MC 2K, figuras de proa do chamado baile funk, o género musical proscrito durante anos e que nos últimos tempos tem sido alvo de uma nova credibilização. De tal forma que, segundo ele, existe hoje uma segunda vaga de atenção em relação ao género.
“Esta festa acontece porque o Boiler Room nunca tinha feito nada relacionado com baile funk brasileiro e pareceu-me aliciante desafiá-los nesse sentido”, diz-nos ele. “Existe uma vaga de renovação do género que se sente não só na música, como no impacto e na forma como tem sido recebida. Antes a maior parte das batidas instrumentais era inspirada no tamborzão do Miami Bass e agora existe uma diversidade bem maior de influências.”
Diversidade no corpo
Apesar da dispersão em fracções das linguagens musicais urbanas abordadas no disco (do baile funk ao kwaito, da tarraxa ao afro-house) e da acumulação de convidados (The Clerk, Bison, Princess Nokia, Cachupa Psicadélica, Skip & Die ou Alex Rita), num total de 24, não estamos perante um objecto desconexo.
Há unidade nos ambientes, nos traços melódicos, nos dinamismos rítmicos mais insinuantes do que directos e na forma como as vozes constituem o centro nevrálgico das canções. Há qualquer coisa de instintivo nesta música, e aí residem algumas das familiaridades com os Buraka, mas também se lhe percebe um novo requinte proveniente de apurado trabalho de laboratório.
“O plano surgiu no início do ano passado e a partir daí foi sendo desenvolvido e ganhando novos contornos depois de uma conversa com a Red Bull Music Academy no sentido de poder utilizar os seus estúdios em diferentes cidades pelo mundo”, diz-nos Branko. “Queria trabalhar cidades que traduzissem uma grande diversidade cultural e onde ela se sentisse no corpo das próprias músicas. Claro que havia outras cidades que poderiam estar no disco, como Paris ou Londres, mas acabaram por ficar estas porque todas elas são pólos multiculturais que acabam por ter expressão nas cenas musicais.”
A forma de operar foi mudando de cidade para cidade, não existindo propriamente um método de trabalho pré-definido: “Em vez de procurar ter bases muito limitadas sobre o que iria acontecer, tentei moldar-me a diferentes situações. Já vi muitos discos baseados em colaborações virarem uma salganhada, e para o contrariar tentei que nunca estivessem em estúdio mais de duas ou três pessoas, para que o diálogo não resultasse em ruído.”
Alguns dos convidados conhecia-os de anteriores digressões com os Buraka ou das suas incursões como DJ. Com outros, apenas havia tido contacto virtual. “Também por isso tentei criar um ambiente de algum intimismo em estúdio, porque trabalhar com alguém que se propõe cantar supõe alguma exposição e quantas menos pessoas estiverem presentes melhor. Na maior parte das vezes estava eu presente, apenas com mais um músico ou cantor.”
Em alguns casos havia ideias pré-definidas e os convidados operavam a partir daí. Noutros partia-se do zero. Depois, em Lisboa, Branko pegou nas porções gravadas e atribuiu-lhes um sentido final. “Em Nova Iorque os músicos chegavam e tocavam instrumentais e depois escolhiam-se quatro ou cinco para retrabalhar. Esse foi um dos métodos. Mas aconteceu outro tipo de sessões, como na Cidade do Cabo, em que se começou do nada, enquanto em Lisboa houve trabalho de colagem e pós-produção.”
Algumas canções foram eliminadas porque não encaixavam na totalidade do disco. Entre elas, uma com a voz do brasileiro Cícero e outra com a cantora cabo-verdiana Mayra Andrade, que poderá vir a ser editada noutro contexto. “Gosto muito dessa canção, mas não a conseguia justificar no disco que queria apresentar”, diz Branko.
Depois dos Buraka
O conceito que presidiu a Atlas é muito próximo daquele que já era arquitectado no documentário Off The Beaten Track (2013) e no último álbum homónimo dos Buraka, do ano passado, que reflectia uma espécie de linguagem globalizada conotada com as diferentes periferias urbanas. “Sim, é verdade”, concorda Branko, acrescentando que a grande diferença é o resultado sonoro. “Este conceito poderia ser encaixado nos Buraka, mas aqui evidentemente sou apenas eu, logo isso reflecte-se no resultado final. Não se trata propriamente de inventar algo novo, mas de apresentar algo consistente que passe essa ideia da diversidade cultural como uma mais-valia para a pop globalizada.”
