Estão aqui todas as utopias. "Vamos desejar, conceber e criar juntos o novo edifício do futuro. Combinará arquitectura, escultura e pintura numa única forma, e um dia erguer-se-á para os céus das mãos de milhões de trabalhadores como o símbolo cristalino de uma nova fé que há-de vir", escreveu o arquitecto alemão Walter Gropius em 1915 no Manifesto e Programa da nova escola Bauhaus, que acabara de fundar.
Se há, entre os cerca de mil objectos daquela que é, 90 anos depois, a maior exposição de sempre sobre a Bauhaus - "Bauhaus, a Conceptual Model", até 4 de Outubro no museu Martin-Gropius-Bau, em Berlim -, um que seja o certo para começar a contar esta história, só pode ser esse manifesto em que a catedral desenhada por Lyonel Feininger surge de um lado e as palavras de Gropius do outro. Quem, ao ouvir o nome Bauhaus, pensar em cadeiras, candeeiros ou puxadores de portas, pode esquecer tudo isso para já: no princípio era o edifício (apesar de só a partir de 1927 terem existido aulas de arquitectura na escola). "O objectivo último de toda a actividade criativa é o edifício!", proclamou Gropius, que na Alemanha do final da I Guerra Mundial foi convidado para dirigir a Escola de Artes e Ofícios de Weimar, que entretanto se fundira com a Academia de Belas Artes (e que ele rebaptiza como Bauhaus, a Casa da Construção).
O novo director considerava que as artes manuais eram indispensáveis para aquilo que via como a criação da obra de arte total (Gesamtkunstwerk, conceito que vinha do Romantismo). E o símbolo máximo dessa Gesamtkunstwerk era, aos seus olhos, a catedral gótica. A par disso, Gropius, apesar de ter sempre dito que a escola era apolítica, acreditava nos ideais socialistas de derrubar barreiras entre artesãos e artistas e de criar poderosos projectos colectivos.
A Alemanha emergia da derrota na I Guerra, a monarquia acabara, a nova e relativamente liberal República de Weimar nascia. O clima era propício. Gropius lançou-se ao trabalho. Criou oficinas para as várias artes e ofícios, pôs os alunos a trabalhar os materiais, e convidou um conjunto de professores como a escola de Weimar nunca antes vira. Johannes Itten era um deles, e o mais carismático dos mestres nesta primeira fase da Bauhaus (que Itten deixou em 1922, substituído pelo húngaro Laszlo Moholy-Nagy).
O professor esotérico
É então altura de saltar para outro dos mil objectos da exposição: um papel colado num pedaço de cartão pintado à mão (uma estrela amarela, um rectângulo vermelho, outro roxo e as palavras O Nosso Jogo, A Nossa Festa, O Nosso Trabalho), a marcar um "convívio" para essa noite no estúdio do professor Itten.
Este esotérico pintor suíço de cabeça rapada, óculos redondos, vegetariano, seguidor do culto sincrético Mazdaznan e adepto de exercícios de relaxamento para ajudar à criatividade, tornou-se figura de culto para muitos dos alunos aos quais dava o "curso preliminar" (onde os estudantes trabalhavam os materiais a partir das suas características básicas da cor, forma e composição), embora o seu estilo perturbasse outros e tivesse acabado por criar tensões com Gropius.
O director convidou outro pintor suíço, Paul Klee, assim como o russo Wassily Kandinsky para ensinarem na Bauhaus, ao lado de Lyonel Feininger, do escultor alemão Gerhard Marcks ou do escultor e designer também alemão Oskar Schlemmer. Dificilmente este grupo, com ideias revolucionárias sobre o ensino da arte, se poderia integrar com a velha guarda dos professores da antiga Escola de Artes e Ofícios e da Academia de Belas Artes.
"Ao lado destes [novos professores], os 'velhos' professores de arte que, depois das duras críticas de Gropius aos seus trabalhos de estúdio mostrados em Junho de 1919, rejeitam de forma veemente e assumida o novo director, as suas ideias sobre um conselho para os trabalhadores e a arte, e os seus 'mestres'", descreve Jörg U. Lensing, director artístico do Theaters der Klänge em Dusseldorf, autor de um dos textos do catálogo da exposição. A ruptura entre os dois lados foi rápida, e ajuda a explicar porque é que a Bauhaus nunca foi completamente aceite em Weimar - situação que culminou na votação política que em 1925 obrigou a escola a deixar a cidade e a mudar-se para Dessau.
