A poesia ganha aos pontos no festival de Berlim
Num momento em que o concurso cede terreno aos "filmes políticos", é a biografia de Emily Dickinson por Terence Davies que se ergue bem alto.
Oh não! Mais um filme sobre Sarajevo! Outro filme sobre a Alemanha nazi! Outro filme sobre a emigração ilegal do México para os EUA! Posto desta maneira, parece que estamos a ser superficiais, burgueses, condescendentes. Não dizemos, provavelmente, o mesmo sobre mais um drama existencialista francês/poema tonal chinês/austero drama iraniano (riscar o que não interessa).
Mas nesse "Oh não! Mais um filme sobre Sarajevo!" reside uma das questões centrais do festival de Berlim: a reivindicação de uma dimensão interveniente, correndo o risco de ser um festival de causas mais do que de cinema. Ora, não é Eisenstein (ou mesmo Pasolini) quem quer e de boas intenções está o inferno cheio; não há como esconder que geralmente o cinema activista tem mais de activismo do que de cinema e está cheio de armadilhas de fuga difícil.
O bósnio Danis Tanovic e o iraniano exilado Rafi Pitts são visitas repetentes no concurso de Berlim, e os seus filmes em competição este ano — Mort à Sarajevo e Soy Nero — são exemplos perfeitos das fraquezas, forças e limites do "cinema do tema". Para perceber como é possível haver um cineasta com visão para reconciliar o cinema com a "agenda tópica", basta-nos fazer um desvio e ir ver o que Terence Davies faz com a vida da poetisa Emily Dickinson em A Quiet Passion, que acaba por ressoar muito mais com os nossos dias do que filmes que supostamente a trabalham.
Cândido na fronteira
Comecemos então por Soy Nero. Inspirado por histórias verídicas de jovens mexicanos que serviram no Exército americano em busca de uma autorização de residência mas foram deportados na mesma, Rafi Pitts constrói uma espécie de versão contemporânea e desencantada do Cândido de Voltaire. O seu herói, Nero, 17 anos, mexicano que cresceu em Los Angeles e procura regressar à América, legal ou ilegalmente, passa ao longo de duas horas por uma série de peripécias que nada têm que ver com o "melhor dos mundos possíveis". Bem pelo contrário: é alvo de racismo institucionalizado e quase atávico, até da parte de outras minorias, que suporta estoicamente.
Pitts não resiste a sublinhar o óbvio até à exaustão, sem conseguir injectar energia no "grande tema social" que está a sublinhar constantemente a traço grosso. Há momentos interessantes no filme (sobretudo na primeira metade) e piscadelas de olho curiosas, como o plano em que se filma o muro na fronteira que separa os EUA do México como se fosse o muro que separa Israel da Palestina. Mas, assim que Nero aterra no Médio Oriente (uma "terra de ninguém" pesadamente alegórica), o cineasta iraniano radicado na Alemanha sucumbe à sisudez do filme de denúncia e abandona a dimensão humana da sua história.
Hotel Europa
A sisudez é o primeiro sinal de alerta do filme do bósnio Danis Tanovic, que tem passado a maioria da carreira a trabalhar o conflito dos Balcãs (e ganhou inclusive o Óscar de Melhor Filme Estrangeiro por isso, com Terra de Ninguém). E o título péssimo, Mort à Sarajevo, não ajuda nada, somando-se ao facto de ser uma adaptação (muito livre) da peça de Bernard-Henri Lévy Hotel Europa, em tom de filme-mosaico, cruzando um sem-número de histórias que decorrem simultaneamente num hotel de Sarajevo durante o dia do centenário do assassinato do arquiduque Francisco Fernando que espoletou a I Guerra Mundial.
Esquemático? Certamente. Bem intencionado? Sem dúvida. Mas pelo menos Tanovic não dá na sisudez pesadona, preferindo-lhe uma rapidez desenvolta que pisca o olho à metaficção: a representação da peça de Lévy é integrada no próprio tecido narrativo do filme. E as feridas ainda por sarar dos Balcãs são usadas para questionar o próprio estado do projecto europeu, sob a forma de um conflito surdo e latente entre patronato e trabalhadores que ameaça detonar a qualquer altura no exacto dia em que o hotel está no centro das atenções mediáticas. Quem diz patronato e trabalhadores diz europeístas e nacionalistas, sérvios e bósnios, muçulmanos e cristãos, polícias e ladrões, ricos e pobres.
Mort à Sarajevo não é didáctico, mesmo que esteja a reiterar aquilo que já foi bastas vezes dito por jornalistas e colunistas; mas é um modelo de economia narrativa e formal, que prova ser possível falar de coisas sérias sem dar sermões ao espectador. A câmara ágil de Erol Zubcevic percorre sem parar os corredores, elevadores, gabinetes, quartos, garagens e bastidores do hotel, emprestando-lhe uma urgência inteligente; se todo o cinema activista que Berlim mostra fosse assim, talvez não disséssemos tantas vezes "Oh não! Mais um filme sobre Sarajevo".
A rebelião feminista
Para ver um grande filme que fala aos nossos dias sem precisar de ser moderno, contudo, temos mesmo de ir a A Quiet Passion (Berlinale Special). Segundo filme em dois anos do britânico Terence Davies, cineasta bissexto e grande romântico, é uma obra abertamente em contracorrente, até algo atípica para o cineasta. Esta biografia da poetisa americana Emily Dickinson (habitada notavelmente por Cynthia Nixon) começa como um aparente filme de época inglês, cheio de epigramas espirituosos e marcações precisas, para terminar num sublime melodrama depurado que nos confronta com a vida e a morte, contado em quadros de câmara de arrebatadora beleza pictórica.
Através da história de Dickinson, que morreu aos 56 anos sem nunca se casar e cuja poesia foi descartada pelos contemporâneos, é do papel social e emocional da arte e da sua incessante busca que Davies trata: de que serve procurar a beleza num mundo que não a reconhece? De que serve a esperança ("essa coisa com penas") num mundo que parece apostado em desiludi-la a cada momento?
"É fácil ser estóico quando ninguém quer aquilo que temos para oferecer", diz às tantas Emily, que debate constantemente as grandes questões morais da vida e se recusa a vergar a sua inteligência a preceitos religiosos ou morais inquestionados. A sua feroz independência moral e intelectual é um modelo de resistência às pressões sociais que ressoa com igual força 150 anos depois. "De que serve ter uma natureza requintada que pouco ou nenhum valor tem para o mundo?", pergunta a poetisa às tantas. Se uma árvore cai numa floresta e ninguém a ouve, terá ela caído realmente?
Continuamos a debater as mesmas questões de há 150 anos e não estamos mais próximos de encontrar uma resposta, mas a ideia de Terence Davies — cineasta homenageado esta terça-feira na abertura do Cortex, Festival de Curtas-Metragens de Sintra, com a trilogia Children, Madonna and Child e Death and Transfiguration — não é tanto responder como manter vivo esse debate. A rigidez depurada da sua encenação faz mais para libertar a essência temática em A Quiet Passion, ao contrário do espartilho do "tema" que afoga Soy Nero e trava Mort à Sarajevo. Que uns estejam em competição e o outro não diz muito sobre a Berlinale.