O álbum, que pode ser ouvido na íntegra aqui, é lançado semanas depois da notícia de que os Buraka irão parar por tempo indeterminado, depois de uma digressão a realizar na primeira metade de 2016. Uma informação ambígua que deixava espaço para várias interpretações, tanto podendo aludir ao fim do projecto como a pausa criativa. Não se percebia se era um “até sempre” ou um “até já”. Provavelmente nem os próprios sabem o que irá acontecer. Dependerá do que ocorrer nos próximos tempos, com a digressão no horizonte.
“A ideia da paragem surgiu depois de conversas entre nós durante o Verão”, conta Branko. “Nesta altura precisamos de objectividade para perceber se a melhor forma de transmitir o que desejamos é através de um grupo, porque nos últimos tempos – e falo por mim – existia a sensação de que andávamos num comboio em andamento, com concertos por todo o mundo, sem que percebêssemos já o que ali estávamos a fazer. Era necessário parar e voltar a respirar. Ou seja, a pausa é de tempo indeterminado porque só vale a pena voltarmos se existirem novas ideias com validade. Neste momento não estão presentes no nosso espírito. Mas daqui a um ano ninguém sabe bem o que poderá acontecer.”
De todos os seus membros, Branko sempre foi o mais activo musicalmente fora do âmbito do grupo, actuando um pouco por todo o mundo como DJ e tendo lançado vários máxi-singles, remisturas e a excelente mixtape, Drums, Slums & Hums (2013), que resultou no balão de ensaio para o presente álbum.
Depois do Brasil (para além de São Paulo, estará este sábado no Rio de Janeiro) e de Lisboa, seguir-se-ão mais datas de apresentação do disco por cidades como Montréal, Boston, Los Angeles, Chicago, Cidade do México ou Nova Iorque, sucedendo-se depois mais sessões europeias. Nada de surpreendente. Com os Buraka, ou a solo, as viagens têm sido uma constante da sua vida na última década.
Ao longo dos anos, nas muitas conversas com Branko, era inevitável falarmos sobre o impacto dos Buraka em Portugal. Durante muito tempo, apesar de serem o colectivo português da cultura pop com mais visibilidade internacional de sempre, nada parecia acontecer à sua volta. Personificaram o irromper de uma nova geração que foi capaz de atribuir credibilidade a novos imaginários e experiências do Portugal pós-colonial, mas parecia existir ao mesmo tempo uma espécie de vazio em seu redor. Não deixa de ser curioso constatar que o impasse criativo do grupo ocorre quando se vislumbram, finalmente, sintomas de afirmação de qualquer coisa a que poderíamos chamar “cultura negra portuguesa pós-colonial”, manifesta na música, mas não só.
“Por um lado, é verdade, embora por outro sinta que ainda está muito por fazer”, reflecte Branko, evocando a forma como o interregno do grupo foi recebido, com mensagens de devoção ou de repulsa. “Quando os Da Weasel anunciaram que iriam parar, não senti tantas opiniões desencontradas”, analisa ele com um sorriso, não fazendo mais do que sugerir algo que esteve sempre presente ao longo dos anos. Os Buraka posicionam-se num espaço de ambivalências identitárias que Portugal ainda não conseguiu resolver de forma saudável consigo próprio. Não espanta que os Buraka sejam admirados mas nem sempre amados.
Passaram dez anos. É muito tempo, ou pouco, depende da perspectiva. Foi tudo muito rápido. Para a lentidão portuguesa, então, os Buraka foram um meteorito. A sua história é tão diferente da habitual que ainda existe quem não perceba a real dimensão do que o grupo português alcançou. Talvez nem os próprios. Daí também a necessidade de parar para reflectir. Embora o globo aí esteja, outra vez, para conquistar. Em 2006 os Buraka editavam From Buraka To The World. Agora, Branko, com um saber de experiência feito nos Buraka, lança-se para o mundo com o seu Atlas pessoal.