Entretanto, ainda em Weimar, os alunos continuavam a experimentar com vários materiais, enquanto se preparavam para a construção do edifício que seria o culminar de todos esses esforços. Mas, curiosamente, o primeiro edifício construído pelo atelier de Gropius (com o sócio Adolf Meyer) depois deste se ter tornado director da Bauhaus foi considerado relativamente conservador. A Sommerfeld House (1921), num subúrbio berlinense, é, segundo Magdalena Bushart, professora na Universidade Técnica de Berlim, um "desapontamento" para quem espera essa primeira "obra de arte total". A casa, encomendada por um rico empresário da construção, parte de um "plano convencional, com um interior convencional, e em que a escultura e pintura são meros acrescentos decorativos".
O edifício que marcaria claramente a concretização de um estilo Bauhaus só surgiria mais tarde quando, sob pressão política, a escola se muda para Dessau. Agora sim, estamos, segundo a arquitecta Monika Markgraf, perante "o 'manifesto construído' das ideias da Bauhaus". Aqui, livre de constrangimentos, Gropius pôde aplicar a sua máxima: "Arte e tecnologia - uma nova unidade". O edifício nasce da fusão das disciplinas artísticas e técnicas, e a forma serve a função.
Os móveis e a decoração dos interiores eram feitos pelos alunos. No exterior, as grandes janelas e a enorme fachada de vidro permitiam a entrada de luz. Existiam as oficinas, os dormitórios dos estudantes, uma cantina, um auditório, uma ponte que ligava as duas alas do edifício, e no terraço um espaço para fazer ginástica (chegou a haver dois professores de ginástica na escola).
A este edifício juntaram-se depois as residências dos "mestres" de Dessau, desenhadas por Gropius. "O centro da casa de Gropius era a sala de estar, com estantes construídas no local, um sofá que se pode expandir e uma secretária. Mobilidade, variedade e eficiência eram os critérios da instalação" (Robin Rehm, historiador de arte). Era nessas casas, com grandes janelas de vidro, em que viviam, lado a lado, Gropius e László Moholy-Nagy, Lyonel Feininger, Georg Muche, Oskar Schlemmer, Wassily Kandinsky e Paul Klee, que apareciam alguns dos objectos que se iam tornar ícones da Bauhaus.
A cadeira de Marcel Breuer, por exemplo, um dos (poucos) objectos na sala de estar da casa do director. Criada em 1926, ficou conhecida como Wassily (por causa de Kandinsky) e foi um sucesso surpreendente, até para o autor, que confessou que quando a fez imaginou que seria muito criticado. "É o meu trabalho mais extremo, tanto na sua aparência exterior como no uso de materiais; é o menos artístico, o mais lógico, o menos 'cozy', o mais mecânico. No entanto, aconteceu exactamente o contrário".
A cadeira obedecia às orientações estabelecidas por Gropius para os objectos que na altura a Bauhaus começou já a produzir de forma industrial: cumprir a função para a qual foi criada, ser duradoura, economicamente acessível e "bonita". Outros objectos - como o bule de Marianne Brandt, de 1924 (que atingiu 255 mil euros num leilão da Sotheby's), o candeeiro de mesa de Wilhelm Wagenfeld ou os papéis de parede, que se tornaram o maior sucesso comercial da escola - vieram depois juntar-se à lista dos icónicos Bauhaus.
Tudo é pretexto para uma festa
Mas a escola não era apenas oficinas, objectos, planos para edifícios. Era também festas. Oskar Schlemmer - o criador do Triadisches Ballett, que ajudou a espalhar o espírito Bauhaus - era o "designer das festividades", criando eventos que ajudavam não só a libertar a criatividade dos estudantes, como a estabelecer pontes com a sociedade que, apesar de mais aberta em Dessau do que em Weimar, ainda olhava a escola com desconfiança.
"Além dos eventos oficiais, qualquer ocasião que se pudesse imaginar podia tornar-se pretexto para festividades: a conclusão de um tapete particularmente bem sucedido, o facto de os Kandinskys terem conseguido direitos de cidadania, o nascimento de uma criança...", conta a historiadora de arte Mercedes Valdivieso num texto ilustrado com imagens de um "Festival Metálico" (tudo, das roupas ao espaço, era metalizado), dos membros da Banda Bauhaus a tocar, ou de um "banquete festivo com pratos frios".
