Sexo, espiritualidade, denúncia, passado: um resumo do concurso de Locarno
Bangkok Nites, do japonês Katsuya Tomita, fica como um dos melhores filmes da edição 2016 do festival suíço, e mereceria estar no palmarés que será revelado este sábado.
“Esta cidade é de quem fizer mais asneiras.” Nada de confusões: não é a Locarno que esta frase se refere, embora o júri capitaneado pelo mexicano Arturo Ripstein revele este sábado os resultados da sua deliberação entre os 17 filmes a concurso no ano 69 do festival de cinema suíço, e os rumores que correm (e que valem o que valem) receiam um palmarés tão “representativo” como o que o júri de George Miller premiou em Cannes. “Esta cidade é de quem fizer mais asneiras” é o que às tantas um japonês diz a propósito de Banguecoque no último filme exibido na competição oficial, Bangkok Nites, rodado na Tailândia pelo nipónico Katsuya Tomita – mais um cineasta “da casa”, porque foi Locarno que revelou em 2011 a sua anterior longa Saudade. E é um final apropriado para um concurso a que não faltaram momentos altos, mas onde não primou a surpresa pela positiva e alguns dos filmes mais aguardados se saldaram por decepções (parciais ou por inteiro). Rima, ainda por cima, com o primeiro grande título que vimos na competição, que também era japonês – Wet Woman in the Wind, o delirante pinku-eiga softcore de Akihiko Shiota – e é um filme de decantação lenta, muito mais próximo daquilo que costumamos identificar com o festival.
Bangkok Nites também anda pelos lados do sexo, já que a sua heroína nominal é a call girl nº 1 da Thaniya Road de Banguecoque, Ying Luck. No entanto, é outra coisa que interessa a Tomita, que constrói com paciência, ao longo de três horas, um épico de câmara sobre o vazio emocional de uma sociedade toda ela virada para a troca comercial. Soderberghiano no modo como todas as relações deste filme são estritamente transacções funcionais de mera sobrevivência, indiferentes a escrúpulos ou moralidades. Bangkok Nites tem também qualquer coisa de velho noir americano, ou não se passasse tudo entre a comunidade expatriada de japoneses que trabalham e vivem em Banguecoque (um deles, Ozawa, interpretado pelo próprio realizador, tem uma história antiga com Ying Luck, que reencontra por acaso). Mas são referências que poderão estar mais no olhar de quem vê do que no do realizador – porque há também uma dimensão política fortíssima nesta história de exploradores e explorados que trocam sistematicamente de lugar, neste paraíso que só o parece ser para quem lá não mora e só está de visita.
Entre os ricos turistas japoneses com dinheiro para queimar e as prostitutas tailandesas que vendem o corpo para sobreviver, quem se aproveita mais do outro? Quem faz “mais asneiras”, como diz alguém às tantas, pode realmente reclamar a propriedade da cidade? Tomita faz as perguntas, mas não quer forçosamente responder-lhes: o seu filme é uma reflexão, não um panfleto ou uma denúncia. As suas personagens não se venderam ainda por inteiro ao cinismo ou à amoralidade; Ying Luck e Ozawa acreditam num futuro, numa saída, e se há uma certa amargura pelo final destas três horas – porque o dinheiro é a única chave que pode abrir as portas desta sociedade – não há certamente desespero. As noites de Banguecoque continuam a existir, haverá sempre turistas para explorar, e a leveza pop dos planos de abertura que sugerem um outro filme que depois não acontece parece estar mesmo à beira de reaparecer.
Apostas
Um dos aspectos mais curiosos de Bangkok Nites é o modo como, quase inadvertidamente (porque os filmes falam uns aos outros mesmo sem terem conhecimento uns dos outros...), funciona como “súmula” ou “sumário” de muitas das temáticas que passaram este ano pela competição. Partilha o prazer do sexo com Wet Woman in the Wind e a espiritualidade com O Ornitólogo de João Pedro Rodrigues; o seu olhar sobre as trabalhadoras do sexo e a exploração do homem pelo homem encaixa com Marija, de Michael Koch, ou com a dupla presença búlgara de Slava, de Katerina Grozeva e Petar Valchanov, e Godless, de Ralitza Petrova; a omnipresença do passado histórico aproxima-o de By the Time It Turns Dark, de Anocha Suwichakornpong, La Idea de un Lago, de Milagros Mumenthaler, e Inimi Cicatrizate, de Radu Jude… Será essa “súmula” suficiente para garantir a Katsuya Tomita um lugar (merecido) no palmarés que será revelado este sábado?
Pelos corredores circulava que o júri presidido por Arturo Ripstein e completado pela actriz Kate Moran, pelos realizadores Rafi Pitts e Wang Bing e pelo produtor Rodrigo Teixeira procurava “terreno comum” unânime, fazendo recear o chamado “palmarés de consenso” que acaba por passar ao lado dos filmes mais arrojados. Certo é que, numa edição como a de 2016, o consenso não foi coisa fácil de encontrar – o crítico inglês Neil Young, na “bolsa de apostas” que mantém no seu site Jigsaw Lounge, colocava O Ornitólogo como favorito ao Leopardo de Ouro, seguido de perto por Hermia & Helena, de Matías Piñeiro, Slava e o polaco The Last Family, de Jan Matuszynski, sobre o pintor surrealista Zdzislaw Beksinski.
Mas o filme de João Pedro Rodrigues, apesar das reacções ditirâmbicas de muita imprensa internacional (do Libération ao italiano Il Manifesto, passando pelo venerando Hollywood Reporter), pode ser demasiado arrojado para um júri de tendência mais classicista como este; e a ausência de rumores à volta de Inimi Cicatrizate é algo mistificante face às excelentes críticas que recebeu. Ainda assim, há que ressalvar a relativa juventude dos realizadores e a aposta em nomes que não estão exactamente no “circuito de luxo” – a portuguesa Rita Azevedo Gomes e o egípcio Yousry Nasrallah, presente com a preguiçosa comédia familiar Brooks, Meadows and Lovely Faces, eram os “veteranos” da selecção, e um terço do concurso consistia de primeiras ou segundas obras.
Não há, contudo, como esconder que alguns dos nomes mais aguardados trouxeram decepções. Praticamente esquecidos nesta recta final foram Der traumhafte Weg, da alemã Angela Schanelec, e Mister Universo, da dupla austríaca formada por Tizza Covi e Rainer Frimmel – nenhum deles um mau filme, mas sem trazerem muito de novo ao seu cinema. No caso de Schanelec, de quem tínhamos boas memórias de filmes como Marseille ou Orly, o rigor formal cerebral mantém-se intacto, e esta história elíptica de encontros e desencontros a 30 anos de intervalo merece certamente uma visão mais atenta, mas a impressão de “mais do mesmo” foi bastante forte. O mesmo problema afectou Mister Universo, nova incursão pela realidade ficcionada do clã de artistas de circo que Covi e Frimmel (cuja obra tem sido acompanhada regularmente nos festivais portugueses) documentam há mais de uma década; o novo filme parece abandonar algumas das pistas mais interessantes do anterior Der Glanz des Tages, que foi premiado em Locarno 2012, e voltar à sua zona de conforto.
Ora, o que há de bom em Locarno são títulos como Correspondências, O Ornitólogo, Wet Woman in the Wind, Inimi Cicatrizate ou Bangkok Nites, que nos tiram dessa zona de conforto em que os festivais parecem estar a converter-se em demasia. Logo se verá a opinião do júri, na certeza de que, para nós, foram essas cartas fora do baralho a ganhar esta edição.