O estilo das festas sofreu mudanças quando a escola se instalou em Dessau. "As celebrações perderam o seu carácter folclórico, [...] reorientando-se como eventos culturais". O som da harmónica foi substituído pelo do jazz. Os preparativos para cada um destes eventos envolvia a escola toda, e os programas e convites eram cuidadosamente desenhados e impressos - a escola tinha consciência que era também a sua imagem que estava a projectar. A 4 de Dezembro de 1927, a festa de aniversário de Kandinsky foi preparada por Schlemmer sob o tema "Festival do Slogan". Os alunos imitavam os tiques dos professores e transformavam-se eles próprios em noções teóricas - uma das alunas representava por exemplo (não se sabe exactamente como) os "Factos Nus".
À medida que os Golden Twenties se aproximavam do fim, o clima de festa ia esmorecendo. A crise económica e tensões internas quase puseram em causa a realização do baile de Carnaval de 1928. Por essa altura já tinha acontecido uma das mais importantes mudanças na vida da Bauhaus: em 1927 Gropius deixou a direcção da escola sendo substituído por Hannes Meyer.
O arquitecto suíço, que ocupou o cargo até 1930, tentou nesses três anos imprimir a sua marca. Meyer era, descreve Annemarie Jaeggi, directora do Arquivo Bauhaus, "um defensor do funcionalismo estrito, rejeitando todas as formas de excesso". Assumidamente marxista, regia-se pelo princípio "necessidades populares em lugar do luxo".
Com Meyer a escola passou a ter uma orientação mais social, e a preocupação de trabalhar para a produção de objectos que pudessem ser comercializados a preços razoáveis, servindo também as classes mais populares. Apareceram materiais mais baratos, móveis mais leves que podiam ser montados pelos utilizadores. Mas as ideias políticas do novo director eram cada vez mais incómodas, e em 1930 foi forçado a abandonar o cargo. Substituiu-o o arquitecto Ludwig Mies van der Rohe, terceiro e último director da Bauhaus.
Nazis sobre a Bauhaus
Mies herdou uma escola - que tentou recentrar novamente na arquitectura - numa época em que a crise económica se agravava. A situação política era cada vez mais tensa. A República de Weimar estava agonizante e o Partido Nazi iniciava a sua caminhada para o poder. A Bauhaus resistiria mais três anos - acabou em 1933. Curiosamente, o seu tempo de vida coincidiu com o da República de Weimar. Uma época tinha chegado ao fim. Havia novas - e perigosas - utopias a chegar.
Os objectos da exposição - esta é a primeira grande retrospectiva em que foi possível reunir material das três principais instituições ligadas à Bauhaus, o Bauhaus Archive Berlim, o Stiftung Bauhaus Dessau e o Klassik Stiftung Weimar - contam também o fim da história. Um dos que o relata de forma mais literal é a fotomontagem "Attack on the Bauhaus" do estudante japonês Iwao Yamawaki (de 1932), na qual os nazis marcham sobre o edifício da Bauhaus em Dessau, que acusavam de ser um centro de produção de "arte degenerada" e "bolchevismo cultural".
Com a escola encerrada em Dessau, Mies ainda tentou reabri-la pela terceira vez, agora numa antiga fábrica de telefones nos arredores de Berlim, em 1932. E se nesse ano a escola ainda tinha 115 estudantes, em 33 já só tinha 19. Mies e os professores que restavam decidiram dissolver a Bauhaus.
Walter Gropius deixou a Alemanha nazi, primeiro para a Grã-Bretanha e depois para os EUA. Hannes Meyer tinha já seguido na direcção contrária, para Moscovo, levando com ele sete alunos. Mies van der Rohe segue também para os EUA e instala-se em Chicago.
A escola durou 14 anos, mas nunca mais deixou de se falar de um "estilo Bauhaus" (aplicado indiscriminadamente aos objectos da Bauhaus e às suas cópias, as de melhor e as de pior qualidade). Encerrada pelos nazis nos anos 30, com os arquivos divididos pela Cortina de Ferro depois da II Guerra (os de Weimar e Dessau do lado Leste, os de Berlim no Ocidente), foi preciso esperar 20 anos sobre a queda do Muro de Berlim, e 90 sobre o manifesto em que Gropius prometia "o novo edifício do futuro", para poder finalmente juntar todos os pedaços da história.
Todas as citações do texto são retiradas do catálogo da exposição Bauhaus - A Conceptual Model